domingo, 30 de dezembro de 2012

Tudo novo de novo


“Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que deu o nome de ano, foi um indivíduo genial.” A frase não é minha, é de Carlos Drummond de Andrade. Contar os dias, como continhas de quem monta um colar, não é ideia de um único indivíduo. Digamos que é uma produção coletiva de todos os povos, pois existem tantos calendários quantos povos existem. Alguns sofisticados, outros nem tanto. Uns se guiam pela lua, outros pelo sol, pelas estações. Nossa temporalidade e finitude, a percepção da passagem do tempo, portanto, das vivências do presente, passado e futuro, nos levam a organizá-lo de tal forma que dá um sentido à cotidianidade e à monotonia, sua filha legítima. Tem uma utilidade prática óbvia, tanto para os homens das cavernas, como para nós.
        Drummond de Andrade diz ainda que que o tal fatiador do tempo, “industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão”. Esta palavra esperança está intimamente ligada à passagem de um ano. É nossa principal moeda, pois com ela negociamos os planos e projetos que acreditamos: se realizarão, ainda que muitos deles sejam repetições de outras tantas passagens, logo, nunca realizados, mas agora convenientemente esquecidos, se revestem de novo mesmo fedidos a mofo.
        Neste período, lançamo-nos ávidos a “fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta. Chorar arrependido pelas besteiras consumadas e parvamente acreditar que por decreto de esperança a partir de janeiro as coisas mudarão” (Carlos Drummond de Andrade). A lista é quase infinita. De fato, é o período propício para organizar nossas incongruências, harmonizar e diminuir a distância entre um eu real e um eu projetado. O primeiro, falho, esquecido e não cumpridor das promessas. Ele é quem está no controle na maior parte do tempo, valorizando o prazer, às vezes o dever, nem que seja como mera desculpa para se escusar de não realizar o que deveria fazer.
        O segundo é aquele que se gostaria de ser. Crédulo, motivado, alegre e com a maioria das qualidades que tanto apreciamos, inclusive físicas, mas que por razões que nos escapam, estão sempre a um passo de distância. Dependendo do ângulo, na frente ou atrás. Para emulá-lo, nos esclarece Jung, usamos máscaras, personas simuladas, não necessariamente falsas, para trabalhar, se relacionar, viver, enfim. Mas sabe-se o que são, exceto quando um adoece e a máscara, apegada à face, torna o personagem algo que suplanta o ser real.
        Talvez devamos nos perguntar por que falhamos em nossas promessas de ano novo? Uma razão é o distanciamento confortável entre o momento da afirmação e o momento fático da realização. Acreditamos que por artes mágicas o prometido se realizará, quase sem nosso esforço e suor. Outra razão é porque apagamos todos os problemas ligados à realização de um projeto. Não há custo e os planos são perfeitos.
Ainda com Drummond. Ele diz que ao final de doze meses, qualquer um está cansado e pronto para entregar os pontos, afinal, digo eu, fez-se uma baita viagem arrodeando o sol. É uma estrada de 930 milhões de quilômetros. Então estamos prontos, volto a Drummond, com “outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente.” Acreditar é outra razão para fazermos promessas. Tomados de uma incrível fé em nós mesmos, não há qualquer dúvida que faremos isso e aquilo tal qual foi dito. Até que se é engolfado pela vida e suas urgências inadiáveis e então, como se tem ano à vontade pela frente, procastinamos.
Com as promessas é preciso parcimônia. Elas não devem ser tratadas como descartáveis. Simples motes de roda de conversa, pois logo se tornam autoenganos e estes hábitos de como driblar e sabotar a vida.

Outras histórias de 2012 que não contei


Fonte: UOL Tablóide (29/12/2012)

Todo final de ano tem um script parecido. Os jornais fazem retrospectivas, listas as mais diversas sobre temas tão variados, que é impossível elencá-los aqui e, claro, previsões: econômicas – neste item o Mantega, Ministro da Fazenda brasileiro, acerta tanto quanto a mãe Diná –, políticas, catástroficas, sobre celebridades ou você, mesmo que os agoureiros nunca lhe tenham visto na vida.
As listas são divertidas, especialmente quando relatam histórias estranhas. Dizer estranhas é pouco, são bizarras e inacreditáveis, seja pela burrice dos protagonistas, pelo azar, loucura. 
Histórias esquisitas tem sido a principal fonte para escrever esta coluna dominical. As fontes sempre são verdadeiras, aqui apenas ganham, às vezes, um personagem com um nome e uma contextualização ainda mais tosca que o próprio fato que a gerou. Tomo emprestado algumas delas para finalizar este ano que foi pródigo em esquisitices, incluindo aí um fim de mundo pela previsão maia que, para tristeza de muitos, não aconteceu. Digo apenas o que ficou mais popular. Não incluo a tara de seitas religiosas que também cismaram com 2012 e anunciaram uns três fins de mundo frustrados. Mas aqui estamos.
No topo da lista, Maria Verônica Vieira, 25, que enganou até o próprio marido com uma gravidez de quadrigêmeos. A barriga descomunal – feita de silicone e pano – desfilou pela tv por quase um mês. Eu acreditar e você também, vá lá, mas o cara mais crente nesta história foi o próprio marido. Como assim, cara pálida?
  Todo mundo sabe que o sistema público de saúde vai mal das pernas e entre notícias trágicas que tanto nos entristecem, há lugar para as inusitadas também. Dona Adriana Santos, que estava gordinha, procurou um médico em Salvador para se consultar sobre complicações desta situação e saber como emagrecer. O médico, entre um humor ácido e incompetência, passou Cadialina. Ao perguntar sobre o remédio, o médico explicou: passe num ferreiro (?) e compre seis cadeados: para a boca, para a geladeira, para o armário, para o freezer (a mulher é pobre não tem freezer), para o congelador e, finalmente para o cofre da casa. Cofre?    
Eis uma história de burro. Não o animal, ao qual peço desculpas, mas de gente mesmo. Ricardo Sérgio Freire de Barros foi preso dentro de uma agência bancária no Recife. Em tempos de crédito farto, pretendia arrumar algum. O gerente desconfiou dos documentos do 171. Ignorante em cinema, tascou a foto do Jack Nicholson (ator americano, lembram?) na carteira de identidade. Por que o louco não colocou a própria foto? Vá se entender! Foi preso em flagrante.
Duas histórias de peitos. Fundo-as numa só. A brasileira que se diz modelo, residente no Texas (EUA), sofreu um pequeno acidente automobilístico. Estava sem cinto de segurança, mas havia instalado dois enormes air bags no lugar dos peitos e estes, disse ela, a salvaram. Levou-os à funilaria e promete aumentá-los e consequentemente, a freguesia. A outra, sua colega alemã, devaneava há muito como seria matar um homem após o coito com seus dois peitos enormes. O namorado foi atraído para uma noite de amor e no final, exausto, viu-se aplastrado sobre o peso da mulher que é avantajada e sendo sufocado pelos seus peitos. Já azul por falta de ar, a custo conseguiu desvencilhar-se da sujeita, fugiu e deu parte na delegacia. Quis saber depois porque ela quis assassiná-lo e ela candidamente disse apenas que queria tornar sua morte mais confortável. Foi o único cara que a quis em anos e ela tenta matá-lo. Esta a gente classifica na sessão loucura.
Que 2013 venha com todas as suas histórias e, para vocês leitores e leitoras, seja um ano pródigo em realizações, sempre sob o manto da paz e da saúde. Obrigado pela companhia.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

