segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

É Freud!



Ladrões tentaram roubar as cinzas de Sigmund Freud, pai da psicanálise, e de sua mulher Martha no cemitério londrino onde se encontram, informou a polícia britânica.

Fonte: AFP (15/01/2014)

O detetive estava visivelmente perturbado na hora das declarações à imprensa. Eis sua fala, tal como pronunciou.
Não sei que diga. Um ato vil. Como é que alguém tenta roubar as cinzas de uma sumidade? Com que propósito? Haverá um mercado de cinzas de gente importante? Quiçá de ossos, como se fazia na idade média com os ossos dos ditos santos? Cito ossos, assim, en passant, não há mais ossos freudianos. Ou seriam apenas dementes como aquele casal que jogou tinta no Drummond no Rio? O homem do casal disse que queria impressionar a piriguete burra. Os homens do gênero masculino heterossexuais antigamente impressionavam as mulheres com flores, poesia, dando conta do recado no recôndito da alcova. Agora isso. Perdoem. Devaneio.
Pensei que estivessem sob efeito de drogas, vai se saber. Nada. Estavam perfeitamente sãos. Psicóticos, quem sabe? Mas as ideias pareciam bem aplumadas. Neuróticos não eram, eu sei. Estudei os ensinos de Freud, que Deus o tenha em bom lugar. Sim, sei que era ateu, mas de repente agora é crente, depois de morto quem pode afirmar o contrário? Acho que ele não se importaria com essa minha fala que não é um ato falho, se querem saber.
Há muita gente desalmada no mundo. Será que estacaram na fase anal? Sei lá... Aquele prazer mórbido de reter as coisas. Um pode se tornar tão autocentrado que não sabe dar mais nada e, no limite, até furta qualquer coisa para ter ainda mais. Ou ainda fosse a manifestação da pulsão sádica de destruir e manter o objeto de prazer. Mas não estou convencido. Quem sabe havia uma simbiose dos egos dos malucos. Poderia ser que um dos conspurcadores de tumbas estivesse nesta fase anal e o outro algum desvio parafílico fetichista com mortos. Não qualquer morto, mas Freud e sua pobre mulher. Quero dizer, o que sobrou deles.
Mas me ocorre que pudessem querer fazer algum rito xamânico das trevas com as cinzas, alguma beberagem para obter a genialidade do pai da psicanálise. O silêncio destes sem-coração pode fazer um pensar as coisas mais loucas. Pois como preencher a razão para fazer o que fizeram? Eles sabiam que não era cinza de um qualquer: era a do Freud!
Causa consternação, sim senhor. Não sei o que diria Freud se estivesse vivo. Fechadão como ele era, obsessivo em espalhar sua doutrina, talvez não levasse a coisa na brincadeira. Imagine. Não suportava uma contradição com sua ideia, que dizer do uso de seu corpo ou partícula dele para fins inenarráveis. Baniria os tais para os confins do inferno da pulsão de morte ou os submeteria a sessões psicotizantes a ponto de não saberem mais a própria identidade, tarados pelas mães e foracluídos do nome-do-pai. Sei lá. Especulo. Lacan estremeceu no túmulo agora.
O fato é que estamos todos no escuro. A dupla foi submetida a modernas técnicas de interrogatório, incluindo o afogamento controlado. Com o polígrafo nem uma palavra fora do lugar. Demos injeção de escopolamina a pentotal sódico, nem uma palavra. Riram pra se acabar, foi o resultado. Algo de causar espanto entre nossos mais experientes interrogadores, alguns com pós nos EUA. Já se cogita, inclusive, estudá-los para treinar nosso pessoal, caso sejam pegos por alguma Al Qaeda da vida.
Por pura sorte, impedimos que levassem os restos mortais do insigne psicanalista. Mas deram por falta de algumas gramas das cinzas. Onde estariam? Nos bolsos e mesmo na boca não se encontrou. Os acusados receberam investigação médico-científica de alta sofisticação: cada qual foi submetido a uma colonoscopia e endoscopia e nada se achou. Teriam vomitado ou evacuado antes? Eis um mistério.
Expediu-se um comunicado para recuperar esta porção faltante de cinzas. Esperávamos a ajuda da população que sempre se mostra solidária em casos como este, mas, horror dos horrores, sem querer atiçamos a sanha de um sem número de loucos mansos ou aproveitadores que chegaram com quilos e quilos de cinzas na delegacia, sabe-se lá de que forma obtida. Houve, inclusive, aumento de violações de sepulturas. Alguns, para dar veracidade a seu material, pretendiam arrancar defuntos reais e queimá-los para fazerem passar pelo ilustre e agora maltratado Freud. Nem os chineses seriam capazes de tal picaretagem. Falo por falar, eles falsificam ovo, noz, carne, o diabo. E olha que nem falo dos eletrônicos. 
Acho que ficaremos para sempre sem este pedaço do Freud, assim como as cartas que queimou por picuinha e raiva de alguns melhores amigos dos quais se tornou depois desafeto radical. Estejam em paz os fragmentos, onde quer que estejam.

