segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

O assassinato de Paul Black


Morador da província de Shaanxi, na China, um pai estava cansado de pedir para que seu filho jogasse menos videogame e fosse atrás de um trabalho. Como não obteve sucesso na conversa, o homem decidiu contratar um “assassino virtual” para que derrotasse sem parar o filho.

Fonte: Do G1, em São Paulo (04/01/2013)

Ping Li é um típico cidadão da segunda geração da revolução maoísta. Vida severa e comedida, quase sem lazer, resumida ao trabalho e sua dedicação à família. Permite-se uma aventurazinha num dos muitos restaurantes onde pode se deliciar com um bom cachorro preparado à moda chinesa. Verdade é que nem se dá conta do Estado que determina quase tudo em sua vida, mas a abertura econômica anuviou esta presença ostensiva. Não liga para a política, embora tenha a carteirinha do partido, pois é útil em muitas coisinhas nos escaninhos da burocracia chinesa. Também ajuda a encontrar trabalho e a provar militância de alguma maneira: confere algumas regalias.
Dentre as ambições que tinha, cumpriu quase todas. Ter trabalho. Ter uma casa. Casar e ter um filho. O primeiro e único – regra do partido – foi menino. Fez mandingas de todo tipo para garanti-lo. A mulher tomou muita beberagem esquisita e... deu certo. Feng teve crescimento normal como toda criança. Mas, diferente de seu pai, mal percebeu que vive num país comunista até o tutano e, como qualquer jovem pós-geração Y, seu mundo se divide entre o real e o virtual. Mais este que aquele.
Na escola, Feng sempre teve desempenho medíocre com várias ocasiões em que, por pouco, não tomou bomba. Ping Li, coitado, sempre desesperado com a performance raquítica do filho, tentou puni-lo, esconder celular, computador, negociar, chalerar, pedir ajuda aos ancestrais, enfim. Feng chegou ao final do ciclo médio aos trancos e barrancos. Universidade ficou em segundo plano, não dava para passar no Enem chinês. Aos cutucões do pai, era preciso arrumar trabalho. Esta parte foi fácil, mas Feng não parava em emprego nenhum por faltas, baixo desempenho, preguiça e até o puro e simples abandono.
A cabeça de Feng sempre esteve nos jogos, no Baidu – o Google chinês – e no mundo das redes sociais mandarinas onde tinha centenas de amizades e era só nesse. Mas nada de ganhar um centavo com ele, ao contrário. Era como se o Feng físico fosse mero suporte para o Feng virtual que, aliás, se chamava Paul Black. Havia uma clara competição entre os dois Fengs e o feito de bytes ganhava disparado do feito de carbono.
O Feng de bytes era campeão num jogo em primeira pessoa ao estilo do velho Doom. Em rede, não dava para ninguém: o Paul Black matava a todos. Ping Li estava cansado destes dois filhos, um peso duplo nas despesas da casa. Resolveu, desatinado, que um deles tinha que morrer. Após intensa pesquisa neste submundo, sabia exatamente o que fazer. Mas entre receber uma bala na cabeça ou prisão perpétua numa prisão chinesa – não sei se o trabalho nas minas de carvão por lá é menos penoso – melhor um assassinato virtual. Era preciso contratar um matador.
Feng vivia alheio a isso tudo. Em seu mundo, estava feliz e gozava a fama de exterminador implacável, o que compensava de longe sua falta de habilidade social e a escassez de amigos de carne e osso, dinheiro e namorada. Assumir o Paul era como se sentia vivo. Não era o jogo apenas, era o banho de dopamina no cérebro que causava enorme prazer. De repente, porém, Paul passou a ser insistentemente caçado e morto. Começava a jogar e logo aparecia um bruto qualquer que, sem a menor cerimônia, lhe metralhava, esfaqueava, explodia, atropelava. Sua fama acabou. As amizades escassearam e a vida que ele conhecia azedou. Jogar virou um suplício de humilhações recorrentes com mortes vergonhosas.
Disfarçou-se de um terceiro personagem, John Doe, e andou pesquisando. A perseguição implacável contra Paul Black tinha motivações suspeitas. Uma namorada insatisfeita? Não, nunca tivera namorada. Um coitado a quem matou várias vezes? Tampouco. Quem era o mafioso de uma figa? O tratante infeliz? Uma mensagem anônima deu a pista. Ping Li. Assim, lacônica.
Num rompante de coragem, confrontou o pai. Ping Li levantou os ombros como quem admite a culpa, mas disse que estava feliz porque seu filho estava de volta e Paul Black estava morto. Agora é assumir a sua vida, filho, falou carinhoso. Então sua face se transmuta e diz: Aviso-o, se você voltar a jogar, mato-o de novo.