As aventuras de PI (Life of Pi) – 2012


Exceção ao diretor Ang Lee, que tem entre sucessos “O Tigre e o Dragão” e “O Segredo de Brokeback Mountain”, você não terá qualquer dos atores consagrados de Hollywood neste filme. Nem por isso as interpretações são menos convincentes. A marca registrada deste diretor, as imagens belíssimas, oníricas, uma fusão da boa utilização da computação gráfica com cenas reais de grande beleza, estão presentes.
O mote que convida a assistir ao filme é frágil. A frase diz: acredite no extraordinário. Ao contrário. A obra até pode explorar a fantasia e o faz com maestria, mas nem de longe se refere a algo mítico ou imaginosamente impossível. Fala da realidade de cada um de nós e de como nos expressamos para o transcendente.
Talvez seguindo seu ecletismo nos temas de cada filme que faz, Lee nos leva a uma incrível aventura em forma de parábola sobre uma questão fundamental para todas as pessoas, crentes ou não. O filme tem como tema principal a fé em Deus. Abstraindo uma possível tentativa do diretor de dizer que Deus é igual, independente da religião, ou que é possível, afinal, uni-las todas ao redor do que, supostamente, partilham os mesmos ideais, a discussão proposta é estimulante, inteligente e de extremo bom gosto.
Cristianismo, Islamismo, Hinduísmo, Budismo e Judaísmo aparecem representando as grandes manifestações religiosas do mundo. Nenhuma é colocada superior à outra. Cada qual é vista com respeito e tolerância na figura do personagem principal, o ainda garoto Pi Patel. Pi é hindu e hinduísta de nascimento. Aos 12 anos conhece o cristianismo e se fascina com a figura de Cristo. Logo a seguir, diz ele, Deus se apresenta novamente, agora na forma de Alá. Adulto, se torna professor de Cabala na universidade. Ele decide seguir as três religiões ao mesmo tempo. Seu pai, um provável agnóstico, defende que é impossível seguir três religiões e que pode acabar sem seguir nenhuma. Defende que ele busque na razão os fundamentos da verdade. A razão da descrença do pai é que num leito, com pólio e ainda criança, pediu a cura a Deus e este não o atendeu. Ele foi curado pela medicina ocidental, afirma o personagem, embora tenha ficado a sequela na perna adoecida.
Concordo com Lee com o fato de que Deus não necessita explicação para a sua existência. Se tomamos a perspectiva judaico-cristã, ele diz de si que ele é aquele que é. Sem começo ou fim. Autoexistente. Eterno. Embora, ainda pela visão cristã, Jesus seja a forma de nós nos relacionarmos e conhecê-lo. Assim diz o padre com quem Pi conversa na igrejinha encravada nas montanhas plantas de chá.
Lee defende pelo personagem Pi Patel que no final das contas, a versão da aventura não importa. Duas histórias são contadas por Pi em sua desventura, escolha a que melhor lhe agrada. A razão por que o navio afundou talvez nunca tenha uma explicação – e nenhuma da histórias de Pi explicam –, importam as vidas que nele estavam e foram perdidas, o drama pessoal do personagem, ou o que ele, como único sobrevivente fez com a sua vida. Ele se revoltará contra Deus que lhe inflingiu tanto mal com o naufrágio, ele o encontrará e entenderá?
O navio metaforiza Deus e o mundo. Somos todos viajantes nele. Em meio às borrascas do mar, sempre há várias possibilidades: chegar ao destino, morrer na tentativa ou sobreviver ao fundamento do navio. A vida é uma aventura incrível. Não sabemos o que nos espera, mesmo que racionalmente tomemos decisões abalizadas e bem planejadas e façamos ainda com a melhor das intenções. Nós simplesmente não temos controle. Deus tem.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Quero um fim do mundo pra chamar de meu


Pequenos povoados com fama de místicos despertaram neste mês um interesse fora do comum ao redor do mundo. Eles estão recebendo um número de visitantes muito maior do que de costume, que acreditam na profecia maia de que o mundo acabará no dia  21 de dezembro de 2012 - e no poder que essas localidades possuem de protegê-los de uma catástrofe iminente.

Fonte: G1 (19/12/2012)

Se vocês estão lendo este texto é porque, acho, o mundo não acabou. Pelo menos o seu. Como é de se supor, escrevo antes do fim. Não exatamente atormentado, pois me falta a crença no fato. Vejo-o distante, mas tampouco tenho qualquer garantia de que em dois dias um vagalhão gigantesco afunde a ilha com tudo dentro. Tenho andado ocupado procurando meios de escapar e cogito, sim, alguma forma, pois não sou fatalista como o personagem do Raul, que se esforça para ser um sujeito normal e entre as normalidades está aquela de sentar no sofá da sala com a boca escancarada, cheia de dentes (menos mal), esperando a morte chegar. Meus dentes ainda estão no lugar, mas não quero mostrá-los por aí.
Não meus caros leitores e leitoras, quero escapar. Como vocês também, suponho. Busco alguma brecha na própria profecia, mas descubro que ela é tão enigmática que continuarei na ignorância. Esperava descobrir um descuido nas contas que jogasse a data láááááá pra frente. Ou quem sabe, alguma mandinga, uma manha qualquer que agradasse aos deuses. Mas existe deus nesta história? Me escapa esta parte. Aparentemente, as coisas acabarão porque acabarão, ora pois!
Desisti do erro profético. Resolvi que seguir a manada talvez seja mais fácil. Uma nave espacial que nos leve ali na curva da via láctea é uma ótima ideia, só que a única disponível ainda não voou com ninguém, tem fila de espera e eu precisaria desenbolsar a bagatela de duzentos mil dólares aproximadamente. Final de ano, contas e contas para pagar, fora a escola que está nos tirando o couro. Ah, a nave só sobe uns cem quilômetros e desce rapidinho. Quer dizer, bem no meio do freje. Qual freje? Eu ignoro. Cometa, meteoro, tsunamis, tornados, terremotos, o sol fritar a terra. Que mais dá?
Tem um monte de gente indo para cidades místicas que teriam, sei lá, uma espécie de proteção qualquer contra hecatombes. Olhei as fotos de umas e fora a beleza natural, acho que vai ser uma roubada. São pequenas, não tem onde acolher todo mundo, vai ser uma loucura ir ao banheiro. As previsões de chegada de gente fugindo do fim nestes quase povoados são apocalípticas. É só oportunismo puro das agências de viagem. Contei os trocados e dava mal – de ônibus – para chegar em Alto Paraíso, Goiás. Sem contar que, se chegasse, teria que morar debaixo de uma mangueira. Aluguel por lá está pela hora da morte.
Vi que estava ficando sem opções. Ainda estou. Não sei o que você pensará ao ler este registro desesperado. Se não passo na escrita quão desesperado estou, é porque quero mostrar certa dignidade no fim. Sabe aquelas cenas de filmes. Vem uma onda monstruosa levando até arranha-céus de eito e o sujeito ali, incólume em atitude zen, enfrentando sua desgraça. Se fosse de verdade, a razão deste enfrentamento seria paralisia de medo. Câmera num ângulo abaixo e se veria o sujeito borrado ou molhado.
Sabe que, de tanto pensar em fugir, acabo descobrindo que o fim do mundo tem lá suas vantagens. Poucas, é verdade. Não tenho mais que pagar contas. A gente escapa do saco que são as festividades forçadas do natal, mandar cartões (alguém ainda faz isso?), inclusive dos chatos almoços em família que acabam em briga e resmungos. Sou mal amado, você pensa. Nada. Se o mundo acaba, você tem seu décimo terceiro só pra você, besta, e se não acabasse teria que gastar comprando presentinhos até para o cachorro, sem contar o cartão de crédito que vai gerar dívidas pro resto dos anos que virão. Já está dizendo: tomara que acabe, né?
Faltam só 48 horas. Ai! Estou tentado a chutar o balde e seguir sugestões da música “Último dia” do Paulinho Moska. A primeira parte da música está fora. Nem almoço, nem esperar ninguém em minha minúscula sala vazia. Ir pro shopping está fora de questão pelas condições monetárias que já falei. Pensei em andar pelado na chuva, mas falta chuva. Entrar de roupa no mar, pode ser, pego doença, mas não dá tempo dela se manifestar. Já fazer sem camisinha, prefiro ser pudico nesta parte e dela nada falo. Mesmo com o fim do mundo, sim! Abrir a porta do hospício parece bom e trancar a delegacia, melhor. Especialmente naquela em que estará o Zé Dirceu e sua gangue. Adorei dinamitar o próprio carro, só que isso não é necessário para parar nosso trânsito. Ainda estou estudando opções.
Que mais? Abrigo subterrâneo. Como não pensei nisso antes? Desde que eu não leve tão a sério o termo “fim do mundo”. O tal abrigo está no mundo, logo... menos nas cidadezinhas místicas, pessoal. O que diabos elas tem que São Luís não tem? Políticos fuleiros? Praias em que se nada em sopa de coliformes fecais? Escolas e hospitais que não funcionam? Trânsito caótico? Um Natal comercial chifrim? Ô gente, nós temos tudo isso. Somos até Patrimônio da Humanidade. Custa incluir uma banda da ilha, pelo menos, entre os pedacinhos de terra protegidos?

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Enquanto isso, num botijão congelado...


O total de embriões congelados no país em 2011 passou de 26 mil, segundo relatório da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Retirados os descartados, utilizados e os enviados à pesquisa com células-tronco, a agência estima que o acumulado de embriões congelados chegue próximo de 60 mil.
Só em 2011, 1.322 foram doados para a pesquisa e 33,8 mil transferidos a mulheres.