Sorria



Bright-sided: How the relentless promotion of positive thinking has undermined America. Em tradução livre, algo como: O lado ruim das coisas: como a promoção incansável do pensamento positivo prejudicou a América da jornalista Barbara Ehrenreich (ed. Record) é uma análise implacável do pensamento positivo. O título é pretensioso, particularmente quando pretende explicar algo tão complexo em apenas 235 páginas e citações basicamente de jornais e revistas e visitas in loco a igrejas e universidades feitas pela jornalista na fase de reunião de dados para o livro.
Nos EUA, a obra foi publicada logo após a explosão da bolha imobiliária, 2009, o que sugere algum oportunismo da autora, considerando que o mundo inteiro já sofria com o desastre dos títulos podres que alimentavam a ciranda financeira americana um ano antes. Não tira o mérito da autora, pois, aparentemente, já havia escrito artigos anteriores questionando algumas das manifestações mais evidentes desta visão. Em particular, criticando a psicologia positiva que, no período anterior, foi catapultada à abordagem queridinha de muitas universidades americanas entre outras mundo afora. Barbara Ehrenreich dedica um capítulo inteiro para cutucar os “buracos” da teoria de Martin Seligman e outros, incluindo a descrição de parte de uma entrevista que realizou com o próprio.
No Brasil, a obra ganhou o título comercial de “Sorria: como a promoção incansável do pensamento positivo enfraqueceu a América”. O Sorria está na capa com letras garrafais e foi assim que chamou minha atenção, por ironia, despejado na sessão de auto-ajuda.
A autora inicia falando de sua própria experiência com um câncer de mama e as diversas ações não médicas de apoio aos pacientes e de como isso a fez entrar em contato como a filosofia positiva. Destaca o quase ridículo de algumas posturas que colocam a paciente na incrível situação de, pela visão positiva, força do pensamento, visualização, etc, etc fazer sucumbir a doença. Questiona a culpa que isso pode produzir caso não consiga. Ela mesma se diz alvo de críticas quando questionou esta postura num site especializado. Não ser positivo nestas questões e noutras, significa, não que a pessoa seja realista, mas simplesmente uma ave de mau agouro. Se fosse na igreja, seria falta de fé.
O fenômeno, segundo Ehreinreich, explica claramente a onda da teologia da prosperidade e as festejadas e bafejadas megaigrejas de pastores como Rick Warren e assemelhados que, no Brasil, vendem horrores e fazem a cabeça de muita gente. Mas suas baterias se voltam em especial a um tal Joel Osteen que lidera uma igreja em Houston, Texas,  com 16 mil lugares. Vende livros como água e está riquíssimo, embora seu público seja de pessoas de classe média e baixa, as principais vítimas da crise americana. Barbara questiona não só a lógica dos livros de Osteen, mas a própria indigência de suas ideias e a forma de apresentá-las.
Ainda no campo religioso, faz duras críticas ao mundo calvinista e à filosofia de vida que produziu. Aqui se sente o azedo de seu ateísmo. Precisa aprender com seu colega de descrença, o filósofo suiço Alain de Bolton. O Calvinismo foi trazido pelos imigrantes originais e forjou a sociedade americana. A visão da salvação calvinista é predestinista, mas, para o fiel, como saber se é predestinado ao céu?, argumenta a autora. A regra seria abster-se de toda e qualquer coisa que lhe desviasse do santo caminho (os prazeres de qualquer espécie) e se ocupasse com coisas produtivas. Além disso, dever-se-ia fazer exames regulares de consciência em busca de qualquer pecado que poderia lhe retirar o paraíso. Barbara afirma que a contradição desta lógica se deu no final do século XIX com a Consciência Cristã de Mary Baker Eddy, entre outros.
