sábado, 2 de agosto de 2014

O Combinado não é caro




Fonte: Stacy Teicher Khadaroo - The Christian Science Monitor Estadão (26/07/2014). Tradução de Celso Paciornik

Ainda outro dia, escrevi aqui sobre um movimento contra o fiu-fiu. Um grupo de mulheres resolveu fazer guerra contra as piadas, os psiu e as cantadas públicas feitas pelos homens. Um site recebe as reclamações e ali mesmo se finca uma bandeirola digital num mapa do Google. Pronto, aquela região está condenada como um lugar em que magotes de homens ou caçadores solitários espreitam mulheres para lhes dizer asneiras como: Princesa, linda, fofa, gostosa e frases engraçadas.
Não estão distribuindo tasers ainda – aquela pistola elétrica –, mas acho que tem um kit spray de pimenta com apito para as ditas vítimas atacarem os conquistadores de meia pataca. É um desbunde de manifestações entre as quais se encontra a Marcha das vadias e toplezaços – públicos, naturalmente – com o fim de denunciar uma laia machista que trata a mulher como coisa, segundo dizem.
Um pouco mais velho, um livro de 2003, de certo Mike Domitrz, defende que em relacionamentos – ele só fala entre seres de sexos diferentes – todo ato deve ser antecedido de um pedido. Desde então, o homem ganha a vida dando uma palestra que tem o sugestivo título: "Can I Kiss You?” Em tradução macarrônica, entenda-se de minha própria lavra, seria: Eu posso beijar você?
Nosso descobridor dos sete mares da intimidade arrisca dizer que a prática de sua receita evita, vejam só, o custoso exercício da leitura da linguagem corporal que, segundo alerta, pode levar a equívocos. Como geralmente cabe ao macho humano a investida, pobre que não teria a habilidade de interpretar feromônios, estes indubitáveis. A fêmea disposta a acasalar sempre exala o cheiro e pronto. Não é o fato. Há fêmeas humanas que se divertem com a linguagem dúbia. O sim é não. O não é sim. E ainda existe um meio termo que sabe-se lá o que significa.
Então, antes de cruzar a linha Maginot inadvertidamente, em particular aqueles embalados pelo criador de coragem universal, o álcool, melhor acertar tudo antes. Aliás, a regra de ouro de Domitrz, sabedor que aquilo de bêbado não tem dono, é que o encontro só pode acontecer com ambos sóbrios. Entre uma solicitação e outra, nosso especialista afirma que as pessoas se sentem melhor quando as regras são claras. O diabo, dizem os sábios, mora no detalhe. Imagino que seja impossível definir todos os limites possíveis. Só para o caso de alguém querer se precaver.
A lista seria, virtualmente, de léguas. Talvez minimizasse a insegurança de alguns, mas correria o risco de se tornar aquele personagem que gosta de tudo muito bem explicadinho. Então, a mão aqui pode? Pode onde? Aqui, ó? Para aí. Mão congelada. Deixa eu ver no acordo. Você está quatro centímetros dentro da zona proibida. Melhor afastar um pouquinho. Assim? É... não, deixa aí mesmo. Tem certeza? Melhor não, né? Aqui diz que só depois de roçar a perna pode por a mão aí. Então voltamos para o passo 2? Qual é o passo 2? Aquele que cruza o dedo desse jeito e cutuca o cotovelo. A gente pode pular esse passo? Achei estranho. O quê? Cutucar o cotovelo? É. 
Aperto? Não muito. O que é “não muito”? Vai apertando que eu digo a hora de parar. Assim tá bom? Você é muito inseguro. É que não tenho um medidor no braço. Não precisa ser ignorante. Mas eu só quero acertar o aperto. Vamos parar? Tentemos um beijo, então. Mas já? Eu falei tentar. Tentar é fazer, não é? Mais ou menos. Tudo bem, podemos tentar. Vai língua? Na terceira fase. E tem fase? Tem, você não leu o acordo? Encosta só o lábio. De longe ou de perto? Como assim? Posso chegar o resto do corpo ao seu corpo? E como é que vamos beijar distantes? Sei lá, só quis saber. Deixa rolar. E o manual? Que se dane.

domingo, 27 de julho de 2014

A lição de “O Planeta dos Macacos – o confronto”