Fonte: Folha de S. Paulo (Johanna Nublat, DE BRASÍLIA - 13/12/2012)

Que frio! Brrrr. É natal, esqueceu? Adoro esta época do ano. A neve caindo, as árvores branquinhas, as pessoas aconchegadas em casa diante da lareira tomando um bom vinho, comendo fondue. Olha gente, quero ganhar um gorro novo, viu? Os colegas ao redor olhavam abismados para aquele comentário. O outro continuava com aquele olhar de parvo, olhando para cima, embasbacado. Ô desorientado! Estamos no Brasil. Não tem nada disso no natal! É verão. Faz 40 graus. Acorda! Ah, é??? E como é que você explica este frio de lascar? Hein? Isso é nitrogênio líquido, sua anta! Os outros que ouviam aquele diálogo de surdo-mudo se enrolavam uns nos outros tremendo.
E quando é que o papai noel chega com o trenó e as renas? Dizem que pegar no nariz de uma delas dá muita sorte. Quem sabe não sou escolhido para virar um bebê. Não é possível! Este embrião é um completo desorientado. Quando é que você vai cair na real, meu filho? Não alucina! Estamos dentro de um botijão para guardar embriões descartados. Epa, tão sacudindo o botijão! Vão abrir, vão abrir! Todos estavam excitados. Esperavam ser escolhidos para ir para o descongelamento e depois, se tudo corresse bem, ser implantado num útero.
Os caras do fundo berravam para serem retirados. Aqui, aqui! Diziam em coro, abanando as mãozinhas. O pessoal de cima mandava que tivessem educação e modos. Havia que respeitar o direito dos de cima. É porque vocês são da classe A. Só querem se dar bem. E nós, aqui embaixo? Nunca vamos ter a chance de virar gente. Bobagem, resmungou alguém lá pelo meio. E quem disse que virar gente é lá grande coisa? Conta a lenda que é só problema. Imagine nove meses preso, com cada vez menos espaço na barriga de uma qualquer. No final, tem que sair espremido por uma passagem inacreditavelmente apertada. Isso só para começar.
E tem mais. Tem que torcer para ser uma sujeita cuidadosa. E se for uma maluca que come tudo quanto é porcaria, fuma, bebe e não para, balançando a gente pra lá e pra cá. Isso não é vida, colega. Alguém gritou: eu quero virar gente, mesmo assim. Tu vai dar um ser humano feio. Poupa o pobre desta infelicidade. Um pessimista reclamou: ô gente sem salvação! Não inventa dor de cabeça, 452. Eles se conheciam por número porque no botijão cabiam quinhentos embriões. Aliás, o pessoal de baixo vai fazer um amigo invisível, tá afim de ir? Vou não. Tenho azar de só ganhar presente furreca.
Ô 102, cadê aquela tua irmã bonitinha? Olha o respeito, rapaz! Eu soube que ela tá saindo com o 28. Rapaz, aquele cara lá é sem futuro. Não quer saber de nada. Vai acabar virando embrião de pesquisa. Eu, sim, tô cotado para ser escolhido para virar gente. Coisa fina. Falei aí com uns camaradinhas meus que tem contatos quentes e vai rolar. Se eu for, levo tua irmã comigo. Se ela desencantar daquele 28 desenxabido. 171, tu é um malandro. É só conversa fiada.
Dingobel, dingobel... De onde tá vindo esta música? Que música? Dingobel. É o 86 que acha que é cantor. Vive dizendo que é agente secreto. A mulher dele, a 99... Piteuzinho... Fala baixo, rapaz. Enfim, a  mulher dele é que o juízo do casal e – não sei o que ela vê nele, por que o bicho é mentiroso – já disse que ele está mais para um unipolar, do lado da mania, por isso só pensa grandeza. Coitada. Uma santa!
O botijão sacolejou forte. A luz entrou e houve uma gritaria. Dor na vista pelo clarão. Um rosto gigantesco se aproximou da boca do botijão, como se inspecionasse algo. Os quinhentos eram só olhos e silêncio, congelados pela expectativa. Mexe numa vareta, mexe noutra. Faz cara de que não achou o que queria e volta a fechar a tampa. Uma balbúrdia se seguiu. Xingamentos de baixo do meio e de cima se ouviu. Uma vozinha se destacou num breve silêncio que ocorreu. Eu não quero envelhecer aqui dentro, buááááááá. Vários outros choraram junto.
Alguém, com voz sepulcral, como se fosse a voz do Zé do Caixão, disse: está escrito. A profecia maia não mente. Dia 21 de dezembro o mundo vai se acabar e nós estamos sendo reservados para o fogo devorador e a hecatombe universal. Cala a boca sua besta, uma voz forte lá de cima, ordenou. Quem tá falando? Quis saber o agourento. É o espírito do Montezuma, Teacoatcxtal. Simmmm? Cala a boca, é só “cala a boca” ou quer que eu desenhe? Calarei, ó venerando espírito. Mas que horas o mundo vai acabar mesmo?

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Deu a louca no Papai Noel


Um shopping de South Portland, no estado americano de Manie, precisou demitir um Papai Noel depois que crianças e pais reclamaram que o homem era rude, mal-humorado e que nem mesmo deixava as crianças sentarem em seu colo.

Fonte: G1 (Planeta Bizarro – 07/12/2012)

Parvuíno já havia feito de tudo. Ao longo de um ano, era capaz de trabalhar em mais tipos diferentes de empregos que uma pessoa com duas vidas consecutivas de um Matusalém. Aproveitava a onda de cada momento. Em seu último trabalho na agricultura, como gostava de falar, fora um espantalho. Sim, vestia-se como tal, mas movia-se com a mesma desenvoltura daquele seu colega do mundo de Oz. Também, acho, Parvuíno tinha palha dentro daquela cabeça. O serviço pedia apenas que espantasse as rolinhas e codornizes que vinham comer as sementes da plantação. Antes disso, fora um fazedor de sexo na flor do maracujá. Informem-se a respeito.
Mas a questão agora era simples. Candidatou-se a ser um Papai Noel. Incrivelmente, nunca tentara antes ser o tal bom velhinho. Havia que participar de um curso, disseram. Nada complicado. Apenas alguns modos que o Noel deve fazer para manter o personagem. Parvuíno achou aquilo tudo muito chato. Mas a grana prometia e por período curto. Ensaiar aquele arremedo de sorriso foi de lascar. Sua voz meio anasalada e sem graves robustos, aliás, sem grave nenhum, mal conseguiu o primeiro oh. Acho que pouco melhor que ele só o Spider (Anderson Silva).
Primeiro, ele e os outros tiveram que ouvir uma gravação da risada noelina: Oh, oh, oh, oh. Meia hora depois, não havia mais quem aguentasse. Agora era o pior. Cada qual devia repetir a gravação à risca. Ouviu-se de tudo. Na vez de Parvuíno veio aquela coisa caquética, esganiçada, sem força e vibração. Os papais noeis se entreolharam entre espanto e irritação, porque aquele riso estava mais para um freio de trem sobre trilhos com areia. Sem contar que dava uma vontade louca de rir. E eles riram e debocharam de Parvuíno que rebateu na lata que não era palhaço e, sim, papai noel. Eles riram ainda mais.
Com o humor azedado, Parvuíno foi escalado para a encenação propriamente dita. Vocês sabem. O velhinho entra com um cajado, afaga aqueles meninos e meninas chatinhos que ainda acreditam em papai noel. Senta no trono e aguenta umas boas três horas com  menino no colo, gritando, rindo, puxando a barba postiça ou não, arrancando o gorro, vomitando na árvore, grudando meleca na cadeira, chorando porque a mãe não lhe deu sorvete e quando decidiu fazê-lo foi sobre o papai noel. Malcriações, manhas, birras, fotos e flashes a não mais poder. Ah, tem as mães dementes que querem também tirar foto com o papai noel, sem contar alguns beliscões no traseiro de umas mais assanhadas.
Ao final de um turno de trabalho, Parvuíno estava completamente arrasado. No segundo dia, ele chegou sabendo o que o esperava. Achou, por momento, que até ia se dar bem com uma noelete de sainha curtinha que mais parecia um abajur com babados. Mas era arisca que nem uma rena voadora. Deu-lhe uma rebanada e disse que se gostasse de velho procuraria algo melhor num asilo. Aquilo doeu.
Então veio o primeiro menino. No colo, não, afastou Parvuíno. A fila esperava aflita. Meninos corriam por debaixo da árvore, esfolavam os presentes de mentira sem que os pais se importassem. A mãe deste primeiro saiu pisando duro. O segundo mal fez seu pedido de presente e ele mandou o menino pedir para o pai dele e ainda chamou o pobrezinho de feio. No terceiro, ele amedrontou a menina de tal forma que a garota correu e perdeu-se shopping adentro. Beliscou uns, empurrou outros, disse asneiras para pais e mães e recusou-se também a fazer o oh, oh, oh, oh. Em duas fotos mostrou o traseiro. Ainda vestido, leitores. A bunda, propriamente dita, apresentou depois de tomar umas doses numa garrafinha que trazia dentro do saco de presentes. Mas a esta altura já dera em cima de algumas mães, devolvendo os beliscões do dia anterior e mandou outras tantas darem educação aos seus filhos abusados e mimados.
Em pouco tempo havia uma horda de mães, principalmente, formalizando uma denúncia da falta de compostura do que chamavam de papai noel louco. A segurança do shopping veio de coturno e tudo para cima do Parvuíno que já havia tirado toda a roupa ridícula, debaixo da qual suava bicas e andava, despreocupadamente, apenas de cueca, botas e gorro (sem a barba falsa) apreciando os enfeites de natal.