No século XX, destaca particularmente o pastor Norman Vicent Peale, autor do clássico “O poder do pensamento positivo”, publicado em 1952 e até hoje no catálogo de vendas. Peale é o papa do pensamento positivo e se autodenominava doutor em terapia espiritual. É a inspiração de todos os pastores positivos e teólogos da prosperidade.
A visão positiva, segundo registra Ehreinreich, invadiu o mundo corporativo, a ponto de pessoas serem demitidas apenas porque ousavam ver que o rei estava nu. Esta exuberância alimentou ganhos financeiros cada vez maiores e levou a classe trabalhadora a endividamentos impagáveis e à dêbacle econômica que se seguiu com milhões de postos de trabalho perdidos e empobrecimento. Tudo porque o mantra dito e redito por todos, das igrejas aos CEOS das maiores empresas, do governo ao pequeno comerciante, era que tudo daria certo, era só acreditar. Eis uma fé profana. Claro que isso cheira a irracionalidade, mas ninguém queria ser o primeiro a dizer que o barco estava afundando e que o edifício de cartas não se sustentaria. Houve raras exceções.
Ehrenreich não faz concessões à visão positiva. No campo clínico, talvez porque sofreu com a doença e o constrangimento de ter que pensar positivamente, Barbara não pesquisou que a postura correta da psicologia é a de acolhimento seja o que for que este paciente manifeste. Ajudá-lo a elaborar sua perda (luto), fortalecer sua autoestima, não a troco de palavras de efeito, mas no suporte ao seu momento de dor. O psicólogo anda com, não é um tambor marcador de tempo de remadas das Galés. A psicologia pode ser imensamente útil na compreensão do momento de vida pela qual o paciente passa e, com isso, contribuir para sua qualidade de vida. Não vende ilusões. Trabalha com a verdade do fato, do paciente e de sua formação.
Além dos pastores positivos e seus livrinhos água-com-açúcar, que não falam mais em pecado ou condenação eterna, Barbara critica duramente aos coaches vendedores de sonhos esmolambados que subiram às alturas no circuito empresarial americano, seja enganando os funcionários ou aos próprios diretores e CEOS que preferiam ouvir que o pensamento sozinho pode mudar qualquer situação, a estudar os relatórios e números que diziam que seu comportamento subvertia os princípios econômicos básicos. Um de seus alvos principais é a australiana Rhonda Byrne, autora do ridículo “O segredo” onde defende a “lei da atração” e que a enriqueceu estratosfericamente.
Apesar de tudo que aconteceu, o pensamento positivo irresponsável não dá sinais de fim. Ele, como um camaleão, simplesmente muda e ajusta suas explicações. A psicologia positiva, depois de subir aos céus, está em crise mortal pela simples falta de suporte científico. Segundo conta, Seligman mudou o discurso – a ver se renegará seus escritos – e parece ter se voltado para um caminho que não fica claro se de tentativa de salvação da psicologia positiva ou de mudança de seu paradigma, donde não seria mais psicologia positiva. Os coaches ainda ganham dinheiro com seus encantamentos, sempre há otários e símplices dispostos a ouvi-los e pagar por sua baboseira. Os pastores, estes parecem continuar imunes ao fracasso de suas ideias heréticas. As prateleiras andam cheias de seus livros e as igrejas, quais sanfonas, incham e esvaziam ao sabor de mais uma patacoada da moda. Até quando? 
Por isso tudo, vale a leitura. Concordando ou discordando com Ehrenreich ao final você, que estava em dúvida, ficará um pouco mais esperto. Quanto ao tolo, este não tem salvação.