Ao assistir Planeta dos Macacos – O Confronto, pensei várias vezes no conflito entre israelenses e palestinos que neste momento chega a um de seus muitos momentos críticos. Imagino que, dentre as várias ideias possíveis para interpretar o filme, esta não tenha sido a intenção dos produtores e roteiristas.
Neste filme, quinze anos se passaram desde a fuga dos macacos. No período, uma gripe símia, fruto de uma experiência genética, dizimou quase toda a população humana. Os macacos prosperaram numa comunidade inclusiva, cooperativa e pacífica numa floresta nas proximidades de São Francisco. César, o primeiro macaco a se tornar inteligente e libertador dos demais, é seu líder inconteste.
Um incidente coloca os dois grupos em novo confronto. Um humano, por medo e susto, mata um macaco adolescente. A partir daí operará a lógica que explica tantas disputas e guerras entre povos hoje. No papel de ressentido, vingativo e desconfiado está Koba, um chimpanzé que era líder entre os macacos antes da libertação e que foi suplantado por César. Ele odeia os humanos porque foi vítima de experiências de laboratório.
Koba, possivelmente, nunca aceitou uma posição subalterna. A morte do jovem macaco lhe dá uma razão a mais para questionar a liderança – e isso vai num crescendo cada vez mais ousado – de César. Ao mesmo tempo, ele instiga os macacos para atender seu plano de vingança. Ele usará todas as suas artimanhas e ódio para provocar uma guerra, confronto a que César resiste. Ele argumenta a perda de vidas, das famílias, de tudo que construíram.
A comunidade de macacos vive em paz sob a liderança de César, mas regida por uma lei maior de cooperação e que nenhum macaco deve matar outro macaco e que unidos eles são fortes. Na luta pelo lugar de supremacia nesta nova ordem, os dois grupos, em vários momentos usarão argumentos que desconstroem o outro. Quando um humano vê apenas um macaco, ele o chama de animal, como que a rebaixá-lo a uma condição em que é válido aniquilá-lo. Quando os macacos julgam todos os humanos como maus, eles incorrem no mesmo erro.
Desconstruir o adversário, apelidá-lo, deformá-lo, alegar práticas horrendas para minha sensibilidade cultural/religiosa é uma forma de distanciamento e de manutenção da minha própria convicção. Muita gente não deseja perdê-la, sob pena de perder-se de si mesmo. Resultado: medo, insegurança, violência.
Como grupos black bloc, Koba usa as leis de livre manifestação para destruir a ordem e para tentar suplantá-la. Como eles usam o vale-tudo, sempre alegando a defesa de supostos direitos que julgam lhes ser negados, Koba está disposto a fazer qualquer coisa para atingir seu objetivo. Quando é questionado, mostra marcas de seu sofrimento em experiências, acusa César de gostar mais de humanos que de seus iguais. Os Black Bloc nem sequer isto tem para justificar-se.
O desesperado Koba é como as minorias radicais – algumas delas muçulmanas. Usam o espaço democrático para impor seus desejos e planos, mas são incapazes de estender este valor a outros. Quando pegos em delito, justificam-se pela exclusão que dizem sofrer ou se escoram em suas leis religiosas e culturais, valores estes que a sociedade democrática e, particularmente, sob o tacão do politicamente correto, tem medo de questionar e quando o faz, logo encontram tolos dentro desta mesma sociedade que criticam esta postura em nome de uma tolerância ou não discriminação que não encontra lugar em qualquer espaço organizado onde existam leis e limites. As ditas minorias, os black blocs aprenderam a desfaçatez como arma, o descaramento como aríete em favor de seus interesses.
César estabeleceu uma lei que é seguida à risca entre os macacos: macaco não mata macaco. Koba ultrapassa esta linha num atentado contra César com uma arma humana. Como Nero, queima a própria casa para acusar aos humanos. No caos, ele prospera. Na conversa falsa. Na posição de vítima. Com a aparente morte de César, Koba lidera um ataque contra os humanos. Centenas morrem dos dois lados. Na primeira oportunidade, ele prende antigos aliados de César e mata o primeiro que se nega a atendê-lo e o faz como um espetáculo de medo para dominar. Em logo diz: macacos agora seguir Koba.
César se recuperará e terá a oportunidade de constatar que eles não são muito diferentes dos humanos na perfídia. Ele, que julgava os macacos superiores, como se tivesse lido Voltaire e sua teoria do bom selvagem. Reconhece também que tudo que aconteceu é sua culpa, pois ele viu quem Koba era e decidiu confiar nele assim mesmo e não o impediu quando teve chance. Ele foi fiel à sua lei, mas nenhuma lei é absoluta. Não existe nada absoluto na precariedade humana ou símia. Uma lei ou norma deverá ser aplicada sempre em seu contexto apropriado, não serve como panaceia para todas as circunstâncias.
Por fim, César tem a oportunidade de confrontar o usurpador numa luta feroz pela alma e mando do grupo. Um sangrento combate entre os dois acontece sob o olhar atônito dos macacos. Koba, pendurado e prestes a cair, vê seu inimigo César se aproximar e, para salvar-se, usa a regra de ouro: um macaco não mata outro macaco. Ele tenta manipular César, criador da lei. Aparentemente César hesita: está diante de uma decisão terrível e do olhar de todos os demais que poderão julgá-lo. Mas, um líder uma hora enfrentará decisões difíceis. César chega a segurar a mão de Koba, então lhe diz: mas você não é um macaco.
Para mim, este é o ponto alto do filme. Koba quis mais uma vez usar a boa lei contra seu criador, ele que não acreditava nela, como tantos entre nós que querem a boa lei para atingir seus objetivos fanáticos, antidemocráticos, ditatoriais.

A história está muito bem contada. O filme é um primor de efeitos especiais. Vale cada minuto de projeção.