Em 2007
aconteceu a primeira Feira do Livro de São Luís, a Felis. Naquele ano, o
homenageado foi Ariano Suassuna. Com 80 anos à época, esbanjava disposição, bom
humor e paciência para conversar, ouvir e dar autógrafos. A força física já não
era tanta, mas como diz o apóstolo Paulo, escrevendo aos Coríntios: “Por isso,
não desanimamos; pelo contrário, mesmo que o nosso homem exterior se corrompa,
contudo, o nosso homem interior se renova de dia em dia.” (2 Co 4.16) Assim se
nos apresentou Suassuna.
Deu-nos duas
palestras inesquecíveis em que desfiou seu bom humor sobre o qual nos disse ser
parte de sua própria natureza. Falou na Câmara Municipal, onde recebeu o título
de cidadão de São Luís e depois na própria Felis. É dispensável dizer que não
havia lugar para por o pé, tanta era a gente que queria ouvi-lo. Nós
maranhenses, que outrora contávamos com tantos representantes das letras,
recebemos Suassuna como se fosse uma pequena divindade. E o ouvimos
embevecidos.
Um dia depois
de sua partida, eu mesmo lançaria meu livro Vagamundos na feira. Então, ainda
na Câmara, dei-lhe o livro com tanta cerimônia e medo, que por pouco não
desisti. À tarde, no hotel onde estava hospedado, fui disfarçado de jornalista com
a equipe do Guesa Errante – suplemento literário do JP – que faria entrevista
exclusiva com Ariano.
Apresentações
e a entrevista começou. Entre as pérolas de sua fala está como explicou seu
desamor, por assim dizer, ao político João Pessoa, que deu nome à capital da
Paraíba, e, segundo Ariano, era inimigo de sua família. Admirada, a repórter
indagou como era ter inimigo desde a infância e ele: “Ah, minha filha,
sertanejo guarda raiva em pé de pote.” E completou: “Além do mais, a gente fica
sujeito a gracinha. Em Pernambuco, o pessoal pergunta a mim: O senhor é filho
natural de João Pessoa? (Risos) Eu nem gosto do homem e ainda passo por estas
humilhações.”
Lá pelas
tantas, Ariano havia dado alguma indiretas de que não puxassem muito por ele,
pois tinha o mal de ficar rouco se falasse muito. A entrevista se encaminhava
para o fim, e então professor Alberico, editor do Guesa, me apresentou como o
autor do Vagamundos. Lembrou-se de que eu havia lhe dado o livro. Suassuna
olhou para mim, deu-me um abraço e falou que após o almoço havia dado uma lida
em algumas das histórias e, como prova que não me agradava, discorreu sobre o
personagem Diarroba por quem quedou-se de admiração.
Fiquei como
sem fala. Ele ali achando pontes com outros personagens literários das andanças
de suas leituras. Não deu conselhos. Não foi professoral. Tratou-me como se
fosse um seu igual, eu que nem ousaria tal coisa. Só queria estar perto,
ouvi-lo contar de eras, lugares, gentes que ele conhecia como se – não pela
idade – ele tivesse atravessado longos períodos de tempo com aquele rosto,
roupas, sotaque e maneiras que pareciam de um tempo deslocado deste aqui. Não
parecia atrasado para mim. Era um visitante de outros mundos e eu só queria
aprender um pouco.
Naquela
entrevista pudemos ver pelas frestas de sua fala que se tratava de um humanista, um
amante das artes – a brasileira e nordestina – pois tinha com as produções
estrangeiras, particularmente os enlatados americanos, uma ingrisia. Declarou a influência
dos irmãos Azevedo (Artur e Aluísio), escritores maranhenses; a sua
antipatia pelo “O Mulato”, obra que dizia carregar um positivismo determinista,
dando ao problema da raça uma dimensão que ela, segundo ele, não tem. E
acrescentou: “Eu não acredito nessa história de raça. Para mim, só existe a
raça humana.” Ah, se certas correntes política aprendessem com o mestre!