Deus da Carnificina


Um grupo de crianças brinca num parque. A cena, propositadamente, é distante, como se olhássemos de um segundo andar de um prédio próximo. De repente, dois dos garotos começam a se empurrar e um deles, que aparentemente segura um galho, agride o outro no rosto. Corta.
A cena seguinte, em primeiro plano, um computador e vozes que se alternam decidindo qual melhor palavra se adequa para compor o que parece ser um termo de acordo. À medida que a câmera abre o plano, surgem dois casais. Logo se percebe que são os pais dos garotos brigões. Um casal aparenta melhor condição financeira e o que recebe em sua casa tem uma vida mais modesta.
Terminado o texto do acordo, os pais do garoto agressor se preparam para sair. O outro casal os seguem até à porta. A conversa gira em torno da agressão, naturalmente. O clima é de cordialidade desconfortável, mas dentro dos padrões de respeito e educação. Os pais do agressor concordam que o filho passou dos limites e a mãe do agredido, o tempo inteiro, faz questão de reforçar os dois dentes molares perdidos, o nariz quebrado do filho. O pai minimiza. A tensão é grande, mas toda entremeada por sorrisos. Além de tentarem selar a paz, planejam que os dois garotos se encontrem para os pedidos de desculpa protocolares.
A certa altura, percebendo que a conversa pede um pouco mais de tempo, o pai anfitrião sugere que o outro casal entre novamente para um café. Com a esposa, na cozinha, comenta que o casal do garoto agressor é simpático. Na sala, o casal convidado repete o mesmo comentário.
Nancy e Alan (Kate Winslet e Chistoph Waltz, ambos condecorados com um Oscar) fazem os pais do garoto agressor. Penelope e Michael (Jodie Foster – também já recebeu um Oscar – e Jonh Reilly) fazem os pais do agredido.
Nancy é rica, educada e bem vestida. Alan é advogado de uma multinacional de medicamentos. Penelope é escritora e trabalha com arte. Michael é vendedor de utilidades para casa. Entre xícaras de café e pedaços de torta, os diálogos vão se desenvolvendo e todo o verniz de civilidade, educação e bons modos vão se deteriorando. Piora tudo quando Michael, homem que tenta o tempo inteiro compor um tipo mais polido e agradar à esposa, decide ser ele mesmo e expor seu desconforto. Ele é rude, desinteressado e distante.
Todo o tempo, pelo celular, Alan orienta pessoas da farmacêutica a respeito de um remédio que tem causado efeitos colaterais muito mais severos, mas faturaram milhões de dólares mesmo sabendo disso. Alan é um cínico profissional por trás do homem ocupado e profissional bem sucedido. Sua esposa é superficial e cega aos maus feitos do filho, a quem o pai chama de marginal. Passa mais tempo tentando controlar o marido e suas atitudes desrespeitosas e arrogantes que ele nunca disfarça. É de uma fala sua que se houve o título do filme. Ênio vem a ser da deusa da carnificina. Segue Ares, deus da guerra, ao lado de outros deuses igualmente aterradores: Éris, deusa da discórdia; Deimos, deus do pânico e Fobos, deus do medo.
Penélope é uma mulher rígida, afeita a valores e normas os quais devem ser seguidos à risca sem qualquer concessão. Adepta do politicamente correto, escorrega em sua própria intransigência. A situação degringola de vez quando Michael resolve beber, no que é seguido por Alan e depois pelas mulheres, que cobram seu direito nisso também. A bebida desinibe e despe os últimos vestígios de controle e os personagens dão vazão às suas verdadeiras opiniões uns sobre os outros e sobre o episódio.
Vômitos, gritos histéricos, palavrões e deboche tomam lugar das palavras bem postas e rapapés da educação burguesa. Os casais alternam acusações entre si no que desmontam as aparências de cada qual, expondo suas contradições. Ao mesmo tempo se voltam uns contra os outros revelando as fissuras de cada relação. Algumas vezes as mulheres farão uma aliança contra os homens e vice versa.
Os quatro atores estão soberbos e na medida certa de cada personagem. Desconto para Jodie Foster que, quando representa a sua personagem quase bêbada, parece exagerada e uma representação forçada.  
Levantado o véu e mostrada a crua hipocrisia que se carrega não como fardo, mas como disfarce, instrumento de relações, ninguém é normal  visto de perto. Nós todos, para aguentar até aqueles que dizemos amar, temos que fazer de conta, não poucas vezes, que eles são aquele modelo que só existe em nossa fantasia. O amor, talvez, faça com que nosso olhar seja compreensivo e tolerante e o desamor é quando olhamos o outro sem qualquer filtro. Ele/ela é aquela coisa asquerosa e vil que detestamos sem qualquer vestígio de empatia. Nisto estamos empatados com todos, exceto quando encontramos aquele/aquela que, por alguma forma de coincidência, aceita nossos defeitos. Ou porque os tem em igual intensidade e forma ou porque, sei lá, foi tocado por uma de nossas parcas virtudes.
A cena final com os casais termina de forma abrupta e, como no início, corta para o parque. Lá os garotos, provavelmente alheios aos pais e seus valores, cobranças e necessidade de justiça, estão conversando amigavelmente e novamente reunidos aos amigos.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

HOMENS E DEUSES – o filme


Nas montanhas do Atlas, no Magreb argelino – Tibhirine, uma pequena comunidade vive seu ritmo tranquilo e em paz. Um mosteiro de monges trapistas arrodeada de muçulmanos a quem servem de muitos modos: assistência médica, vestimenta, trabalho. Uma fórmula estranha quase borra a fronteira entre as duas religiões. Descubro que a tal fórmula é o amor e seus frutos de respeito e tolerância.
        De repente, rumores de que fanáticos islamitas, motivados pela fé distorcida e o desejo pelo poder, começam a agir em vários lugares do país. Atacam covardemente pessoas indefesas, homens e mulheres que se vestem de forma diferente, são estrangeiros ou não professam sua mesma visão de mundo. Decapitações e degolas são modos sinistro de infundirem o medo.
        Aos poucos, a comunidade ao redor do mosteiro é tomada de assalto pelo medo e preocupação. Os monges são colocados em cheque: deixar o lugar e voltar para a França ou esperar e enfrentar o inimigo ao lado de “seu povo”? Cada um dos oitos monges terá que enfrentar seus terrores, sua escolha de fé. Angústia, dúvida, medo da morte (sacrifício, martirização), se apoderam deles como demônios que os açoitam questionando suas escolhas de vida.
        Um dos vários momentos bonitos deste filme, Christian, líder do mosteiro e mais dois, conversam com o líder da comunidade mulçumana. Analisam as possibilidades. Este último defende que fiquem, lembra o início do mosteiro e o abrigo que ele sempre representou para eles. Um dos monges diz que são pássaros sem galho para pousar. A mulher do líder muçulmano intervém e diz: nós é que somos pássaros e vocês são os galhos.
        O título do filme, extraído da passagem de Salmos (82.6) – “Eu disse: sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo.” – vai se tecendo nos diálogos em que a fragilidade humana se apresenta mais clara. Deixar-se morrer pela mão de loucos fanáticos ou tentar preservar a vida? A significação do salmo se constrói não na autoalegação de grandeza, orgulho, mas no apequenamento, na entrega. São deuses porque, a despeito de tanta fragilidade, ousam seguir o caminho de Jesus e fazer o que ele fez. Ele sim, a face humanizada de Deus, único  modelo e forma de percebermos AquEle.
        O mosteiro é, por fim, visitado pelo inimigo três vezes. Numa delas, o chefe mujadin pede ajuda médica e remédios. Na segunda vez, eles trazem um ferido que é cuidado. Na terceira, os monges são sequestrados e mortos.
        Não há lógica humana que explique manter-se ao lado da paz quando lhe apontam um fuzil e lhe ameaçam a vida. Não há sentido humano possível em morrer quando se faz o bem ou o que é justo é subvertido em nome de Deus. É uma frase lembrada no filme. Em nenhuma situação os homens fazem o mal com tanto ardor e dedicação, quando o fazem em nome da religião ou de Deus (Pascal). 
Esta história verdadeira e trágica, em meio à insanidade das guerras religiosas de hoje, dá-nos o verdadeiro sentido de Cristo e do amor que Paulo canta em 1 Coríntios 13.