O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota



São 612 páginas de um texto marrento, desconstrutor de muitas “verdades”, de provocação a “vacas sagradas” da cultura em geral, incluindo festejados e intocáveis da música, literatura, mas especialmente da política nacional. Dizer que “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”, livro do filósofo Olavo de Carvalho, é um libelo muitíssimo bem-vindo contra a maldição do politicamente correto, é pouco. É uma marretada sem pudor ou pedido de desculpas – ainda bem – num sem número de ideias, verdadeiras crenças, que se propagam como pragas do Egito. Sua pena se levanta como lança contra este mundinho miserável organizado por gente que não quer mais que exista a ideia-livre, apenas a ideia-massa.
Numa época de discursos pasteurizados e uniformes, onde se vê como pecado mortal não requentá-los em sua própria fala como se fossem oráculos sacrossantos de um tempo mais livre (uma nova era?) e defensor dos direitos do diabo-que-os-carregue, ler “O mínimo...” é um sopro de vento fresco arejador e provocador no marasmo de nossas ideias acomodadas. Nunca houve tanto a necessidade de relembrar a célebre unanimidade burra de que falava Nelson Rodrigues, pois é nisto que nos encontramos, como pintos no lixo, já dizia Jamelão.
Vai que a certa altura do livro começa-se a topar com repetições, afinal trata-se de uma coletânea de textos escritos ao longo de vários anos o que dá a alguns um matiz quase profético. Digo quase porque, à parte de seus acertos, trata-se de ver com lucidez num mar de cegos por opção ou nem tanto, daí que não dá para transformar o Olavo em um profeta seja do que for, pois nada recebeu de um vago lampejo místico, mas de horas e horas dedicadas à análise do entorno e da leitura de um sem número de autores, a maioria dos quais relegados pela academia. Falo dos mais atuais, os antigos (Aristóteles, Platão, Santo Agostinho...) continuam oferecendo farto material para se andar fora dos esquemas dos porcos da política e sendo deturpados ao sabor da doutrina do conveniente. Relembro George Orwell (Eric Arthur Blair) em seu impagável e atualíssimo “A revolução dos bichos”.
Não fica quase nada em pé dos grandes temas modernos e sobre os quais, caso você não queira ser um coitado, sofrer crítica e até, facilmente, discriminação, ter alguma opinião a respeito, contanto que atenda ao status quo. Se ousar se manifestar com o mínimo de independência deve, de preferência, trazer  sua fala enfeitada pela frase:” não que eu tenha nada contra...” quando você quereria dizer que é contra, sim, mas por prudência, deixa no ar que pede desculpas por pensar ligeiramente fora do prumo admitido pelo pensamento hegemônico.
Assim, aborto, liberação das drogas – particularmente a maconha –, o gayzismo (acho que eles não gostam muito de serem chamados assim), políticas afirmativas e o socialismo caboclo perpetrado pelo PT com sua sanha eterna de controlar imprensa, seu cérebro, o judiciário – a infiltração de gente da laia do Tofolli no Supremo nãos nos deixa mentir, olhem só o que o arteiro garoto acabou de aprontar emitindo uma resolução que impede o MP de fiscalizar os políticos marginais no período das eleições. Algo com um primor de desfaçatez e cara de pau difíceis de acreditar. Nem falo do protagonismo dos mensaleiros que, encanados, declararam-se perseguidos políticos. Mudaram roubo, furto e toda sorte de falcatrua, uma lista do Código Penal, em ação política em favor do “glorioso” PT como se isso os tornasse imunes a serem meros ladrões de galinha que são. Enfim, cada tema mereceu uma, às vezes, irônica e bem humorada refutação, quando não denúncia.
Ninguém precisa concordar com tudo que diz o Olavo. Claro. Alguns temas que defende são controversos e por pouco não ficamos com aquela sensação de algum tipo de trama hollywoodiana com direito a sofisticadas teorias da conspiração. De todo modo, vale pensar a respeito. No mínimo, algum fundo de verdade tem. O que servir para nos manter alertas, particularmente num ano eleitoral em que, desgraçadamente, por absoluta anemia de candidatos para se opor à máquina de votos que o PT montou, vai permitir que eles continuem com suas inúmeras bolsas a manter cativos um mar de miseráveis que, curiosamente, só aumenta. Percebam que, neste caso, há dois discursos: um que diz que o PT retirou milhões da miséria. Outro que justifica o aumento constante de miseráveis carentes de ajuda. A conta não bate, exceto se tiverem, na surdina, importando pobres de nações miseráveis para o Brasil. Mas isso, acho, daria mais dor de cabeça ao inepto Mantega com uma balança comercial desfavorável que só piora dia a dia. 
Nem precisa muita disposição. A leitura de “O mínimo...” prende pela desenvoltura e pelos textos eivados de citações que lhe dão mais veracidade e de que, no fundo, você, pessoa esclarecida, já sabia, só faltava um beliscão para acordar. Acho que pelo menos o livro terá cumprido sua missão se nos colocar a todos um pouco mais desconfiados com as continhas e espelhinhos que querem insistentemente nos dar.