terça-feira, 29 de setembro de 2009

O encontro com Eu Sou

Qualquer um ficaria aturdido. Aquele era só mais um dia comum de trabalho. Levou as ovelhas para o pasto como o fez ao longo de quarenta anos. O som dos balidos, o vento do deserto, um uivo distante de um chacal. Todos os sons e cores lhe eram conhecidos naquele lugar perdido.
De repente, ali bem no sopé do monte, algo extraordinário. Um brilho incomum: fogo numa sarça. Ela é apenas um novelo de planta seca que reverdece só num curto período do ano em que algumas gotas caem. É o período em que chuvas nas montanhas fazem rios surgirem do dia para noite e que desaparecem tão repentinos quanto apareceram.
Mas, passados alguns minutos, a sarça não se consome. Olha o extraordinário manifesto no ordinário e aparentemente sem vida! A sarça arde em meio a um fogo fátuo que não se extingue, nem ela, que em condições normais seria devorada em segundos em estalidos agudos produzidos pela chamas.
A experiência inaudita. Deus em pessoa se apresenta e comissiona aquele Zé Ninguém a ser um libertador. Sabe seu nome. Não é um deus qualquer, é alguém com referências: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó.”
Um homem que pouco se acha reage da única maneira possível: medo, desculpas e perguntas, entre elas a mais difícil de todas. Quando me perguntarem o teu nome, além da apresentação que o senhor acabou de fazer, que direi ao povo? Para Moisés, Deus precisava de um nome. Mas Deus é o inominável. Um deus com um nome é um deus banal. Os deuses egípcios todos tinham um nome, uma aparência, criada por seus adoradores.
Um Deus sem nome pede um exercício de desprendimento, uma luta com o inefável, um encontro com a limitação gigantesca que a todos nós subjuga e apequena. Não há como domar um Deus sem nome. Impossível abarcar com a mente um Deus que tem consciência de si. Ele simplesmente nos escapa a imagem. Um Deus sem nome nos obriga a uma relação em bases em que Ele fala e define as condições. Cabe-nos tão somente a descoberta, ao ritmo da sua revelação, o que requer tempo, submissão, espera.
Moisés espera a resposta. Se vai representar Deus, precisa de uma credencial que legitime sua missão. Um nome serviria para diferençar naquele mercado religioso inflacionado de deuses para tudo quanto era utilidade, metamorfizados em bichos que lhes emprestavam forma e caráter. Mas este Deus é estranho. Ele busca, procura e se oferta. Bem verdade que, segundo ele mesmo, seu movimento é em resposta aos clamores e sofrimento do povo. Outro estranhamento: ele ouve, se indigna com a injustiça.
“Não te chegues para cá; tira a sandália de teus pés, porque o lugar em que estás é terra santa.” Deus estabelece uma fronteira. Nesta jornada que ambos terão, há um espaço que cada um deve ocupar. Mas, pensa Deus, ao longo do tempo, na experiência coletiva e ainda mais individual, a fronteira deverá ser borrada.
O espaço santo e o espaço do restante da terra, da iniciativa humana, do realizar não somente a vontade divina soberana, mas acima de tudo de um constituir-se pessoa e povo é só o caminho inicial. É nesta contraluz, nesta dança de opostos, que não exclui, que Ele diz quem é e, em oposição, um começa a desconfiar quem é também. Moisés se torna quem deve ser no encontro, no deixar-se achar, mesmo em dilemas terríveis. Deus se revela e revela Moisés a ele mesmo.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Pobre nunca mais

Quem nunca ouviu falar em Network Marketing pelo bem, deve ter ouvido pelo nome mais simplório, pirâmide, normalmente envolto em nebulosas histórias nas páginas policiais de pessoas que se dizem lesadas de alguma forma. O sonho é atrativo e velho: enriquecer fácil e rápido. A ciranda é grande e o sujeito, turbinado por palavras de ordem e o efeito manada, entra no negócio para vender produtos que, em sua área de atuação, são verdadeiros pequenos milagres embalados.