“O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acaba;”

O duplo


Entre tantos aforismos que preenchem o livro bíblico de Provérbios (15.13), deparamo-nos com um que diz assim: O coração alegre aformoseia o rosto, mas com a tristeza do coração o espírito se abate.” Esta é a versão Almeida Revista e Atualizada. Outras versões enriquecem o texto como se fossem outros ângulos de uma mesma pedra preciosa. A Edição Pastoral, da Editora Paulus, diz ligeiramente diferente: Coração contente alegra o rosto, mas coração aflito deprime o espírito.” A Nova Tradução na Linguagem de Hoje não usa a palavra coração, é mais direta e simples: A alegria embeleza o rosto, mas a tristeza deixa a pessoa abatida.” Por fim, a Nova Versão Internacional colore a mensagem com esta forma: A alegria do coração transparece no rosto, mas o coração angustiado oprime o espírito.”
        Que coração é este de que fala o escritor? A versão Hebraica da Bíblia abarca vários sentidos e é muito mais direta quando trata do tema, pois o que para nós é metáfora, isto é, coração igual a mente, sentimentos, para eles pode ser homem interior, mente, consciência, vontade, sede moral, dos apetites, das emoções e paixões. Resumamos: para este momento, todos estes significados como o conjunto do que compõe o que chamamos de homem interior. É o mesmo sentido em que Paulo usa esta expressão em Romanos (7.22), 2 Co (4.16) e Ef (3.16). A leitura dos três textos nos faz perceber que aí reside o verdadeiro eu de cada um de nós.
        Mas onde está este eu? Carl Rogers, psicólogo humanista, argumenta que uma das nossas fontes de desencontro interno é viver em luta entre um eu ideal – existente na mente, projetado como um sonho, aquilo que eu gostaria de ser – e o eu real – apequenado, disforme, desencaixado, habitante do cotidiano duro e seco. Romanos 7, Paulo encontra-se numa luta interna entre estes dois eus. Diz ele: “Porque o que faço não o aprovo; pois o que quero, isso não faço, mas o que aborreço isso faço. 
(7:15) Um eu alegra-se na “lei de Deus”; o  outro, nos prazeres da carne. É um mesmo homem. Ambivalente. Incontrolável. Sem saída, apela como que a esmo para quem pode livrá-lo desta morte em vida: “Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?” (7:24).
        Rogers chama esta situação terrível de incongruência. Traduzindo: a incongruência é o processo  em que o autoconceito não corresponde às experiências reais. Penso de mim isto e aquilo, mas vejo outro de mim agindo e existindo, distante do que penso ser.
        Mas voltemos ao escritor proverbiano. O homem interior que assumiu o desafio de ser íntegro, coerente, funcionará de forma organizada. A experiência de vida corresponde ao que é internamente. Neste aspecto, a descoberta de Paulo pode nos ajudar. No versículo 25 ele descobre – pela graça de Deus e por Jesus Cristo – que este homem interior – com seu entendimento – serve à “lei de Deus” e o homem exterior – carnal – serve à lei do pecado. Curioso, não? O que Paulo argumenta em dois terços do livro é que agora, ele e os que creem, estão mortos para a lei do pecado, nascidos sob a graça, mediante a fé, são agora de outro reino. Lei do pecado era a lei que determinava a condição de ser humano caído, separado de Deus.
Por outro lado, o homem interior (coração) triste, sofrido, afligido, dorido, destroi o espírito. Sim, espírito significa o hálito de vida, o sopro da vida. A centelha da existência estará, literal e irremediavelmente perdida ou sem o alento que anima o corpo. O homem interior desconjuntado, incoerente produz semblante triste. E não há como ser diferente. O rosto é o espelho da alma. Dizem que os os olhos o são, mas eles, certamente, desenham todo o resto.
Uma das coisas que produzem esta tristeza é viver em conflito sem buscar saída. Ou nem tanto. Alguns estão tão anestesiados que não sabem quem são. Contentam-se em refletir os outros. Quero ser aquilo que não sou. Visto-me da melhor forma. Uso palavras e modos que agradam aos outros. Esforço-me por ser igual aos demais. Sigo a moda. Renato Russo cantou em “Quase sem Querer” que mentir para si mesmo é sempre a pior mentira. A música fala de alguém que vive pelo padrão alheio. Quer agradar a todos e nesse intento infeliz se faz em mil pedaços, desperdiçando muitas boas chances porque estava ocupado demais tentando provar para todo mundo que não precisava provar nada para ninguém.
Mário Quintana, poeta gaúcho, reflete em “O Velho do Espelho”: “Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse /
Que me olha e é tão mais velho do que eu?” Amanhã você se olhará no espelho. Aquele(a) que você verá, quem é?

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Elefante papagaio


Um elefante da Coreia do Sul tem surpreendido os visitantes do Everland Zoo por conseguir imitar a fala humana. O animal diz palavras em coreano que são facilmente compreendidas por quem entende a língua. Para tornar o fenômeno ainda mais incomum, Koshik vocaliza com a tromba em sua boca.

Fonte: Globo Ciência 1/11/2012

         Papagaios, periquitos, corvos, cacatuas e até araras, falam. Isso todo mundo sabe. Então, foi uma surpresa “descobrir” que um elefante falava. Coreano, mais precisamente. Não seria inglês, coisa que qualquer um hoje fala. Português, com sua sonorização melódica. Não, meus caros, o bicharoco fala uma língua gutural, cheia de nuances que basta uma pequena mudança de entonação e o sentido muda radicalmente. É como a piada do fanho.
        Vá lá que a eloquência de Koshik não seja das melhores. Diz cinco palavras, que se sabe. Mas, dizem, tem discurso escrito e treina atualmente para entrar na política. Aqui no Brasil. Pois na Coreia políticos que pisam na bola costumam cair em tal desgraça que alguns, por vergonha extrema, se suicidam. Não senhoras e senhores, o costume ainda não pegou por aqui e, pelo visto, nem com o mensalão pegará.
        Dr. Doolitle 1 e 2 já sabia que os bichos são uns faladores. Mais recentemente, “O Zelador Animal”, outro filme babaca, um sujeito conversa com os animais para resolver suas pendengas de vida chifrins. Neste caso, o bobão precisa de conselhos amorosos e, compadecidos por tamanha antice, os animais resolvem dar-lhe umas boas dicas de como reconquistar a menina, coisa que só fizeram por que ele lhes tratava bem. Antes deste lançaram os horrorosos “Alvin e os esquilos” 1,  2 e, arre égua, 3. Mas eles ameaçam seguir indefinidamente. Não é pelos esquilos falarem, a música destes e a atuação dos atores humanos é que é uma lástima.
        Estudiosos desacreditados afirmam desde sempre o que você suspeitava e mais que isso, tinha certeza. Afinal, horas e horas conversando com seu cachorro nunca foi novidade. Especialmente – parafraseando Drummond – naqueles dias em que talvez pelo efeito da lua, solidão, o conhaque tenha lhe deixado comovido como o diabo.
        Você se acha anormal porque conversa com seu gato ou cachorro? Duvido. Não vale incluir aquela sua tia solteirona que sempre conversou com suas samambaias e ainda dizia que o segredo do viço das plantinhas eram as horas dedicadas a conversas só para saber da vida. Claro que as plantas tinham muito a dizer, defendia ela. Ou você acha que só quem tem neurose é você? Desafiava a tia. Mas fora alguns experimentos esquisitos em que as plantas emitem um zumbido contínuo, ainda não se provou fala nenhuma, daí que sua tia pode estar simplesmente alucinando. Mas nada perturbador. Botemos na conta da excentricidade.
        A literatura e o cinema sempre usaram o recurso da fala nos animais porque desde que o mundo é mundo os bichos falam, sim, senhor e senhora! Ninguém viu nem notou, mas um desenho perturbador – “O Segredo dos Animais” – revela o que o George Orwell, em “A Revolução dos Bichos” tirava o véu de mistério. O primeiro inspirou-se, certamente, no segundo. Com a diferença clássica, os porcos comunistas orwellianos são, no Brasil, petistas. A metamorfose se explica por si só. Eles chegaram ao poder. Logo, tucanos ou quaisquer outros animais politizados se transformam em porcos arrogantes, gulosos, cínicos e indiferentes. Bom mesmo só o bacon e as costelinhas fritas... deles, por suposto.
        Voltando ao vocabulário de Koshik. O que alguém faz com apenas: olá, sente-se, não, deite-se e bom? Imagine você reduzido a isto? Curiosamente, o pobre paquiderme só fala aquilo que faz parte do circo em que trabalha por um pouco de palha. Não sei se ele troca a ordem das palavras. Quero dizer, emprega na hora errada. Quer comer Koshik? Olá. Tá apertado? Bom. Mas a descoberta não revela que o elefante seja burro. É só monoglota pentavocabular.  A expressão não existe, inventei.
        Não nos esqueçamos do grilo falante. É um sábio! Dá conselhos incríveis ao Pinóquio cabeça de pau, ainda por cima mentiroso. Sugiro, inclusive, que o grilo se torne figura arquetípica do mundo falante animal.
        Não sei vocês, mas prefiro, muitas vezes, a fala animal  do que de certas pessoas. Lembraram daquele(a) amigo(a) chato(a) que não para de falar um único minuto, não é? Tem gente compulsiva, quando se trata de falar. Metralhadoras. Falam assim sem pensar e porque não querem pensar.
Vão contando uma história após outra, todas banais. Ou simplesmente são narcisistas ao extremo e só eles tem o que dizer. Você é só plateia. E se indignam se você, abusado e zonzo de tanto lero-lero, vira a cabeça distraído. E você ali, esperando o infeliz respirar para cortar a conversa e ele: patati, patatá, blá-blá-blá. Ô gente de fôlego comprido! Será que já tentaram mergulho em apnéia? Tenho certeza que ganhariam o campeonato mundial fácil.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Aconchegadora Profissional


Jackie Samuel, 29, uma moça Rochester, Nova York, tornou-se “Cuddler Professional”. Resolveu abraçar, dormir e acalentar pessoas por dinheiro para pagar seus estudos. Ela recebe em torno de R$ 525 por dia (cobra US$ 60 a hora), e “dorme” com até 30 pessoas por semana, incluindo mulheres, aposentados, veteranos de guerra, ou seja lá quem estiver carente.

