domingo, 30 de novembro de 2014

De volta para o futuro



Déjá vu significa, literalmente, já visto. Alguém é tomado por uma forte sensação de que pessoas, lugares e situações foram vistas ou vividas antes. É um fenômeno psicológico, pois mobiliza memórias, emoções que se associam às lembranças vindas como ondas. Quase todo mundo já o experimentou em algum momento na vida e mesmo em sonhos se pode vivenciar sensações de déjá vu. Quase sempre é um sentimento benigno, a despeito da estranheza que o acompanha. A memória é provocada pelos fragmentos perceptivos e corre para preencher todo o quadro garimpando imagens nos porões da mente, mas nem sempre é possível e se fica com aquela ligeira contrariedade de não ter sido capaz de lembrar tudo o suficiente.
Aquela tarde de sábado foi mais que um déjà vu: foi um mergulho literal em lembranças vívidas e palpáveis que se assentaram sem cerimônia ao lado do que estiveram presentes, provocativas e instigantes. Acho até que ouvi o berro tonitruante “mocinho!!” de um dos irmãos marista. Era assim que falava quando encontrava alguém vagando no corredor em plena hora de aula. Era pior com o irmão Jorge com seu ar grave a nos chamar de Sr. Fulano ou Sra Sicrana. Ouço o burburinho das falas, risos, galhofas – não se dizia esta palavra em conversas coloquiais, mesmo naquela época de nossa adolescência – sobre o time que perdeu ou por estar à beira de uma catástrofe como a queda para uma divisão inferior. Fazíamos e ainda fazemos picuinhas sobre a aparência. Sim, a gente não sabia o que era bullying. Outros ali compartilhamos velhas novidades ou desfrutamos da alegria de reencontrar alguém que não se via há pouco ou há décadas, como era meu caso em relação a alguns. Tudo isso transformou magicamente aquele lugar onde estávamos nos corredores e salas da nossa escola, o Marista.
De repente, era hora do recreio. Meninos e meninas correndo, filas na lanchonete do seu Elias para comprar uma fatia gorda de pizza com refrigerante, a alegria distribuída em festiva algazarra que nem uma prova e sua aflição podiam corroer. O desafio da vida ali na esquina, mas que ignorávamos, como se todos tivéssemos uma adolescência leminskiana que diz em sua poesia: “quando eu tiver setenta anos / então vai acabar esta minha adolescência. Vou largar da vida louca / e terminar minha livre docência. Vou fazer o que meu pai quer / começar a vida com passo perfeito. Vou fazer o que minha mãe deseja / aproveitar as oportunidades / de virar um pilar da sociedade / e terminar meu curso de direito. Então ver tudo em sã consciência / quando acabar esta adolescência.” 
Rejuvenesci uns quinhentos anos naquela tarde sem qualquer intervenção cirúrgica. Talvez como o avô do Mia Couto: “O avô era um homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade de viver.” O menino escondido em mim – e nos outros – saltaram para fora e ninguém se daria conta de que ali éramos todos cinquentões. Machado de Assis diz que o interno – aquilo que levamos dentro de nós – não aguenta tinta. Falava ele dos que pintam cabelos e barba para parecerem mais moços, conservando o hábito externo como nas autópsias, provocava. Mas nós não precisávamos de tinta qualquer, porque borbulhava adolescência na alma e era impossível contê-la. Os dançantes que o digam, mesmo aqueles com marcapasso.
Nossos corpos, sim, denunciam as marcas do tempo. Agora somos pais e avós. Mas estávamos todos, por algumas horas, disfarçados de adolescentes e era tal a mágica que nossos velhos pais e mães teriam se assustado. Será que se pode falar de saudosismo ou um ataque de nostalgia quando se passa por uma transformação? O saudosista e o nostálgico querem voltar no tempo e morar naquilo que lembram como bons anos em repúdio, quase sempre, à realidade que lhe é pesada. Mas se nos tornamos meninos e meninas não podemos ser acusados desta fuga, não é?
Opa, estou ouvindo a sirene: não, era música que tocava para sairmos e entrarmos na sala. Uma delicadeza. Chama-nos outro recreio agora para a vida hoje. Marcados e atravessados por tudo que vivemos naqueles verdes anos e nos explicam em grande parte agora. Espanto-me quando dizemos: fomos criados assim e nunca nos tornamos isso e aquilo. E dizemos que nossos pais souberam nos dar valores. Aquela escola nos deu valores. Confrontamos com esse mundo cheio de melindres e desacertos e já nossos filhos dirão de nós algo parecido, espero. Meu espanto é porque lido mal com a dimensão tempo. Sei que o espelho uma hora dirá: “quem é esse / Que me olha e é tão mais velho do que eu?” (Mário Quintana)
Já sei: sorrateiramente, nossos colegas que organizaram o encontro, transformaram o sítio numa cápsula do tempo. Um portal, melhor dizendo. Que danados! Enganaram-nos direitinho.
 
PS. Um grande abraço aos queridos colegas – meninos e meninas – da turma do Marista 1982.