sábado, 11 de setembro de 2010

Envelhecer é doença

Dra. Zoe Diana Draelos, 52, é dermatologista. Em recente declaração disse categoricamente que a velhice é uma doença e precisa ser combatida. Explico. Não sou exatamente interessado em cuidados cosméticos, mas o jornal caprichou no título da reportagem – “Envelhecimento é doença controlável” –, o que, confesso, atiçou minhas provectas preocupações com a passagem dos anos.
O conteúdo da entrevista, no entanto, revela que a afirmação bombástica era um apelo ao leitor, uma forma da tal doutora destacar-se num mundo de intensa competição. Destacar-se, não raro, exige atitudes e afirmações provocativas, desafiadoras do senso comum e do conhecimento estabelecido. Conseguida a atenção, diz-se o que todo mundo já sabe, não importa. E foi isso que a doutora fez: coma melhor, pratique exercícios, não se exponha ao sol, use protetor solar, etc, etc.
Onde exatamente estava a doença chamada velhice que o CID 10* ignora? Em lugar nenhum. A doutora não indicava o remédio milagroso saído direto da fonte da juventude. Decepção. Nem mesmo um tratamento revolucionário cuja promessa fosse daqui a dez anos e eu ainda pudesse aproveitar. Nada. Eu que outro dia me exasperei com um mísero cabelo branco que apareceu justo na sobrancelha esquerda. Assim, do dia para noite. Verdade! Um dia antes ele não estava lá. Cheguei a pensar que fosse um fio do lençol.
Acho que passo uma impressão errada. Não sou neurótico com a velhice. Parafraseio Woody Alen. Não tenho nada contra a velhice, só não queria estar lá quando ela chegasse. Também não tenho pensamentos suicidas, aviso logo.
        Por que a cisma com um solitário fio branco – que foi devidamente cortado com precisão cirúrgica – se minha cabeça, esta sim, já vai bem salpicada deles? Um tipo de transferência? Freud que me perdoe. Uma negação? Uma projeção? Precisaria de mais papel para elaborar isso, então contentemo-nos por aqui mesmo. Alguém, sempre, terá que pagar a conta de nossos desencontros, fantasias, autoenganos. Neste caso foi aquele amotinado cabelo branco na sobrancelha. Dias passaram e esqueci. Belo dia, deparo-me horrorizado: havia dois cabelos brancos.
        Aos navegantes aviso, tenho ojeriza a cabelos pintados. Bigodes e sobrancelhas são, então, o sumo do ridículo. Tenho outra solução mais sofisticada. Duradoura, se der certo. Acompanhem comigo. Pedirá um raciocínio mais elaborado. No mesmo jornal, ainda carregava minha frustração com a doutora falsídica, quando vi que o Google lançara um novo gadget em sua busca onipresente.
        Preparem suas mentes para o alumbramento. O novo gadget não foi pensado para o destino que pretendo empregar, portanto, é algo experimental e não me responsabilizo pelos efeitos adversos. À explicação. O dispositivo aumentará a velocidade com que se faz buscas. Chama-se Google Instant. Nem precisará terminar a digitação e ele já estará dando as possíveis respostas. Mais. Elimina o clique no botão “procurar”. Adiante. Pesquisas do monstro internético descobriram que o internauta leva 300 milissegundos para teclar e míseros 30 milissegundos para olhar o resultado. Logo, o buscador vê ao mesmo tempo em que digita, portanto não precisa digitar tudo.
        Um pouco mais de paciência. A pesquisa também revela que se leva mais de 9 segundos para digitar. Varia até entre 30 e 90 segundos. Uma eternidade, sem dúvida. Aqui entra a solução. Com o Google Instant, o achador economiza de 3 a 5 segundos por busca. Sei que vocês, espertos que são, está aí contabilizando. No mundo todo, esta economia de tempo soma 3,5 bilhões de segundos. A cada segundo de funcionamento do sistema, 11 horas seriam economizadas.
Preparem-se. Eis o salto quântico que eles não viram e lhes dou aqui, de graça. Se eu, indivíduo, economizo entre 3 e 5 segundos, economizo, no valor mais conservador, 33 horas numa única busca. Rapidamente isso se transforma em anos, ora se não. Se alguma mágica inesperada acontecer, estarei rapidinho rejuvenescendo. Melhor ainda, aproveito e congelo o tempo. Na hora que ele desembestar para frente, sapeco um Google Instant nele. E fico ali, só de troça, como o gato brinca com o rato. Será?