Fonte: Site Vírgula (05/11/2012)

A palavra mais próxima que encontro, em nordestinês, é chamego. A moça chamegava os outros e só. Este “e só” ela fazia questão de enfatizar. Como aquelas meninas bonitinhas em festa de São João que vendem beijos em barraquinhas, Kate vendia chamego.
Aconchegava quem pagasse, preço que ela cobrava por hora. Não importava o sexo. A condição era ter carência, posto que, é de se entender, apenas gente solitária e carente recorreria aos serviços aconcheguísticos oferecidos pela profissional.
Mas ninguém se mete em, digamos, tal profissão sem percalços. Como separar o necessitado de aconchego de outras intenções não confessadas na hora da contratação do serviço? Esta e outras questões faziam parte do curso de chamenguento profissional que Kate iria ministrar.
Primeiro, ela explicou por que se tornou aconchegadora. A necessidade faz a invenção. No seu caso, duas necessidades. A sua e a dos outros. Queria entrar para a faculdade e percebeu a enorme quantidade de gente sozinha e carente. Pronto, estava aberto mais um mercado de serviços de relacionamento humano. Embora, lembrou Kate, lá no início, tenha aconchegado um cachorro de uma ricaça que não dormia sem a dona.
Regra um. O contratante não toca nas partes cobertas do corpo do aconchegador. Kate atende de pijamas, que deixa à mostra apenas mãos, pescoço/cabeça e mocotó. Houve um fetichista que quis ficar íntimo de seu pé, mas não rolou. Regra dois. O cliente não pode ficar nu. Regra três. Explicar na contratação que não se trata de prostituição e que pela manhã, acabou o relacionamento.
Derivada da terceira regra, a regra quatro limita o número de encontros para o relacionamento comercial não desandar. É que o povo se acostuma fácil. Mas, passados quinze dias, pode-se voltar a aconchegar o cliente novamente. Assim, não gera dependência, do que já falaremos.
Kate abriu um pequeno parêntese para contar que já existe gente viciada em chamego pago. Ela foi pioneira do serviço, mas aberto este ramo de trabalho, um monte de gente agora sobrevive embalando os outros. Recentemente foi aberto o AA – aconchegados anônimos – para tratar deste mal moderno.
Regra cinco. Importantíssima. O aconchegador aconchega em forma de conchinha. Seja para dormir – fatura-se mais, pois são mais horas – ou apenas para dar este calor por alguns poucos momentos. Futuros chamegadores! Nunca. Ouviram? Nunca mesmo, um aconchegador fica na frente de alguém do sexo masculino. Quer saber? Nem feminino também. Precisa explicar? Aprendi isso, disse ela, a duras penas, para não dizer outra coisa.
Uma atenta estudante quis saber. E se rolar um clima de parte a parte? Aí cruzamos a linha fatal que transformaria nosso serviço em prostituição. Mas se há sentimento, não é prostituição, insistiu a impertinente. Case-se ou vá morar junto com o cliente. Num instante o clima acaba. Respondeu Kate, enfurecida.
Regra seis. Aprenda a identificar os adictos do aconchegamento. Querem repetir o serviço várias vezes. Oferecem valores acima do permitido pelo sindicato. Dão presentes. São infiéis. Quero dizer, se agarram a qualquer um aconchegador. Parecem cachorros pequinês no cio. Identificou o viciado – não chamem assim por aí, eles agora se dizem uma minoria e pode-se incorrer em discriminação – encaminhem para o serviço público ou algum AA.
Um último alerta. O mercado está inflado de gente que se diz aconchegador, mas não é. Por isso a colega aqui foi confundida com uma moça da vida fácil. Há bairros chamados agora de aconchegolândias, tomados de viciados que atacam as pessoas implorando por aconchego. Isso no meio da rua e em pleno dia. Setores da cidade acumulam montes de pessoas aconchegando-se umas às outras sem o menor pudor. Um drama de saúde pública e de segurança. Passem na secretaria de recebam suas carteirinhas.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Vida de super herói


A PM (Polícia Militar) do Maranhão conseguiu prender uma mulher suspeita de escalar muros e paredes de prédios para roubar apartamentos em um condomínio fechado localizado em São Luís nessa quarta-feira (31).

Fonte: UOL (01/11/2012)

Vida de super herói é dose. O sujeito ou sujeita tem que viver dia e noite alerta para salvar gente em tudo quanto é situação, sem contar as bigs ameaças de super marginais querendo dominar o mundo ou destruí-lo só por troça ou vingança por não ter achado o seu lugar merecido ou ainda porque foram sacaneados no ensino fundamental. Isso sem direito a hora extra, décimo – isso é só para os super pilantras políticos que tem até décimo oitavo salário – seguro, plano de saúde. E ai dele se falhar uma vezinha. 
Em Los Angeles, na calçada fama, um monte de supers desempregados perambulam e retiram o sustento tirando fotos com turistas, inclusive mexicanos. Moram em muquifos, comem mal e para segurar a onda se entopem de drogas e bebidas o que resulta, não poucas vezes, em dividir celas com bandidos que outrora capturaram.
O Hulk, como era de se esperar, surtou outro dia e partiu para um turista porque o cara não gostou da cara do próprio na foto e recusou-se a pagar. Hulk até disse que a cara feia foi um sanduiche estragado, mas não adiantou. Terminou em cana. Gato Félix desentendeu-se com a Betty Boop. Dizem que dividiam o cafofo, mas o gato pegou a dita enrabichada com o Homem Aranha que até alegou inocência, pois teria confundido a Betty com a sua consorte aracnídea. Em sua defesa, ainda, disse que havia bebido um pouco mais, o que o fez enganar-se. Aliás, por causa das contínuas ressacas e farras, tomou uma carraspana do Super Homem, que lhe cobrou postura mais profissional. Homem Aranha também foi enquadrado pela polícia.
Aqui entra a Mulher Aranha. Desgostosa com a traição, entrou num cargueiro de forma clandestina e veio dar no golfão maranhense, quando foi descoberta e jogada ao mar. Por meses sustentou-se com as moscas e baratas do navio e um ou outro rato que conseguiu capturar. Catadores de sarnambi a encontraram semimorta numas pedras na ilha do caranguejo. Alguém disse que era uma sereia, mas barangada, logo viram que faltava muito para a gostosura das sereias. Faltava o rabo depois de meses passando fome. Se é que me entendem.
Desesperada e longe do mundo superheróico, passou a realizar pequenos furtos em condomínios de predinhos de três andares. Arrumou uma comparsa que fazia ponto no porto do Itaqui que logo topou pois, longe de seus melhores dias, desinteressava aos marinheiros, mesmo aqueles com meses de mar. E, pasmem, não é que a briosa polícia do Maranhão a capturou? Há quem diga que estatelou-se do segundo andar numa incursão e desmaiou, por isso a pegaram.
Desgostosa e vendo o quanto desceu, achou um ghost writer para contar um pouco de suas memórias e tentar ganhar algum. Mais interessante que sua vida, foram as fofocas das ruas sobre os colegas que deixou para trás. Sobre o Batman reservou as piores coisas. Deixou no ar que era uma vingança por que o morcegão lhe deu um fora. Disse que ele arrastava a capa pela Super Girl, mas esta lhe enrolou apenas para poder dividir a comida ele ainda conseguia, pois, de verdade, tinha um caso meio secreto com a Mulher Maravilha por quem o Super Homem, mesmo casado com uma professora, já havia se declarado umas poucas vezes, mas esta, como boa amazona, não era chegada no sexo oposto. Desencantado, dizem que o pobre tentou até o suicídio duas vezes, mas homem de aço é duro de morrer.
Enfim, sobre o Batman, disse que estava decadente e que andou vendendo drogas para o Bob Esponja que havia se tornado traficante, pois foi a única maneira de dar tudo o que o seu namorado Patrick exigia, pois se considerava uma dondoca aristocrática. Sugeriu ainda, que o serviço psiquiátrico da Liga havia declarado que ele era incapaz de trabalhar. E acrescentou, o Batman havia se tornado amigo íntimo do Coringa. Este, disse ela, não era tão mau caráter quanto se dizia por aí, embora fosse louco.
A Mulher Maravilha é quem ainda estava um pouco melhor, pois malhava bastante e tinha um corpão legal. Antes fazia pip show, mas desentendeu-se com seu cafetão e foi para as ruas. Fez pontinhas em filmes de terceira e um ou dois comerciais. Tudo isso a troco do popozão que tinha, razão pela qual ela aboliu a capa, pois os turistas só queriam tirar fotos se esta parte do corpo da heroína estivesse à mostra. De vez em quando, ela se dava uma palmada e dizia: isso vende! A Mulher Aranha contou um episódio em que um ciclista drogado passou a mão no traseiro maravilhoso da Mulher Maravilha que, indignada, teve que chamar a Liga Justiça que o Super Homem preside. O cara fugiu rindo e não foi pego. Ela ficou lamentando na calçada que o cara lhe devia dez dólares pela palpada.
Super Homem é um que, segundo conta,  tem efisema e bronquite crônica porque viciou-se em fumar kriptonita. Mas ainda dá uma ordem no lugar. Disse que quando se aposentar, entrega a direção para o Dart Vader que é quem mais fatura ultimamente com fotos. Seria o Batman, mas está preso e o que assumiu o seu lugar está mais para um Robin disfarçado, sem contar que passa o tempo fazendo trechos líricos no metrô. Diz que tem talento e a carreira vai decolar. O pessoal acha que é um tolo deslumbrado.
Por fim, a Mulher Aranha desculpou-se, disse que estava subindo pelas paredes pelo tempo no mar, e já que estava dentro dos apartamentos resolveu pegar umas coisinhas. Emprestadas, enfatizou. Que devolveria no tempo apropriado. A delegacia agora está com problemas, pois os fãs estão fazendo fila para vê-la. Já se disse que a Sônia Braga, aquela do Beijo da Mulher Aranha, já acampou na porta pedindo a soltura de sua colega. Aproveitou para desancar a última Gabriela. Disse que se fosse ela teria incendiado a Globo de tanto sensualidade. Esta gente é alucinada!