A dor da perda


Em Brasília, o feirante tinha o rosto crispado de uma dor intraduzível nas palavras que saíam de sua boca em sibilos e entrecortadas. Uma das mãos, levada ao rosto, tentava esconder o sofrimento e choro contido enquanto tremia levemente. Não ousava levantar os olhos, enquanto a repórter o enchia de perguntas. “Era a chance de ficar rico”, disse, finalizando a fala.
Simultaneamente, a mil quilômetros de distância, em São Paulo, um taxista reproduzia exatamente a mesma cena diante da câmera. Como um tique nervoso, mexia nas folhas de apostas como se fosse um jogo de baralho, tentando desesperadamente entender sua desdita.
Os dois casos reproduzem a mesma perda. Ambos acertaram as seis dezenas da mega sena da virada que pagou mais de 240 milhões. Contudo, por razões também muito parecidas, eles não registraram os jogos. Restava lamentar-se. O primeiro, quedou-se inconsolável. O segundo, alegou vagamente à vontade de Deus, enquanto dizia que a quantia perdida resolveria sua vida.
O sofrimento da perda é algo da condição humana tão inevitável quanto a morte, certamente sua mais pungente tradução. Um dia, cada um de nós a enfrentará. Aos sintomas visíveis e invisíveis deste processo, chama-se luto. No caso do feirante, houve um quadro sindrômico que culminou com um desmaio, fato que o levou ao hospital.
Um dos efeitos terríveis da perda é a culpa. No processo de tentar entender, o sujeito especula mil formas que ora o joga para o futuro – tateando as consequências se tal coisa não tivesse acontecido –, ora está preso ao passado – mais este – indagando possibilidades de “se” tivesse feito tal coisa, “se” fulano não tivesse aparecido e outros milhões de “ses”, perdido que está num círculo vicioso consumidor. O peso da culpa pede um bode expiatório, posto que difícil entrar em contato com tal sentimento sozinho. Em grande parte das vezes, nenhum deles é suficientemente bom para expiar a angústia opressora.
Angústia é um dos principais componentes da perda/culpa. É fruto da irremediável impotência ante um momento que passou e ao qual é impossível retornar e fazer diferente. Abre um abismo entre o fato presente, consumado, e as suas possibilidades irreconciliáveis que agora existem apenas no mundo mental daquele que sofre. A palavra, em sua origem latina, significa estreitamento, apertamento que é a sensação que se sente no peito. Produz ansiedade, tristeza profunda, amplia a consciência da perda com a consequente sensação de incapacidade e percepção de desvalor. Produz também paratimia, que é a manifestação de emoções desencontradas com a realidade.
A perda e suas manifestações, contudo, tendem a passar, por mais que o tempo psicológico, nestas situações, deem a percepção de eternidade. Pode ser um processo longo ou não. A elaboração de toda esta energia psíquica, manifesta também em várias reações corporais, precisa encontrar um veio de significação. É uma experiência limite que deixará lições, cicatrizes. Superá-la é percebê-la sem os mesmos movimentos emocionais sentidos no momento do ocorrido. Ou senti-los muito atenuados, sem angústia.
Em se tratando de dinâmica psicoemocional, existem princípios de enfrentamento, não fórmulas iguais para todos. É certo, sem dúvida, que a cura pede a visita ao fenômeno tal qual ele ocorreu, muitas vezes se necessário, até que os sentidos sejam construídos, a aceitação do que não pode ser mudado se instale.
Ao feirante e ao taxista cabe agora um processo de superação desta infeliz experiência. O gosto amargo permanecerá por longo tempo, mas passará. A vida aos poucos voltará ao seu eixo, ainda que numa forma que eles não sonharam para si.