Ladrões tentaram roubar as cinzas de Sigmund Freud,
pai da psicanálise, e de sua mulher Martha no cemitério londrino onde se
encontram, informou a polícia britânica.
Fonte: AFP (15/01/2014)
O detetive
estava visivelmente perturbado na hora das declarações à imprensa. Eis sua
fala, tal como pronunciou.
Não sei que
diga. Um ato vil. Como é que alguém tenta roubar as cinzas de uma sumidade? Com
que propósito? Haverá um mercado de cinzas de gente importante? Quiçá de ossos,
como se fazia na idade média com os ossos dos ditos santos? Cito ossos, assim, en passant, não há mais ossos freudianos.
Ou seriam apenas dementes como aquele casal que jogou tinta no Drummond no Rio?
O homem do casal disse que queria impressionar a piriguete burra. Os homens do gênero
masculino heterossexuais antigamente impressionavam as mulheres com flores,
poesia, dando conta do recado no recôndito da alcova. Agora isso. Perdoem.
Devaneio.
Pensei que
estivessem sob efeito de drogas, vai se saber. Nada. Estavam perfeitamente sãos.
Psicóticos, quem sabe? Mas as ideias pareciam bem aplumadas. Neuróticos não
eram, eu sei. Estudei os ensinos de Freud, que Deus o tenha em bom lugar. Sim,
sei que era ateu, mas de repente agora é crente, depois de morto quem pode
afirmar o contrário? Acho que ele não se importaria com essa minha fala que não
é um ato falho, se querem saber.
Há muita gente
desalmada no mundo. Será que estacaram na fase anal? Sei lá... Aquele prazer
mórbido de reter as coisas. Um pode se tornar tão autocentrado que não sabe dar
mais nada e, no limite, até furta qualquer coisa para ter ainda mais. Ou ainda
fosse a manifestação da pulsão sádica de destruir e manter o objeto de prazer.
Mas não estou convencido. Quem sabe havia uma simbiose dos egos dos malucos. Poderia
ser que um dos conspurcadores de tumbas estivesse nesta fase anal e o outro
algum desvio parafílico fetichista com mortos. Não qualquer morto, mas Freud e
sua pobre mulher. Quero dizer, o que sobrou deles.
Mas me ocorre
que pudessem querer fazer algum rito xamânico das trevas com as cinzas, alguma
beberagem para obter a genialidade do pai da psicanálise. O silêncio destes
sem-coração pode fazer um pensar as coisas mais loucas. Pois como preencher a
razão para fazer o que fizeram? Eles sabiam que não era cinza de um qualquer:
era a do Freud!
Causa
consternação, sim senhor. Não sei o que diria Freud se estivesse vivo. Fechadão
como ele era, obsessivo em espalhar sua doutrina, talvez não levasse a coisa na
brincadeira. Imagine. Não suportava uma contradição com sua ideia, que dizer do
uso de seu corpo ou partícula dele para fins inenarráveis. Baniria os tais para
os confins do inferno da pulsão de morte ou os submeteria a sessões psicotizantes
a ponto de não saberem mais a própria identidade, tarados pelas mães e
foracluídos do nome-do-pai. Sei lá. Especulo. Lacan estremeceu no túmulo agora.
O fato é que estamos
todos no escuro. A dupla foi submetida a modernas técnicas de interrogatório,
incluindo o afogamento controlado. Com o polígrafo nem uma palavra fora do
lugar. Demos injeção de escopolamina a pentotal sódico, nem uma palavra. Riram
pra se acabar, foi o resultado. Algo de causar espanto entre nossos mais
experientes interrogadores, alguns com pós nos EUA. Já se cogita, inclusive, estudá-los
para treinar nosso pessoal, caso sejam pegos por alguma Al Qaeda da vida.
Por pura
sorte, impedimos que levassem os restos mortais do insigne psicanalista. Mas
deram por falta de algumas gramas das cinzas. Onde estariam? Nos bolsos e mesmo
na boca não se encontrou. Os acusados receberam investigação médico-científica
de alta sofisticação: cada qual foi submetido a uma colonoscopia e endoscopia e
nada se achou. Teriam vomitado ou evacuado antes? Eis um mistério.
Expediu-se um
comunicado para recuperar esta porção faltante de cinzas. Esperávamos a ajuda
da população que sempre se mostra solidária em casos como este, mas, horror dos
horrores, sem querer atiçamos a sanha de um sem número de loucos mansos ou
aproveitadores que chegaram com quilos e quilos de cinzas na delegacia, sabe-se
lá de que forma obtida. Houve, inclusive, aumento de violações de sepulturas.
Alguns, para dar veracidade a seu material, pretendiam arrancar defuntos reais
e queimá-los para fazerem passar pelo ilustre e agora maltratado Freud. Nem os
chineses seriam capazes de tal picaretagem. Falo por falar, eles falsificam
ovo, noz, carne, o diabo. E olha que nem falo dos eletrônicos.
Acho que ficaremos para
sempre sem este pedaço do Freud, assim como as cartas que queimou por picuinha
e raiva de alguns melhores amigos dos quais se tornou depois desafeto radical.
Estejam em paz os fragmentos, onde quer que estejam.