Bernicláucio é gente boa. É uma versão do Kleber Bambam, sem a sorte de ter vencido o BB Brasil.  Peca por excessiva credulidade, além do que é também altamente influenciável. O traço marcante deste modo abobalhado de ser é seguir como um cativo o mundo fashion (antigamente bastava dizer moda). Falo de roupas e outros que tais. Se amanhã disserem que um homem deve usar calças boca de sino roxas e camisas vermelhas e o cabelo em rabo de cavalo, Bernicláucio é o primeiro a sair com o conjunto. Ele se orgulha de conhecer moda e está pouco se lixando para o ridículo de certas combinações.
Nestes dias estava meio capenga, coisa difícil de acontecer. E aí, Bernicláucio, tudo bem? Mais ou menos. O que é que tá pegando? Além dessa cueca nova que tá me pinicando o traseiro, falta grana, meu camarada. Que foi, está desempregado? Nada, estou como organizador de mercadorias avulsas para os clientes no supermercado, mas meu destino é grande meu camarada, ainda vou ser rico.
Bernicláucio está empacotador. Já foi gari, que ele chamava de agente de higienização urbana. Mas como sempre diz: não nasceu para o trabalho grosso, só pro fino. Ganhar na loteria diz que não, embora faça sua fezinha toda semana, mas acredita que deve ter algum negócio miraculoso que ainda vai lhe tirar dessa pendura financeira.
Há tempos anda empolgado com os Network Marketing, já esteve na Amway, Herbalife, Forever, a cada decepção renova sua fé na próxima, seja lá o produto que vendam. Cita frases de auto-ajuda por ele mesmo inventadas, além das que decora nas reuniões.
E o negócio das pirâmides que tu vive se metendo Berni, ainda não deu certo? Pirâmide não, Network Marketing. Meu camarada, vou te contar. O negócio é bom, dá certo, o diabo é que a base vai ficando cada vez mais larga e chegar num cocoruto qualquer, com um monte de gente embaixo vendendo e você só ganhando no mole, demora pra danar. O produto é o de menos, é tudo a mesma coisa. Agora, vou te dizer, a mais nova sensação é o Poor Never More. Olha, se ouve cada testemunho que é de encher o olhos d’água. Cabra chega lá puxando a cachorra, investe uns caraminguás e em pouco tempo tá de bolso cheio.
Vende o quê, Berni? Meu camarada, ainda não sei, mas não é nada destas coisas de babosa, material de limpeza, nem quer desengordar ninguém. Mas num posso falar muito porque este povo cisma quando a gente sai e eu já passei por todas. Diz que quebra a corrente. O cabra fica marcado.
Mas pra falar a verdade, num tô mais muito motivado pela venda. Gosto mesmo é das reuniões. Ô meu camarada, aquilo ali se mistura tudo quando é coisa que se pode imaginar. Se reza, se canta, se diz palavras positivas. A hora que eu mais gosto é quando o líder-ouro que nos visita sempre, grita: quem é Poor Never More? Nós todos gritamos juntos três vezes: Eu sou Poor Never More. Aquilo passa que nem eletricidade, a gente se vê importante e sente que pode tudo. Olha aí, tô até arrepiado.
Mas como é que tu vai ganhar dinheiro com isso? Basta investir, depois que somos instruídos nos segredos do negócio, vamos atrair dinheiro. Tem que limpar o atraso, o azar. O kit ensina tudo, até rezar uns mantras para abrir caminho e atrair compradores. Compradores de quê Bernicláucio? Já te disse, isso é o de menos, tem é que ter fé. Meu camarada, será que eu tô viciado na falação de riqueza que o povo diz lá?
PS 1. A  ilustração é emprestada de um post que achei no Pavablog. É uma piada com o twiter, mas cabe como uma luva no texto.
PS 2. O texto foi inspirado numa cena que presenciei. Na chegada a um coquetel de inauguração de uma loja dei de cara com uma muvuca de gente de paletó num verdadeiro frenesi. Entravam e saiam do salão contíguo à loja. Confesso que fiquei intimidado, não estava à caráter. De dentro se ouvia os brados. Alguém puxava e os demais repetiam. Aliviado, percebi que não se tratava da inauguração da loja, mas de um encontro de uma dessas pirâmides. Como se trata de um negócio comercial, dificilmente, exceto como propaganda paga, os jornais dão alguma cobertura, daí que o texto introdutório é de nossa lavra mesmo.