Ariano
Suassuna deixa um legado importantíssimo ao povo brasileiro. Explica-nos,
declara-nos, particularmente aos nordestinos. Que alegria ter convivido com
Ariano, ainda que tenha sido por tão pouco tempo. Vai, Ariano-nordestino,
Ariano-brasileiro, Ariano-sertanejo, conversar com Deus.
Trechos da
entrevista concedida por Ariano Suassuna ao escritor
Alberico Carneiro (editor de O Guesa Errante) e à jornalista Kátia Persovisan
publicada no Jornal Pequeno em 12 de janeiro de 2008.
Quando
Ariano Suassuna, o cidadão, descobriu o escritor Ariano Suassuna?
AS: Eu comecei muito cedo. Eu sou muito
enxerido. Eu comecei a escrever com doze anos de idade. Agora você deve
imaginar a qualidade do que eu fazia com doze anos. Era um negócio péssimo. Mas
meu primeiro poema foi aos dezoito anos e depois daí não parei mais.
JP: O senhor
falou hoje de dois autores maranhenses, Sousândrade e Gonçalves Dias. Com quais
autores maranhenses o senhor chegou a ter contato.
AS: Olhe, os dois irmãos Azevedo me exerceram
grande influência, Aluísio e Artur. O Artur mais... Menino eu li um conto dele,
O Plebiscito, você já leu? É uma história engraçadíssima. Um menino está lendo.
É uma casa de interior, burguesa, de pequena classe média. De repente o menino
diz: “Papai, o que é plebiscito?” É interessante a colocação, não é?
Depois eu li
os contos de Artur Azevedo e o próprio teatro e acho que ele merece até uma
atenção maior do que aquela que a crítica brasileira dá a ele. Aluísio de
Azevedo eu li com grande encanto na adolescência, O Cortiço. Acho uma
obra-prima. O Mulato eu não gosto não. Eu acho um certo positivismo
determinista, dando ao problema da raça uma dimensão que ela não tem. Eu não
acredito nessa história de raça. Para mim, só existe a raça humana. Eu não
simpatizo muito com O Mulato, não. Li Casa de pensão, li O livro de uma sogra,
mas o livro que me tocou mesmo foi O Cortiço, que está citado no romance que
estou escrevendo.
JP: Em qual
cidade o senhor nasceu?
AS: Eu nasci na capital da Paraíba. Mas não
gosto que se espalhe isso não. Eu sou descendente de quatro famílias
sertanejas. Com um ano de idade eu fui para o sertão. Fui criado no sertão da
Paraíba, de maneira que não gosto muito não. Para não parecer que é desfeita
com minha terra, eu gostava da minha terra até 1930, quando tinha três anos e
quando eu tinha três anos mudaram o nome da cidade. A cidade chamava-se
Paraíba, um nome tão bonito... Eu não gosto desse atual (João Pessoa).
JP: Por que?
AS: Primeiro, eu não gosto dessa família. Essa
família é inimiga da minha desde que eu era menino.
JP: O senhor
está chegando a esta idade e o senhor tem esses inimigos desde que era criança?
AS: Ah, minha filha, sertanejo guarda raiva em
pé de pote.
JP: É tipo
cachorro vingativo. (Risos)
AS: Além do mais, a gente fica sujeito a
gracinha. Em Pernambuco, o pessoal pergunta a mim: O senhor é filho natural de
João Pessoa? (Risos) Eu nem gosto do homem e ainda passo por estas humilhações.
JP: Eu estou
satisfeito pelas perguntas que fiz, eu gostaria que outras pessoas também se
manifestassem, se quiserem fazer alguma pergunta.
AS: Se puder me liberar, eu agradeço, mas se
quiserem alguma coisa eu também respondo.
Disponível
em: http://www.guesaerrante.com.br/2008/3/12/Pagina989.htm