*CID 10: Classificação Internacional de Doenças (décima edição)

Anastácio, o amigo do peito

O economista Gustavo Rojas, 34, analisou seu mercado eleitoral na Venezuela e não teve dúvidas: lançou uma rifa de implante de silicone para ajudar a financiar sua campanha para deputado da Assembleia Nacional.

Fonte: DE CARACAS Folha 28/08/2010

A cada dois anos ele é acometido da mesma sandice. Acredita com fé de um pagador de promessas que tem chances de se eleger. Ainda não se candidatou a cargos majoritários – prefeito, governador, presidente, senador – não que desacredite de seu potencial, acredita, os companheiros de partido é que torcem o nariz. Dizem que ele é candidato de nicho eleitoral. Para estes cargos tem que ser mais amplo, um homem do povo, que saiba destrinchar a coisa mais difícil sem se melindrar. Rezar todo credo. Tem que ter um pendor natural para mentir descaradamente e acreditar na mentira, pois se não acredita, não passa credibilidade. Anastácio não concorda com nada disso, mentir é com ele mesmo, mas fazer o quê?
A despeito de sua crença inabalável na vitória, a verdade é que ainda não chegou lá e já se foram uns dez pleitos, o que dá uns bons vinte anos nesta labuta. Um dia dá, diz confiante. Como é candidato da rabeira, tem dificuldade absurda para financiar a campanha. Reclama com Asdrúbal, presidente do Partido Universal Democrárico Renovador Cristão (PUDRC), e este diz sempre que o dinheiro do partido é para despejar nos grandes, quem quiser que se vire vendendo os possuídos ou balance o pires por aí. E ainda tem que pedir votos para os cabeças. Arre com tanta exigência, lastima-se Anastácio.
Dinheiro não tem. Este ano, a sogra que já ajudou noutras campanhas, disse que não podia mais. Mas tinha uma ideia para levantar uma grana. Leu num jornal. Ela mesma estava disposta a comprar. Uma rifa de peito. De silicone, esclareceu. A mulherada, disse ela, é louca para levantar os peitos e o Brasil é vice-campeão mundial no quesito. Tu sorteia três tamanhos e vende cada rifa por um preço.
Anastácio achou a ideia um disparate, mas depois, pensando bem, olhando comprido para o monte de carros envelopados com as caras fotoshapadas e sorridentes dos outros candidatos e ele com foto tamanho A4 em três cores. Decidiu-se. No PUDRC foi um alvoroço. Vamos consultar o TRE, disse Asdrúbal, querendo ganhar tempo. Mas a rifa já ganhou mundo. Não há mais volta.
A maledicência corre solta. Os outros candidatos achincalham a ideia, mas até as mulheres destes querem comprar a rifa. Quando estes reclamam, elas desafiam: está bem, então tu paga um peito de 10 mil reais. Onde é que eu acho um peito por 20 reais? (este é o maior tamanho). Até já foi dito que as próteses são chinesas (e são), fabricadas no Paraguai, mas nem isso diminui a febre das vendas. Um dos slogans diz: Eleitor, você não tem peito, mas sua mulher tem. Ajude a eleger Anastácio deputado. Outro dia, no horário eleitoral, saiu-se com essa: Ponha seu voto no colo do Anastácio, será aconchegado com respeito. Quem não chora não mama! Anastácio, seu deputado, nº... Fez sinal de vitória.
A Igreja já se manifestou. Disse que vender rifa de peito – e ainda mais daqueles tamanhos – é antinatural. Os intelectuais escreveram rios de textos avaliando por todos os ângulos o fenômeno. As feministas estão umas araras. Dizem que Anastácio é um energúmeno, um porco chauvinista. O presidente Lula disse que é a favor, pois é chegado num peitão também, com todo respeito.
Anastácio está que não se aguenta. Se tiver voto como tem vendido pontos da rifa, será o mais votado. Agora está às voltas com dois problemas: 1. As eleitoras querem por que querem mais um produto na rifa: prótese de nádegas. Elas disseram bunda, mas Ansatácio não pode falar isso no horário eleitoral. 2. Os restos de campanha. Sabe que vai sobrar e muito, pois não conseguirá gastar tudo nas despesas previstas. Está pensando em se aconselhar com o pessoal do Partido dos Taumaturgos (PT), dizem que fazem milagres neste casos. Mas a um amigo já avisou: não põe dinheiro na cueca nem que a vaca tussa.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Existência e posse


