sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Álbum de família (August: Osage County)



“Toda família tem um momento em que começa a apodrecer. Pode ser a família mais decente, mais digna do mundo. Lá um dia aparece um tio pederasta, uma irmã lésbica, um pai ladrão, um cunhado louco. Tudo ao mesmo tempo.” (Flor da obsessão, p. 161, autoria: Nelson Rodrigues).
Álbum de família (2013) – tradução brasileira de “August: Osage County”, que é originalmente uma peça de Tracy Letts – encarna a premissa rodrigueana à perfeição. Com uma diferença: as misérias - o desenrolar do enredo mostrará - estavam na gênese da família antes mesmo da formação do casal. Cada qual, marido e esposa, chegaram ao casamento com passivos emocionais e psicológicos que os tornaram em duas criaturas autodestruidoras.
Mais uma vez, Meryl Streep (Violet) demonstra porque mais que ganhar Oscars, seu respeito por cada personagem que representa os torna definitivamente vivos e inesquecíveis. Violet e Beverly (Sam Sheppard) tiveram três filhas: Barbara (Julia Roberts), Ivy  (Julianne Nicholson – atriz menos conhecida do público) e Karen (Juliette Lewis). Barbara é a mais velha. Tem uma filha adolescente e um casamento fracassado com Bill (Ewan Mcgregor). O marido a traiu com uma adolescente.
A morte do pai faz com que família se reúna novamente. A irmã mais nova ficara para assistir aos pais e o fazia como uma cruz insuportável, fustigada o tempo inteiro por uma mãe nada afetiva e amarga que lhe jogava na cara, com ironia destruidora, sua incapacidade na vida, seja no amor ou em sua emancipação pessoal. A duas outras estavam cada qual em sua fuga premeditada e salvadora – como se fosse possível – de uma família disfuncional em que o pai era alcoólatra e a mãe viciada em remédios e com um câncer para tratar.
A morte suspeita do pai coloca a família ao redor da mesa – cena central do filme – e de volta todos os rancores envelhecidos e mais agudos, as disputas internas, as revelações de segredos hediondos ou as simples reproduções de maldades quase esquecidas. A artífice destes quadros é Violet. Uma mulher que não perdoa, é agressiva e acha que tem todo o direito do mundo de massacrar os demais porque sofreu muito na vida. Ela parece estar sempre um passo à frente dos outros, quase como se esses fossem transparentes aos seus olhos ferinos. Nada lhe escapa.
Com a filha mais velha mantém uma disputa eterna e não hesita em usar as fraquezas desta como arma, talvez porque, a seu modo doente, a ame. Despreza a filha mais nova, e ignora solenemente a filha do meio que é tola e pueril. Karen está deslumbrada com seu novo namorado a quem chama de noivo. Não pensa noutra coisa que não o casamento que está destinado ao fracasso e à lua de mel em Belize. É uma tola que finge o tempo inteiro para não ver sua vidinha desgraçada, que aceita como uma sina imutável imposta pela vida.
Uma tia materna e seu marido, além do sobrinho, completam este grupo que, visto à distância, quase parece normal. Mas ninguém o é, visto de perto. Fato que se mostra em toda crueza quando as cenas se desenrolam. O namorado da irmã é um pedófilo predador à espreita de qualquer uma, inclusive Jean, sobrinha de sua noiva, a atriz adolescente (Abigail Breslin) que protagonizou o ótimo “Pequena Miss Sunshine”. O sobrinho é um perdedor clássico, carente de aceitação, pedindo desculpa por existir a tudo e a todos, acuado desde sempre pela mãe que lhe trata com especial maldade. Seu pai, Charles (Chris Cooper), é o homem bom a quem falta a malícia da vida e paga um alto preço por isso. Sua esposa, irmã de Violet, cunha do mesmo pau, é só menos maldosa, mas manteve seu homem enganado por mais de trinta anos.
A adolescente e doce Jean (Abigail Breslin), filha de Barbara, fuma maconha nas horas vagas, fato que se torna a ponte para o flerte que manterá com o tarado Steve, noivo de sua tia. É sonsa e dissimulada, reproduzindo com sua mãe parte da relação conflituosa que esta tem a com sua avó.  
Enfim, temos um retrato demolidor de uma família na qual, ao que parece, nunca houve concessões nas relações construídas apenas pela força dos laços sanguíneos. O amor está em algum lugar. O respeito resiste a duras penas. Os laços fraternos parecem pedir um reparo permanente, pois a cada instante são destruídos ou ameaçados gravemente. Cada verdade, ou revelação, funciona como um aríete contra a integridade pessoal/psíquica, nunca como uma forma de pacificação, até porque cada revelação mostra porões muito sujos de atos que se é capaz de praticar mesmo sendo pessoas normais e boas. 
