sábado, 19 de julho de 2014

Arte casual-pop



Megumi Igarashi enviou modelo digital para pessoas que doaram dinheiro para sua obra. Acabou presa em Tóquio por violar leis contra obscenidade.


Fonte: Veja (16/07/2014)



Desde que Marcel Duchamp colocou um urinol masculino na parede e o chamou de “fonte”, em 1917, há quase cem anos, nunca mais a arte foi a mesma. Ele criou o conceito readymade (objeto pronto), quer dizer, qualquer coisa pode ser arte, desde que se dê a ela um significado que está somente nas mirabolâncias do autor. Ele mesmo, quatro anos antes, havia colocado um garfo de bicicleta, com a calha, fixado num tamborete de madeira. O que era mesmo? Um tamborete inutilizado.

Já se disse de tudo sobre o urinol. Viu-se de Buda à efígie de Nossa senhora, passando pela deusa Vênus. Significados que Duchamp insistia em negar, alegando que o urinol era só um urinol. A porteira estava arrombada, não havia mais limites. Jackson Pollock abandonará o pincel e o cavalete e pingará tinta na tela em branco e deixará escorrer e o que deu, deu. Jonh Cage deixará uma música com mais de quatro minutos de silêncio e será música. Andy Warhol, com sua peruca branca, reproduzirá latas de sopa em quadros. A lista é infinita de artes e artistas abstratos, pós-tudo, pop, contemporâneos, o escambau.

Mas nada é ruim que não possa piorar. Naqueles havia um verniz de ideia, contestação, denúncia, ressignificado da coisa, da experiência – Ceci n'est pas une Pipe (isto não é um cachimbo, de René Magritte). Nos atuais está em moda, há tempos, as montagens. Quem já viu uma da Yoko Ono, sabe do que falo. Outro dia um chileno, radicado na Suécia, colocou dezenas de liquidificadores com peixinhos dourados – vivos! A coisa bacana era ligar o aparelho e ver se havia energia. Imagine. Outro entupia o reto (não é o pronome) com água e tinta e depois espirrava numa tela. Piero Manzoni (1961) enlatou (90 latas, para ser preciso) com o próprio cocô – assim afirmara – com o rótulo: Merda d'Artista (30 g). Está exposto em galeria e vale uma grana.

Por que Megumi não podia tirar um selfie de sua vagina e reproduzi-lo em coisas? A japonesa está farta de o órgão feminino ser objeto de pudor em sua sociedade. Mas não da forma que o fez o Império dos Sentidos (1976) que manteve a vagina dentro dos limites, vá lá, do tatame. A última coisa que eu pensaria para uma vagina seria torná-la “casual e pop” como defende Megumi. Ela insiste em desmistificá-la. Alerta que a genitália feminina não é obscena.

Em uma foto em seu site, ela está sorridente num bote que tem o formato de sua perereca, se me permitem. Pois lhes digo, naquele bote não entraria, não. Com pop, Megumi quer dizer usável, comercializável, desfrutável. Não que não haja vaginas nesta condição. Esquinas e bordeis pelo mundo é o que mais tem. Durante a Copa as meninas cobravam R$130,00. Mas no formato de capa de celular? Nem se fale numa pequena luminária que tem abaixo da lâmpada – esta enterrada lá no lugar –, um pobre Buda sorridente. Ele não riria se soubesse onde estava.

Rebuliço. Escândalo. E para a traquinagem, ela fez crowdfunding. Pessoas doam dinheiro por uma ideia que alguém difunde pela internete com a promessa de que o doador receba o produto (quando pronto) ou o compre por preço mais camarada. Aos doadores, Megumi enviou pelo correio um arquivo para impressão 3D de sua vagina. Nem imagino o que farão com ela. Mas a ideia é fazer botes iguais ao seu ou coisinhas decorativas. Ela avisa que o produto não tem cheiro, não solta as tiras, não deforma...

Por pequena quantia por pessoa, mulheres que queiram se libertar da opressão da vagina, ela dá workshops onde ensina como fazer o próprio molde da dita. Avisa que não é fácil. Não entendi, parecia. Vai ver que é o tal espírito da arte. Outro dia, um sujeito em Nova York (EUA, não confunda com o lugarejo maranhense) tirava moldes das vaginas de quem quisesse e depois as montava em painéis com dezenas delas. Causou furor no meio artístico. Vá se entender.

Megumi teve as asas cortadas logo de saída. A lei japonesa considera obscena este desplante artístico. Ameaçam-na com cadeia e multa. Ela diz que a vagina é só um órgão do corpo da mulher, talvez, para ela, igual ao nariz, uma unha. Censura, grita Megumi, mas, por via das dúvidas, resolveu colocar em liquidação o estoque de vaginas encalhadas. E aí, vai quantas? 


OBS.: Sobre o urinol, recomendo a crônica de Afonso Romano de Sant’anna, publicada em 2007, no Correio Braziliense/Estado de Minas, com o título: Um urinol faz 90 anos. 

domingo, 13 de julho de 2014

Não quero ser o país do futebol fuleco



Fonte: Revista Veja (09/07/2014)

Estava determinado a não tocar no assunto. Resisti até mesmo às inúmeras versões de teorias conspiratórias que inundam o whatsapp sobre a venda da copa. Mas, eis que ao ligar o rádio distraidamente, ouço que certo jogador alemão, o simpático Lukas Podolski, havia postado numa rede social uma defesa apaixonada pela seleção brasileira que sofre uma avalanche de análises, insultos e pesares perplexos mundo afora.