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A máquina acaba briga


Chineses criam "Detector de Humor" para salvar casais em conflitos. Os chineses não cansam de nos surpreender, não é mesmo, internauta? E se você acha que já viu de tudo, então senta para receber essa notícia: para (tentar) resolver as brigas rotineiras dos casais, uma dupla chinesa desenvolveu um "detector de humor", capaz de mediar conflitos.

Fonte: Do UOL Tablóide em São Paulo (11/10/2012)

O mercadão de terapias para casais é quase infinito. Quem não vende terapia, escreve livros de autoajuda, dá conselhos, ensina mandinga, simpatias. Neste quesito, nós, latinos de influência católica, inventamos até um santo, dito casamenteiro, que resolve a solteirice daquelas moças que, sabe-se lá por quê, não encontraram seu príncipe. Não foi por falta de bebum, do que somos fartos.
Por que o santo só resolve o vexame das moças? E eu sei lá! Ainda não vi homem botando o santo de cabeça para baixo e nem se esfregando no pau, nem tirando cascas desse para fazer chá. Opa! Não me levem a mal com esta conversa de pau. Olhem as mentes sujas! Pau, árvore, madeira – literalmente falando – que, diz a lenda, teria a capacidade mágica de, não sei se depois de benzido, atrair os homens como besouros tarados pelo feromônio das besouras ou cães atrás das cadelas, correrem às mulheres que nele se esfregam. Também literalmente.
Relação de casal é quase tudo igual. Gire o globo e ponha o dedo em qualquer lugar e verá que as picuinhas, os maus humores, os diálogos de surdos mudos, os desentendimentos, são clichês puros. Menos nas latitudes e longitudes dominadas pelo islamismo, onde mulher compara-se a coisa. Mesmo aí, com burca e tudo, elas acham formas de estabelecerem seu espaço de manobra. Ou seria impossível sobreviver como algo assemelhado a gente.
Os chineses inventaram a pólvora, bússola, papel e um sem número de outras coisas. Bo Li é chinês e, esperto como só eles sabem ser, teve a fascinante ideia de criar um aparelho que resolveria brigas de casais. Estava cansado da senhora Li lhe detonar a paciência. E se houvesse um dispositivo que alertasse ou mesmo interferisse nas brigas dos casais? Comentou com um amigo que logo lhe lembrou a versão chinesa de que em briga de homem e mulher não se deve meter a colher. Bo não se deixou vencer pelo pessimismo do amigo. Haveria de criar a colher que acabaria com as brigas dos casais.
Quantos homens e, vá lá, mulheres, não estão cheios das brigas? Argumentava. E se houvesse um alarme que percebesse as primeiras palavras ferinas e a desfeita? E se fosse capaz de detectar as ironias mortais? Mais ainda, cheirasse as pisadas de calos? O aparelho se converteria numa espécie de campainha do Pavlov. Só que em vez das pessoas salivarem, parariam a briga. Quero dizer, o início dela.
O amigo, que ouvia atentamente, quis saber como é que as pessoas desafogariam suas frustrações depois de tantas vezes interrompidos, justo quando tripudiariam sobre seu cônjuge, descontariam uma contrariedade. O número de agressões passionais aumentariam, alarmou. Pior, até mortes, aconteceriam com tanta raiva guardada e sem ter para onde ir. O homem era um catastrófico de nascença.  Bo, ao contrário, era um otimista maníaco.
Que nada! Diminuiu o negativismo do amigo. As pessoas vão usar esta energia de forma (re)produtiva. Depois dos cinquenta milhões de tons de cinza e uma pitada de kama sutra, as pessoas desafogarão esta energia em sexo selvagem.
Com o pé atrás, o amigo de Bo decidiu entrar na empreitada. Qual será o princípio da detecção? Perguntou. Bo tinha tudo resolvido depois de horas pensando confucianamente. Pelo tom de voz, respondeu na lata. Um programa armazena diversos tons de voz carregados daquelas maldades típicas com que se espezinha a mulher ou marido. Uma voz – que tem que ser delicada e sensual – disparará uma frase pedindo calma, alertando para diminuir a aspereza da voz ou coisa assim. Ótimo, aplaudiu o outro. Faltava definir as frases. Vamos nós mesmos testar em casa. Dona Li será um teste de fogo, provocou o amigo de Bo, que riu amarelo – olha a piada infame.
Uma semana depois, Bo encontrou o amigo. Estava meio desanimado. O outro ria. Em sua casa o aparelho funcionou às mil maravilhas. Dona Li superou o aparelho? Perguntou. Mais ou menos. Quando ela começava a sair dos trilhos o aparelho funcionava. Já no final da semana, ela ganhou uma espécie de imunidade aos alertas e dava tanta importância às frases quando se dá para aquelas das cancelas de shopping. Pior, meu amigo, cismou que a moça tinha uma voz sensual demais e quis por que quis saber onde eu tinha arrumado aquela zinha.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Fecharam o purgatório


O papa Bento XVI declarou nesta quarta-feira que o purgatório não é um lugar do espaço, do universo, "mas um fogo interior, que purifica a alma do pecado".
O Pontífice fez estas manifestações perante 9 mil pessoas que assistiram à audiência pública das quartas-feiras, cuja catequese dedicou à figura de santa Catarina de Gênova (1447-1510), conhecida por sua visão sobre o purgatório.

Fonte: site Terra (12 de janeiro de 2011)

