Megumi Igarashi enviou modelo digital para
pessoas que doaram dinheiro para sua obra. Acabou presa em Tóquio por violar
leis contra obscenidade.
Fonte: Veja
(16/07/2014)
Desde que
Marcel Duchamp colocou um urinol masculino na parede e o chamou de “fonte”, em
1917, há quase cem anos, nunca mais a arte foi a mesma. Ele criou o conceito
readymade (objeto pronto), quer dizer, qualquer coisa pode ser arte, desde que
se dê a ela um significado que está somente nas mirabolâncias do autor. Ele mesmo,
quatro anos antes, havia colocado um garfo de bicicleta, com a calha, fixado
num tamborete de madeira. O que era mesmo? Um tamborete inutilizado.
Já se disse de
tudo sobre o urinol. Viu-se de Buda à efígie de Nossa senhora, passando pela
deusa Vênus. Significados que Duchamp insistia em negar, alegando que o urinol
era só um urinol. A porteira estava arrombada, não havia mais limites. Jackson
Pollock abandonará o pincel e o cavalete e pingará tinta na tela em branco e
deixará escorrer e o que deu, deu. Jonh Cage deixará uma música com mais de
quatro minutos de silêncio e será música. Andy Warhol, com sua peruca branca, reproduzirá
latas de sopa em quadros. A lista é infinita de artes e artistas abstratos,
pós-tudo, pop, contemporâneos, o escambau.
Mas nada é ruim que não possa piorar. Naqueles
havia um verniz de ideia, contestação, denúncia, ressignificado da coisa, da
experiência – Ceci n'est pas une Pipe (isto não é um
cachimbo, de René Magritte). Nos atuais está em moda, há tempos, as montagens. Quem
já viu uma da Yoko Ono, sabe do que falo. Outro dia um chileno, radicado na
Suécia, colocou dezenas de liquidificadores com peixinhos dourados – vivos! A
coisa bacana era ligar o aparelho e ver se havia energia. Imagine. Outro
entupia o reto (não é o pronome) com água e tinta e depois espirrava numa tela.
Piero Manzoni (1961) enlatou (90 latas, para ser preciso) com o próprio cocô –
assim afirmara – com o rótulo: Merda d'Artista (30 g).
Está exposto em galeria e vale uma grana.
Por que Megumi não podia tirar um selfie de sua vagina e reproduzi-lo
em coisas? A japonesa está farta de o órgão feminino ser objeto de pudor em sua
sociedade. Mas não da forma que o fez o Império dos Sentidos (1976) que manteve
a vagina dentro dos limites, vá lá, do tatame. A última coisa que eu pensaria
para uma vagina seria torná-la “casual e pop” como defende Megumi. Ela insiste
em desmistificá-la. Alerta que a genitália feminina não é obscena.
Em uma foto em seu site, ela está sorridente num bote que tem o
formato de sua perereca, se me permitem. Pois lhes digo, naquele bote não entraria,
não. Com pop, Megumi quer dizer usável, comercializável, desfrutável. Não que
não haja vaginas nesta condição. Esquinas e bordeis pelo mundo é o que mais
tem. Durante a Copa as meninas cobravam R$130,00. Mas no formato de capa de
celular? Nem se fale numa pequena luminária que tem abaixo da lâmpada – esta enterrada
lá no lugar –, um pobre Buda sorridente. Ele não riria se soubesse onde estava.
Rebuliço. Escândalo. E para a traquinagem, ela fez crowdfunding. Pessoas doam dinheiro por uma ideia que
alguém difunde pela internete com a promessa de que o doador receba o produto
(quando pronto) ou o compre por preço mais camarada. Aos doadores, Megumi
enviou pelo correio um arquivo para impressão 3D de sua vagina. Nem imagino o que
farão com ela. Mas a ideia é fazer botes iguais ao seu ou coisinhas
decorativas. Ela avisa que o produto não tem cheiro, não solta as tiras, não
deforma...
Por pequena quantia por
pessoa, mulheres que queiram se libertar da opressão da vagina, ela dá workshops
onde ensina como fazer o próprio molde da dita. Avisa que não é fácil. Não
entendi, parecia. Vai ver que é o tal espírito da arte. Outro dia, um sujeito
em Nova York (EUA, não confunda com o lugarejo maranhense) tirava moldes das
vaginas de quem quisesse e depois as montava em painéis com dezenas delas.
Causou furor no meio artístico. Vá se entender.
Megumi teve as asas
cortadas logo de saída. A lei japonesa considera obscena este desplante
artístico. Ameaçam-na com cadeia e multa. Ela diz que a vagina é só um órgão do
corpo da mulher, talvez, para ela, igual ao nariz, uma unha. Censura, grita
Megumi, mas, por via das dúvidas, resolveu colocar em liquidação o estoque de
vaginas encalhadas. E aí, vai quantas?
OBS.: Sobre o urinol, recomendo a crônica de
Afonso Romano de Sant’anna, publicada em 2007, no Correio Braziliense/Estado de
Minas, com o título: Um urinol faz 90 anos.