Com os hebreus, na travessia do deserto, acontece um fato interessante. O maná caía do céu toda manhã cedinho. A descrição sugere como que a cristalização desta substância sobre o chão, como uma geada. Colhido e amassado, era assemelhado à farinha de trigo, era doce e se podia fazer bolos com ele. Havia uma ordem. Cada família colheria a porção necessária para o dia, para quantos fossem em cada clã. A medida exata para saciar a fome. Nada de sobras.
Também não se podia guardar maná para o dia seguinte. Algumas pessoas, preocupadas, não ouviram ou fingiram não ouvir. Estavam aflitas com as condições de sua sobrevivência. O aflito não confia, nem crê. Juntaram a quantidade suficiente e mais um pouco. No dia seguinte, haviam nascido tapurus, fedia, estava podre.
A fome os motivou a quebrar a regra. Há muitos tipos de fome, cada qual fruto de um desejo, e mesmo quando se come não se sacia. Não até que o que deseja deseje outra coisa ou perceba que a tal fome não é de necessidade, mas de uma falta sem nome. É um círculo sem fim. Em A Divina Comédia, Dante descreve os avarentos no quarto círculo infernal. Ali eles estão condenados a rolarem enormes pedras e a se injuriarem mutuamente.
É curioso o hábito de colecionar coisas. O capitalismo sabe disso e se aproveita deste traço tão humanamente idiossincrático. Que motivações nos fazem acumular? Haveria aí um traço de uma necessidade infantil que Winnicot identificou como objeto transicional? Ou é porque somos seres estéticos e colecionar seria apenas reter formas diferentes da mesma coisa que, de algum  modo, preencheria a visão ideal desta coisa que nunca pode ser alcançada?
Talvez, penso, as duas razões expliquem, em parte, nossa característica para guardar. Fatores sociais, ambientais e culturais também explicam. Uma razão, porém, tem um peso especial: a necessidade de controle. A ela servem todas as demais, sejam psicológicas – aqui entendido no plano da relação do indivíduo consigo mesmo – ou comunitárias.
Possuir, como se sabe, nem sempre tem função prática, é mais uma mensagem para si e para o outro. É uma forma de expressão e de relação, daí a ideia winnicotiana de objeto transicional. Aquilo que me permite estabelecer uma relação com o exterior. O exercício da construção de si que nunca acaba. Sina de ser um sujeito permanentemente mediado pela coisa. A avareza seria o estado da arte desta incompletude.
        O povo hebreu – aquele que não era povo ainda, pois hebreu é apenas um designação genérica de pessoas sem definição cultural específica – é uma metáfora desta transição entre ser um indivíduo e aquilo em que um se torna em sua identidade mais íntima.
O sem identidade tenta conservar apenas a vida biológica, não tem vínculo, não carrega nada, não lega. Faz-se a partir de retalhos. Sua segurança é o que possui e ao mesmo tempo é uma mensagem de quem é. Sua relação com o tempo é indicadora de sua não identidade. O passado é algo amorfo, o futuro é um deus-dará. Para ele só existe o presente medido pela posse.
No dia seguinte à gana, o maná havia caído de novo, mas as pessoas foram primeiro aos potes-tesouros. Desconfiavam que o bem não se repete, o cuidado não virá para alguém que não se pensa com valor. Abriram a tampa, contorceram os narizes, era o fedor da ganância, do desamor, do desrespeito àquilo que não fosse o bem preso na mão, seguro, mesmo podre.
Ainda guardamos, acumulamos, é nosso recado de que somos feitos de restos daquilo que preservamos, a vida protegida à custa do medo. Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la.