Ele estava azedo. Quis saber por quê. Balbuciou algo ininteligível. Se fosse minha avó, diria que ele budejou. Não está no Aurélio e, suponho, o Houaiss também desconhece esta flexão corruptela no passado do verbo balbuciar. Ele, explico, é um velho amigo. Não declinarei o nome, ainda que inventado. Religioso das antigas, daqueles que não come carne na semana santa e guarda com genuflexão dias santos e festas, com todos os ritos que conhece. Não consta, para mim, que ele se flagele com um cilício, por exemplo, mas andou de joelhos algumas escadarias.
Como disse, indaguei o motivo de tamanha desconsolação. Movimentos lentos, palavras medidas e um ar de velório, só disse: o purgatório. Mesmo assim, a palavra saiu sumida da boca. O mistério só aumentou. Pensei no pior. Estaria com os dias contados? Soubera de uma doença terminal? Minutos depois, ainda como que em transe, acrescentou: o papa. Tentei juntar o papa e o purgatório, mas por uma dificuldade dedutiva de meu espanto, preferi esperar. Pensei até em me aconselhar com Dante, sei lá, folhear a Divina Comédia até encaixar as duas informações, mas seria perda de tempo. Em toda a trajetória pelos círculos infernais, Dante encontrara desafetos reais que ali colocara por vingança, dizem, mas absteve-se de colocar qualquer Papa no lugar.
Longa espera. Ele resolveu falar. O Papa acabou com o purgatório, você pode imaginar isso? Perguntou e, sem esperar uma resposta, que eu não tinha, emendou: como é que vai ficar tudo? Se mexer no purgatório, onde é que fica o céu e o inferno? Sua Santidade afirmou que o purgatório não é um lugar. Passei a vida sabendo que é um lugar. O catecismo dizia. Os velhos professores de religião tinham certeza. Um lugar com endereço fixo. Abrigou milhões por não sei quanto tempo e agora, assim sem mais nem menos, desapareceu. Onde essa gente foi parar? Despejados como moradores de rua incômodos. Estou sem chão e agora, sem purgatório.
Quando eu imagino que a gente quase podia fazer um turismo mental no purgatório, tamanho eram os detalhes que nos diziam: pracinhas, ruas simpáticas com vendedores de bugigangas chinesas, lugares legais para comer e conhecer gente. Claro que teria falta d’água, apagões, malandros, políticos corruptos, poluição, mas nada insuportável. Quer dizer, antes de estar lá, você como que desenvolvia uma relação afetiva com o lugar e de repente acabou. 
Estou com medo, queixou-se. Agora é céu de um lado, inferno do outro e no meio o nada. Sem uma estação intermediária para resolver aquelas pendências que a gente tem, você sabe, procurou minha solidariedade, talvez, é como um cara ou coroa. Quer dizer, uma coisinha assim de nada pode me jogar nos quintos, pois a balança vai pesar pra um dos lados e aí, já era.
 O Papa disse que o purgatório é tipo um fogo purificador dentro de nós. Não sei não, desde que o mundo é mundo purgatório é um lugar onde as almas semidanadas descontam o excesso de pecado. Precisa mesmo ser um lugar, para acolher esse monte de gente. Ter instalações adequadas e os locais com profissionais experientes para fazer a limpeza ou ensinar seja lá o que se precisa para aliviar o peso. O Papa deve saber o que diz, mas quero ver como é que a gente transforma um lugar numa abstração.
Tem mais. Este novo purgatório interior acontece antes ou depois da morte? Não ficou claro. Tem um estágio de aprendizado de como carregar o purgatório inteiro nas costas? É portátil? Tipo: cabe num pen drive? Há que pensar também na temperatura deste fogo purificador interno. Como se sabe, o purgatório antigo era quente, mas suportável, pois quente mesmo é o inferno. Convenhamos, uma coisa é um fogo fora, você se afasta, se esconde atrás de algo, coloca os recém chegados na frente. Mas com o fogo dentro de si fica difícil. Haverá algum tipo de termostato para regular o calorão? Estou cheio de dúvidas, você me entende? Eu não entendia. Nunca cogitei o purgatório e nem sabia que havia tantos pormenores envolvidos nesta moradia, ainda que temporária, segundo disse meu amigo.
De qualquer modo, estava penalizado pelo desamparo do meu amigo. Pensei em dizer que o Papa falou apenas figuradamente, que fez um exercício retórico teo-filosófico, mas não adiantaria. Não estava sendo fácil para ele suportar que aquele lugar simplesmente tenha desaparecido. Pensei em sugerir que estava ocorrendo um programa imobiliário celestial e que precisaram do espaço que estava meio decadente como os centros velhos de uma metrópole, com montes e montes de gente sem fazer nada, esperando o tempo passar para poder subir de degrau espiritual. Mas até eu achei a ideia meio maluca.
Meu amigo continuava confuso. Com esta mudança, disse ele, depois de longo embatucamento, acabo virando protestante, pois eu lhe pergunto, de que adianta um católico sem purgatório? De repente, seu rosto se iluminou, quem sabe, já meio arrependido de ser protestante. E se o santo padre mandasse construir um purgatório novo, num lugar menos mal afamado? Espaço entre o inferno e o céu não falta.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O apocalipse do Silva


O mundo vai acabar às 16h desta sexta-feira (12). É isso que cerca de 120 pessoas em Teresina esperam que ocorra em pleno Dia das Crianças. Elas já se preparam o “juízo final” confinadas na casa de um suposto profeta.
Segundo o cearense Luiz Pereira, 43, radicado na capital piauiense, “a besta fera” vem acabar com o mundo nesta sexta-feira e só vão se “salvar os seguidores dele.”

Fonte: UOL (Aliny Gama - 12/10/2012)

Confesso que tenho uma queda pelos profetas do fim do mundo. Talvez mais alguns anos de terapia expliquem. O mais incrível, a história nunca muda. Um anjo segredou ao ouvido sacrossanto do profeta que dia tal, às tantas horas, este velho mundo terá, afinal, seu acerto de contas. A insistência com este enredo é inacreditável. Seria o mesmo anjo? Sabe-se que os anjos vivem pacas. Pacas?! Que seja. Ocorre-me que este tal anjo, só de troça, traquinas, moleque no sentido jocoso do termo, solte um hoax, um post falso na internete espiritual. Deve até usar uma daquelas máscaras do V de Vingança porque ainda não foi identificado.
Um anjo “aloucado” com uma ideia fixa me parece improvável, mas quem pode garantir o contrário? Prova é que a toda hora se marca o fim do mundo. O Silva, o profeta, não só ouviu dia e hora, como acrescentou um personagem que estava meio em baixa por estes dias: a besta fera. Em tempos em que os monstros que me aterrorizavam quando criança se tornaram brinquedos e protagonizam filmes sem conta na sessão da tarde, uma besta fera selvagem e destruidora daria um pouco de pimenta entre os monstros, ou não?
Quando Silva teve a revelação, tratou de espalhar para o máximo de gente. Um seguidor quis saber como era a besta fera ou os cães do Apocalipse. Ah, e os cavalos e cavaleiros do mesmo livro bíblico. Aquilo irritou Silva. Como diabos ele iria saber. Isso o anjo não disse. Respondeu que perguntaria ao anjo, se ele aparecesse de novo, pois a coisa seria tão feia, que ele, o anjo, tratou de ir passear noutras paragens da via láctea.
Que o profeta acredite, vá lá, ele ouviu. Tem os casos que o cara vê o mensageiro em pessoa ou seja lá o formato em que se apresente. Aquele seguidor, contudo, era uma espécie de Saraiva renascido. Queria detalhes do anjo e como, exatamente, teria dito a mensagem. Não é que não cresse, cria com fervor, estava embasbacado, era só curiosidade religiosa. Silva não sabia como sair daquilo. Inventou que a besta fera era que nem um jumento com chifes e dentes tão grandes que não cabiam na boca. Soltava fogo pelas ventas e dava coice que era capaz de virar um caminhão. Que comia gente e peidava soda cáustica. Que voava mais rápido que o Carcará do João do Vale.
Com o monte de gente vindo à casa do Silva para se abrigar, as autoridades responsáveis pelo departamento de notícias do fim do mundo ficaram atentas. Vizinhos maldosos e inimigos da causa falaram cobras e lagartos do Silva e sua horda de gente crente e doida para ver o mundo se acabar. Menos na casa do Silva, pois ali seria uma espécie de arca de Noé. Mais um clichê do script. E os animais, onde ficariam? Quis saber aquele crente. Silva disse que dessa vez até os bichos se acabariam. Ademais, a arca era pequena. E com um banheiro apenas. Por causa disso, Silva, que havia distribuído senhas para os que queriam adentrar à arca, teve que cortar a distribuição, pois a fila para as necessidades fisiológicas estava dobrando a esquina. Nem se fale que alguns fiéis resolveram despejar seus produtos por ali mesmo, em qualquer lugar, para espanto e indignação da vizinhança.  Era por pouco tempo, dizia Silva, logo o mundo se acabaria e eles nunca mais teriam que fazer necessidade.
O fato é que as autoridades da coordenação do fim do mundo se irritaram porque Silva agrupou o povo e lhes impedia das coisas mais comezinhas. Comiam do que se dava a eles. Mas comer para quê se o mundo vai se acabar? A gota d’água é que Silva impediu as crianças de irem à escola. Ora, que o mundo se acabe tudo bem, mas há que se instruir, manter certa normalidade e alterar o cotidiano caótico da pobreza do Silva e seguidores é como começar um fim de mundo bagunçado. Tudo precisa de certa ordem, inclusive o caos final. Na delegacia, Silva foi ameaçado de processo por abandono intelectual dos menores. A lógica dele, entretanto, era correta. Para quê aprender os noves fora se já se via os chifres da besta fera na esquina? Não era um desperdício?
Mas a coisa ainda pioraria. Um batalhão de policiais, a mando do serviço de controle de hecatombes, entrou à força na casa do Silva para arrancar as crianças de lá. Seriam enviadas para o Lar da Criança do Piauí, salvas da arca do Silva. Era uma crueldade, diziam oficiais do departamento de hecatombes, que se marcasse o fim do mundo justo no dia da criança.
As quatro da tarde chegaram, era a hora. Silva conclamou o povo a aperrear com as orações, clamores e rapapés. O sino da igreja deu quatro badaladas. Silêncio. Assuntavam. Uma sirene ecoou nas redondezas. Só podia ser o enviado da besta, e era, pelo menos para o Silva. Fora preso por que o mundo, afinal, teimava em não acabar.