Ovelhas e lobos, serpentes e pombas. Quatro animais numa frase cujo contexto revela uma inflexão na relação entre Jesus e os discípulos, mas também na ação daqueles. Da passividade de audientes, para a prática viva da pregação. O cenário não é animador. Ameaças e violências pontificam o que lhes espera no caminho e diante de tais situações há que se ter determinadas características. É isto ou a sucumbência ao vazio da irrelevância. A morte prematura da mensagem.
O discurso descreve uma ecologia do espaço da pregação. Os pregadores são presas (ovelhas), os religiosos, não necessariamente os ouvintes, são os predadores (lobos). Os ouvintes também se tornam lobos em situações especiais. Desde que os lobos alfa os manipulem com alguma destreza. Não existe neutralidade, o que há é uma mudança constante de papéis, porque, por antinatural que pareça, ovelhas também se tornam lobos. Nossa natureza é cambiante como as cores sob o efeito da luz.
Que quer dizer ser prudente e simples? Embora nos pareçam palavras distintas, em seu sentido aqui são termos que se tangenciam. Aristóteles considera a prudência a principal das virtudes. Para ele esta virtude se equilibra entre a falta, que é a moleza e o excesso, que é a ambição.
Para nós hoje a prudência está reduzida à simples cautela. Mas tanto em Aristóteles como no Evangelho o significado vai além. Para o filósofo, quer dizer tomar a decisão certa. Para o Evangelho, é ser sábio e inteligente. Alguém consciente de um único interesse. É neste ponto que prudência toca a simplicidade.
Ser simples tem a ver com não ser misturado. É puro como um vinho ou um metal depurado. Uma mente sem a mistura do mal. Evoca inocência. Unicidade. Novamente temos um predador e uma presa. Mas diferente da primeira dupla de opostos, onde apenas o conflito se destaca, aqui há um complemento de características.
Ocorre-me que a pureza sozinha num mundo caído é um ideal que nele não se cria sem que seja misturada há algo que lhe dê um esqueleto de sustentação, neste caso algo que na serpente nos parece algo intrinsecamente mal. A prudência na serpente é malícia, assim vemos. É ardil e sagacidade cujo único propósito é ferir. Na ovelha é uma arma de defesa.
A teoria se parece a algo predito no Tao te Ching (O Livro do caminho Perfeito), cuja principal representação para nós ocidentais é o círculo representativo do Yin e do Yang, as forças masculina e feminina, respectivamente. Refiro-me ao fato de que uma mesma coisa carregue seus opostos, cuja interação resulta num bem superior, segundo o Tao. Não sugiro, por evidente, que mal e bem são faces da mesma moeda, como diria o Raul, envolvidas num abraço astral. O evangelho, por sua vez, declara o bem ou o mal intrínseco dos atos, pois desacredita que uma mesma fonte borbulhe água amarga e doce ao mesmo tempo.
malícia da serpente, suponho, tem a ver com seu andar sinuoso que é sempre algo sutil e delicado. Os obstáculos são contornados com perícia envolvente. Ser sinuoso para nós é ser dúbio, astucioso, alguém cheio de subterfúgios. O ser sinuoso aqui tem característica dinâmica, aquele que se desvia. O mal reside na falta de flexibilidade. Em psicologia, tomada emprestado da física, chama-se resiliência, que conjuga adaptabilidade, capacidade de deformação elástica emocional e mental.
O evangelho, por suposto, distingue-se do Tao e chama o mal pelo nome, sem possibilidade de que nele habite qualquer bem. O que nos leva ao passo seguinte. Toda virtude numa natureza pervertida se perverte também. Subjaz à pratica da virtude, neste caso, um fim destrutivo ou interesseiro. Alguém lisonjeia, seu objetivo é disfarçar seu ódio (inveja) ou ainda tornar o outro favorável à sua demanda. A lisonja é o alimento da vaidade, mal que a todos nos toca.
Por fim, simplicidade e prudência, são filhas da sabedoria que reconhece o tempo e o modo das coisas. Desvenda as pessoas e situações de modo que, diante das muitas armadilhas que o viver nos apresenta, torna-o uma arte cuja principal arma é a verdade, alguém sem sombra ou variação de mudança. Isso soa a ser um pouco Deus.