Lamento por hoje, Gisele, você que não perde oportunidade de citar a coluna pelo humor que ela pretende. Você que tem um sorriso eterno estampado no rosto. Mas não sei se riremos juntos neste texto.

Voltando. Dizia que Podolski defendeu a seleção brasileira que chamou carinhosamente, num texto escrito em português – outra delicadeza – de amarelinha, uma atitude cavalheiresca que, parece, é a mesma dos demais membros do elenco alemão, inclusive de seu técnico.

A tal rádio, em uma nota jornalística, citou a atitude do jogador Podolski e reproduziu um trecho de sua fala: Respeite a amarelinha com sua história e tradição. O mundo do futebol deve muito ao futebol brasileiro, que é e sempre será o país do futebol. O final da frase ficou ecoando em minha cabeça. E me peguei dizendo para mim mesmo: Não, eu não quero ser o país do futebol. Lembrei inúmeros artigos que dissecaram o tal desastre futebolístico e terminavam, lembrando Jó, como consoladores molestos: ainda somos ou sempre seremos o país do futebol.

É preciso ler o texto inteiro de Podolski. Por que o quero ser ou onde quero estar é no segundo parágrafo de sua fala: A vitória é consequência do trabalho. Viemos determinados... Eles, diferentes da nossa amarelinha, cujos membros aparecem ao lado de necessitados como parte do marketing pessoal ou do conjunto, não apenas posaram com índios aculturados – fantasiados com penas de galinha – no sul da Bahia. Reza a lenda que além da construção de um centro de treinamento em tempo recorde, com a famosa eficiência alemã, olharam o entorno e se comprometeram a construir, não uma, mas duas escolas. Enquanto isso, um viaduto da tal mobilidade urbana da copa desaba, como se fosse feito de meleca e mata dois, curiosamente, na cidade da chamada hecatombe futebolística brasileira. Mineiraço: será assim que o chamarão doravante?

Não quero ser o país do futebol e detesto esta patriotada de rompante que emerge a cada quatro anos. Este ufanismo tolo de que com brasileiro não há quem possa. Já viram que as bandeirinhas sumiram dos carros? Pois desafio aos patriotas de temporada a usarem bandeirinhas até os farrapos por nada. Ganhando ou perdendo. Na eleição que se aproxima. Como um voto-flâmula que tremula cidadania. Com um cidadão, aí sim, não há político que possa.

Não quero ser país do futebol. Quero ver mais trabalho sério, econômico, eficiente e decente dos dirigentes do futebol, dos políticos que com eles se amancebam. Estádios de bilhões e ainda por cima inacabados? Dispenso. Mobilidade urbana fuleira? Renego. E nunca fui contra a copa no país. Quero ser o país da educação, da saúde mínima garantida e não de pirotecnias politiqueiras criminosas, como se vê no Maranhão. Quero que a educação seja boa para que o brasileiro médio – preto, branco, índio, amarelo e pardo – tenha o direito, por mérito, de alçar lugares melhores na vida e não dependa de cotas que dizem promover justiça, enviesada e extemporânea, ou bolsas miseráveis que tem porta de entrada e não de saída. É mais fácil criar cota do que melhorar a educação. E que esta seja mais profissional e menos pelega na sinérgica incompetência dos administradores públicos com professores que mais fazem greve que dão aula e quando dão, tornam o estudante duas vezes mais desinteressado e fracassado.

Detesto quando, ao viajar, ou conhecer um estrangeiro, eles citem nomes de jogadores como se todos nós só fizéssemos isso na vida. Cadê o estadista brasileiro? Onde anda aquele prêmio Nobel que revolucionou algo do conhecimento? Aquele criativo inventor que mudou uma comunidade inteira e virou notícia? Cadê a notícia de melhoras no ranking educacional comparado com outros países? No último, entre 40 nações mais desenvolvidas, ficamos em 38º lugar. A Argentina está um ponto à frente. Só falta ganhar a copa no Maracanã.

Vamos aproveitar que fomos ao fundo do poço – é assim que estão retratando o país depois da derrota – e vamos refundar o Brasil (exagero?). O momento eleitoral é propício. Do fundo, só resta subir. Não creio que qualquer das opções políticas tenha capacidade e compromisso de fazê-lo, mas já será alguma coisa se, em vez de votarmos em miragem, desfaçatez mimetizada de compromisso social, incapacidade edulcorada de bravatas, cinismo escamoteado de falsa ideologia, votarmos com realismo.

Lukas Podolski percebeu um país que derrapa ao citar a convulsão das ruas – atiçadas por grupos com apoio do próprio governo que lhes dá guarida e dinheiro público –, mas também viu que neste país (cito sua fala agora) tem um povo maravilhoso, um povo humilde e honesto. Um país que aprendi a amar. E eu acrescentaria: que todos nós precisamos aprender a amar a cada dia. Mas se você quiser, pode mandar a seleção e a CBF tomar no fuleco.