segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A última palavra



Uma mulher do Colorado, nos Estados Unidos, foi presa nesta semana acusada de ter atropelado e matado seu marido durante uma briga. Após a prisão, ela disse à polícia que precisava ter a última palavra na discussão.

Fonte: Do G1, em São Paulo (15/08/2014)

Imagino que a maioria das pessoas já viveu situações em que a última palavra se lhe escapou, pois foi o outro quem disse. Ficou aquele amargor, um desacorçoamento e aqueles pensamentos ruminando horas e horas trabalhando incontáveis se’s onde o ruminador vence como se fosse um campeão da retórica. Mas a realidade, naquele instante – é preciso reconhecer – você é o perdedor e nada pode fazer, exceto se preparar para uma nova rodada; pelo menos naquela situação, nunca mais vai ser pego com as calças abaixadas. Vai ser assim: bateu, levou.
Mas não basta apenas fantasiar que num futuro você terá a destreza, a habilidade, a artimanha finória para dar um nó no seu adversário. Alguma estratégia é preciso ter. O sujeito deve saber que existem princípios muito bem assentados para que se obtenha vitória nestas coisas. Galileu era especialista nesta arte. A igreja de mente rombuda obrigou-o a renegar a teoria heliocêntrica na qual estava implícita que a terra – despautério! – era redonda. Negou, mas entre dentes, murmurada, saiu a frase que a ele se atribui: eppur si muove. No entanto, se movimenta. O faustoso tribunal, acusadores e detratores ouviram, mas não sabiam do que falava o réu que a esta altura se ria por dentro.
A última palavra tem que ter uma malícia, um desconcerto, uma provocação ou de nada adianta. Deve causar ao outro falante o sentimento de estupor, a surpresa, a desorientação. Neste particular, melhor ainda quando isso tem que ver com a incapacidade do tal inquisidor entender por galhofa, por ironia com as quais a última palavra, bem dita, está eivada até o tutano.
Quem não lembra as brigas com os irmãos? Ali se aprende a arte de matar na unha, capacidade que um levará para a vida e suas vicissitudes e mal-intencionados com quem se conviverá. E o que é matar na unha se não fustigar seu inimigo com aquilo que lhe irrita como pedrinhas nos dentes? Às vezes, um gesto se torna um porrete. O outro entende e se rói, melhor ainda quando impotente. Uma autoridade lhe impede de reagir e você,  malino e pernicioso, repete longe do olhar da autoridade para ver o outro estrebuchar enquanto se delicia com a maldade.
A palavra que cala o outro pode não ser uma palavra. Admite-se um ato. Um dedo em riste, o maior de todos, é clássico. Num tribunal, inquirido e sem saída, especialmente em CPI’s, um “nada a declarar” funciona que é uma beleza. Mas convém imediato pedido de habeas corpus preventivo. Os investigadores não engolirão calados.
O namoro acabou. Ele ou ela abusou de sua estupidez e de sua candura tola. E ainda o expôs numa rede social num último ato de malícia. O troco. Vai uma foto em seguida agarrado ao primeiro ser que aparente um ser humano num amasso mais atochado do que pescador de caranguejo atolado na lama. É tiro e queda. Do outro lado, o traidor(a) pode até não dar o braço a torcer publicamente, mas vai se consumir com a sensação da falta, do descomeço, do congelamento de quem fica sem ação, da respiração no vácuo. 
Num casamento a coisa fica mais complicada. A agora senhorita vivia às turras com o marido. No começo, era só esculhambação normal. Mas como ninguém cedia, a coisa evoluiu para a porrada. Quem infligisse o nocaute primeiro, ficava com a última palavra. Mas a luta andava meio empatada. Tem algo mais chato que empate? É a negação da disputa. É a desconstrução da briga. A desrazão de qualquer peleja. Depois de uns sopapos, a agora senhorita estava em desvantagem. Sem poder sair de dentro do carro, no corner, por assim dizer, era preciso reagir. Ligou o veículo e passou por cima do agora defunto marido. Entregou-se, não era marginal. Foi no calor do momento, não havia intenção dolosa, mas ela era dessas pessoas que precisa ter sempre a última palavra. Eis uma última falante no estado da arte.