O filme não poderia ter elenco mais incrível e bem ajustado para os papéis. Todos, mesmo os que fazem personagens menos importantes na trama, realizam um excelente trabalho sem o que os personagens principais não realizariam seu excelente trabalho. Nelson Rodrigues poderia ser “acusado” de sua autoria como um episódio maior da “Vida como ela é” tal a lista de misérias que o filme mostra que vai de alcoolismo a incesto, passando por suicídio, câncer, dependência química, adultério, pedofilia e divórcio. Nem uma família é perfeita. A do filme apenas mostra seu lado mais negro, coisa que a família de cada um, se não cobre todo o leque já apresentado, certamente tem pelo menos uma delas.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Feliz 2014



A realidade superou em muito a ficção em 2013. Mas isso é só uma frase de efeito porque toda ficção é filha do real, no mínimo, o enredo principal, que só depois é acrescido de fatos absurdos por quem conta. Eu nunca estou preparado para a realidade e tenho dificuldade de fazer planos e sonhar. Alguma coisa aqui perto me diz que é preciso combinar com o Gerenciador do mundo e como me escapa seus planos e vontade dos quais só percebo mal e porcamente alinhavos, me aquieto sem grandes arrancos. Estranhice? Prudência de equilibrista? Tudo junto. Por que estou mais para uma alma dodecaédrica que se inquieta e desinstala o tempo todo a qualquer sopro de vento.
Tenho imagens na mente do que foi o ano. Uma delas me provoca pelo rocambolesco e ridículo. É impagável a visão do José Genoíno com o braço erguido e punho fechado, cambaleante ao se lhe declarar voz de prisão. Rosto grave e desafiador com sua honra rota e a cereja do bolo: uma toalha de mesa amarrada aos ombros, como fazia meu filho quando pequeno para imitar o super homem. Coisa que me dava medo porque ele acreditava piamente e, morando no terceiro andar, me ocorria loucamente que ele poderia querer testar sua certeza. Só depois de indagar cá com meus botões, entendi o nonsense: a toalha do José seria para cobrir o rosto para fugir à carnificina dos fotógrafos, mas que o esfarrapado enfrentou com a ira daqueles que se acham inatacáveis e, pegos no mal feito, se voltam contra o mundo que os flagrou e, com isso, nos brindou com o grotesco.
Um pedaço de minha alma ficou em janeiro. Atordoado, levei bons minutos para entender que uma festa na boate beijo da morte tivesse se transformado no túmulo de 242 jovens. Até hoje sinto uma pena enorme pelo desperdício.
Na guerra civil da Síria, mais uma, o mundo assistiu chocado àquilo que, por mais que se esforce não entende: a luta fratricida manejada por ódios seculares e alimentada por convicções religiosas ensandecidas. Não há limite nestes casos, apenas a destruição total do inimigo é aceitável, se possível com gás sarin.
E, foi pena: os americanos continuam bairristas e deram um Oscar para a atriz americana Jennifer Lawrence, que é muito boa, mas não comparável com a atriz francesa de Amor (Emanulle Riva), esta sim, com uma atuação irretocável, deu dimensão do verdadeiro sofrimento de quando alguém é tocado pela doença na velhice.
Depois, vi que um bebê chinês não desejado fora jogado na tubulação de uma casa. Entalado no cano, chorou. Alguém ouviu e o bebê foi salvo. A resistência da vida venceu e comoveu o mundo, eu incluído.
Vi o aumento da intolerância aqui mesmo no país. O lobby gay se levantou contra o Marco Feliciano por presidir a comissão de Direitos Humanos. Vimos até onde estes defensores de “direitos” estão dispostos a chegar se seu programa pessoal for contrariado.
Então, aquilo que começou por uma queixa e reivindicação local, em São Paulo (a redução do preço das passagens de ônibus e até o absurdo “passe livre”) despertou uma onda de insatisfações guardadas pelos péssimos serviços que o brasileiro médio recebe na saúde, transporte e segurança. O Maranhão que o diga, mas está tudo bem, conforme diz seu mandatário, os bandidos estão se matando dentro da cadeia, que mais dá? A manifestação desandou e o país por pouco não se convulsionou com os saques e destruição que se seguiram. Agora tudo está como dantes. Renan retomou seus voos nos aviões da FAB e os demais seguem aprontando até que se descubra outra traquinagem.
O Brasil esfriou como nunca e o mundo ainda não se decidiu se esquenta ou esfria. Perdeu-se muita gente boa, alguns nem tanto. O país ganhou medalhas, os estádios foram palco de torcidas marginais e governos estaduais deram espetáculo de desvio de dinheiro em suas construções para a Copa. Ficamos em último na educação comparado com outros países e o Eike perdeu só 25 bilhões de dólares. O Maranhão, para variar, protagonizou vexames em quase todos os índices de qualidade de vida e o Mais Médicos causou destrambelhos de médicos brasileiros que reforçaram a posição ridícula do governo com sua solução meia boca às custas de semi escravos cubanos.
A China botou um robô na lua e nós explodimos mais um foguete com um satélite nacional. A inflação se descontrolou e culparam o tomate. Os mensaleiros foram para a cadeia e outros marginais também, como o Bruno, ex-goleiro do Flamengo. Isso foi bom. Um monte de mulher resolveu que ficar nua – mostrar os peitos – é a forma mais “inteligente” de protestar sei lá pelo quê. O Papa visitou o Brasil e nos ganhou pela simpatia, apesar de ser Argentino. 
Assisti a filmes incríveis, amei, chorei, me frustrei e tive esperança. Sorri com bobagem e com coisas engraçadas. Deus me deu saúde e aos meus. Sofri comigo e com outros. Desentendi de tanta coisa e de outras apenas desconfiei o entendimento. Caminhei ao lado de alguns e de outros me distanciei. Quebrei promessas, realizei as que não prometi nem a mim. Encontrei o Grande Sertão e li outras coisas incríveis que me acrescentaram um pouco mais. Encantei-me e desencantei. Estou pronto para o que o ano que vem. Quero fazer coisas novas e diferentes. Tenho planos, poucos. Surpreenda-me, 2014.