O filme 12
anos de escravidão recebeu 9 indicações e agora, todo mundo sabe, arrebatou o
Oscar de melhor filme de 2013, além de Lupita Nyong'o (Patsey) que levou o Oscar
de melhor atriz coadjuvante. Depois de ver o filme, você saberá por que Julia
Roberts (Álbum de Família), Jennifer Lawrence (Trapaça) – ganhou o Globo de
Ouro na mesma categoria –, June Squibb (Alabama) – não muito conhecida do
público –, Sally Hawkins (Blue Jasmine – deu o Oscar de melhor atriz para Cate
Blanchet) não eram páreo nessa disputa.
Os méritos
artísticos do filme já foram sobejamente comentados e são todos justos. A
história foi magistralmente bem contada. Os atores e atrizes fizeram atuações
soberbas que resultou em total veracidade da trama. Destacarei outras coisas.
Solomon
Northup (Chiwetel Ejiofor) é um negro liberto que vive com sua família numa boa
casa com esposa e dois filhos. É violinista. Em certo momento, é raptado por
traficantes de escravos e enviado para o Sul escravagista. Forja-se um novo
nome – Platt - para legalizar a situação. Então, começa seu calvário. A
transformação de um homem livre e cônscio disso, orgulhoso de seu talento,
feliz com sua família, num arremedo de gente é, possivelmente, uma das coisas
mais incríveis do filme.
Transformação
tal não se consegue apenas por vestir trapos, despentear o cabelo. Requer um
investimento emocional profundo capaz de mudar o andar altivo de outrora em
passos caquéticos e indecisos, ombros arqueados, cabeça sempre baixa e olhar
baço. Um ser subjugado. Um homem que, antes, tinha orgulho de sua arte e
capacidade, deverá aprender a duríssimas penas a calar, esconder-se,
apequenar-se, passar, como sugere outro escravo, despercebido, tornar-se um
fantasma.
Aos poucos,
Salomon desaparece. O símbolo máximo deste apagamento dá-se quando Platt
destrói o violino. Uma espécie de punição por ter usado as mãos que o tocavam
para chicotear, embora obrigado, sua amiga Patsey. Em vários momentos, o homem
livre que pulsa debilmente busca saídas. A tentação de fugir lhe assalta. Mas
está só. Não pode confiar em ninguém. O medo e a desesperada postura de
autopreservação são as únicas coisas vivas nele. Enfim, a história, apesar de
real, tem um final feliz com sabor amargo.
Há outra coisa
marcante: a religião. O protestantismo como expressão de fé, a centralidade da
Bíblia como regra prática da vida, embora com interpretações particularíssimas,
servem como pano de fundo e estão presentes nos dois lados: justifica a
escravidão para os brancos, alivia o suplício e supre de esperança – além de
dar um sentido para a existência – para os escravos. Os negros adotam o Deus
dos brancos opressores e O interpretam de maneira totalmente diferente. Descobrem
o Deus de justiça, misericórdia e amor que se volta contra os brancos cegos,
hipócritas, verdadeiros demônios crentes, seja pela acusação verbal direta,
seja pelo clamor mudo por justiça e a expectativa de que eles prestarão contas a
Deus um dia.
Eis um
fenômeno curioso. Os negros, em sua maioria, analfabetos, ouvem as pregações de
seus algozes e lhes dão outro sentido. O primeiro senhor de Salomon, Ford (Benedict Cumberbatch), tenta apaziguar sua
consciência reunindo seus escravos aos domingos para fazer leitura da Bíblia.
Seus escravos não são maltratados, mas são escravos. Deus é uma desculpa. Ele é
um covarde que tenta sobreviver no sistema pelo qual, consola-se, não tem
culpa.
A religião será, para os
negros, um refúgio. A escravidão, sua peregrinação pelo deserto. A música
emerge neste quadro de dor como o grito da alma, uma catarse coletiva quando
cantam. Uma cena resume magistralmente esta situação. À beira do túmulo de um
negro que morrera de exaustão no campo de algodão, uma mulher inicia um canto
que fala da travessia do Jordão para a terra prometida. Platt, músico, está
mudo de dor e ódio. Aos poucos seus lábios murmuram. Uma, duas, palavras.
Cabeça baixa, olhos lacrimejantes. Logo, permite-se que a música faça seu
trabalho de, mesmo por um momento, produzir libertação. Então ele abre a boca,
solta os pulmões represados, olha para o céu e solta a voz. Por breve instante
eles são um, eles transcendem o mal.
O filme já é um clássico.