Déjá vu
significa, literalmente, já visto. Alguém é tomado por uma forte sensação de que
pessoas, lugares e situações foram vistas ou vividas antes. É um fenômeno
psicológico, pois mobiliza memórias, emoções que se associam às lembranças
vindas como ondas. Quase todo mundo já o experimentou em algum momento na vida
e mesmo em sonhos se pode vivenciar sensações de déjá vu. Quase sempre é um
sentimento benigno, a despeito da estranheza que o acompanha. A memória é
provocada pelos fragmentos perceptivos e corre para preencher todo o quadro
garimpando imagens nos porões da mente, mas nem sempre é possível e se fica com
aquela ligeira contrariedade de não ter sido capaz de lembrar tudo o suficiente.
Aquela tarde
de sábado foi mais que um déjà vu: foi um mergulho literal em lembranças
vívidas e palpáveis que se assentaram sem cerimônia ao lado do que estiveram
presentes, provocativas e instigantes. Acho até que ouvi o berro tonitruante
“mocinho!!” de um dos irmãos marista. Era assim que falava quando encontrava
alguém vagando no corredor em plena hora de aula. Era pior com o irmão Jorge
com seu ar grave a nos chamar de Sr. Fulano ou Sra Sicrana. Ouço o burburinho
das falas, risos, galhofas – não se dizia esta palavra em conversas coloquiais,
mesmo naquela época de nossa adolescência – sobre o time que perdeu ou por
estar à beira de uma catástrofe como a queda para uma divisão inferior.
Fazíamos e ainda fazemos picuinhas sobre a aparência. Sim, a gente não sabia o
que era bullying. Outros ali compartilhamos velhas novidades ou desfrutamos da
alegria de reencontrar alguém que não se via há pouco ou há décadas, como era
meu caso em relação a alguns. Tudo isso transformou magicamente aquele lugar
onde estávamos nos corredores e salas da nossa escola, o Marista.
De repente, era
hora do recreio. Meninos e meninas correndo, filas na lanchonete do seu Elias
para comprar uma fatia gorda de pizza com refrigerante, a alegria distribuída
em festiva algazarra que nem uma prova e sua aflição podiam corroer. O desafio
da vida ali na esquina, mas que ignorávamos, como se todos tivéssemos uma
adolescência leminskiana que diz em sua poesia: “quando eu tiver setenta anos / então vai acabar esta minha
adolescência. Vou largar da vida louca / e terminar minha livre docência.
Vou fazer o que meu pai quer / começar a vida com passo perfeito. Vou
fazer o que minha mãe deseja / aproveitar as oportunidades / de virar
um pilar da sociedade / e terminar meu curso de direito. Então ver tudo em
sã consciência / quando acabar esta adolescência.”
Rejuvenesci uns quinhentos anos naquela
tarde sem qualquer intervenção cirúrgica. Talvez como o avô do Mia Couto: “O
avô era um homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade de
viver.” O menino escondido em mim – e nos outros – saltaram para fora e ninguém
se daria conta de que ali éramos todos cinquentões. Machado de Assis diz que o
interno – aquilo que levamos dentro de nós – não aguenta tinta. Falava ele dos
que pintam cabelos e barba para parecerem mais moços, conservando o hábito
externo como nas autópsias, provocava. Mas nós não precisávamos de tinta qualquer,
porque borbulhava adolescência na alma e era impossível contê-la. Os dançantes
que o digam, mesmo aqueles com marcapasso.
Nossos corpos, sim, denunciam as marcas
do tempo. Agora somos pais e avós. Mas estávamos todos, por algumas horas,
disfarçados de adolescentes e era tal a mágica que nossos velhos pais e mães
teriam se assustado. Será que se pode falar de saudosismo ou um ataque de
nostalgia quando se passa por uma transformação? O saudosista e o nostálgico
querem voltar no tempo e morar naquilo que lembram como bons anos em repúdio,
quase sempre, à realidade que lhe é pesada. Mas se nos tornamos meninos e
meninas não podemos ser acusados desta fuga, não é?
Opa, estou ouvindo a sirene: não, era
música que tocava para sairmos e entrarmos na sala. Uma delicadeza. Chama-nos
outro recreio agora para a vida hoje. Marcados e atravessados por tudo que
vivemos naqueles verdes anos e nos explicam em grande parte agora. Espanto-me
quando dizemos: fomos criados assim e nunca nos tornamos isso e aquilo. E
dizemos que nossos pais souberam nos dar valores. Aquela escola nos deu
valores. Confrontamos com esse mundo cheio de melindres e desacertos e já
nossos filhos dirão de nós algo parecido, espero. Meu espanto é porque lido mal
com a dimensão tempo. Sei que o espelho uma hora dirá: “quem é esse / Que
me olha e é tão mais velho do que eu?” (Mário Quintana)
Já sei: sorrateiramente, nossos colegas
que organizaram o encontro, transformaram o sítio numa cápsula do tempo. Um
portal, melhor dizendo. Que danados! Enganaram-nos direitinho.
PS. Um grande abraço aos queridos colegas – meninos e meninas – da turma do Marista 1982.