quinta-feira, 23 de março de 2017

Musica Maior: Dani Black e Milton Nascimento

Eu poderia começar lamentando que a poesia ou os versos inteligentes na música brasileira atual são raros. Pelo menos naquelas músicas que são mais tocadas nas rádios. A discografia que toca, eu entendo, há nelas o apelo popular e a lógica consumista, anestesiante, o barulho, a batida sem sentido que marca o compasso de corações e almas alheiadas, difusas nas massas, existindo sem ser.
Encontrei outro dia esta canção do Dani Black e Milton Nascimento: Maior. Melodia e letra casadas numa feliz coincidência, arte e poesia para a alma.
Montanhas de livros de autoajuda descansam nas prateleiras tentando dizer com muitas palavras o que esta canção diz em poucas linhas. Há um só tempo: esperança, coragem, aceitação, compaixão dão as mãos na letra.
Você se apropria da letra para si e viaja entre as dimensões temporais do passado, presente e futuro: “Eu sou maior do que era antes / Estou melhor do que era ontem” = presente.
“Daquelas dores que deixamos para trás / Sem saber que aquele choro valia ouro” = passado. 
“Se era certo ou se errei / Se sou súdito se sou rei / Somente atento à voz do tempo saberei” = futuro.
A paciência coexistem nestes tempos. Sem desespero. Sem falsas expectativas, pois não esperarei o que já não sei de mim. E se espero, vivo em incongruência e isso produz dor indizível.
A existência acontece “Evoluindo a cada lua a cada sol”, aqui e agora. Não sabemos o que nos sobrevirá. Cada esquina e curva é uma paisagem nova a arrancar de nós expressões de dor, surpresa, alegria, tristeza, raiva, alargando-nos ou nos diminuindo se nos apequenamos ou se deixarmos que façam assim conosco.
Você é quem é, mas o tempo também lhe revela. Agora mesmo você é o retrato desenhado nos anos até aqui vividos. Vontade, ações, quereres, omissões, crenças nos modelam petit a petit. Não há escapatória. O que quer que faça advirá um você que lhe proporcionará um encontro feliz ou decepcionante. “Somente o tempo vai me revelar quem sou.” Mas precisará que alguém, você, esteja lá para reconhecer-se.
“As cores mudam / As mudas crescem / Quando se desnudam.” Não há como se esconder de si ou dos outros. Você saberá algo de si, eles saberão outro tanto. Se a transparência for sua veste, eles terão uma imagem coerente sobre você. E se olharem errado, você sempre saberá quem é.
Agora, coloque os fones no ouvido e ouça a canção.

“Mas todos nós, que com a face descoberta contemplamos, como por meio de um material espelhado, a glória do Senhor, conforme a sua imagem estamos sendo transformados com glória crescente, na mesma imagem que vem do Senhor, que é o Espírito.”
II Coríntios 3.18


segunda-feira, 20 de março de 2017

Fences


Um homem em busca das oportunidades perdidas. Uma história de pequenas e incontáveis tragédias. Um garoto perdido se torna um homem perdido em busca de um rumo, pois nas desandanças ele encontra uma regra dura e inflexível: um homem faz o que precisa ser feito. Construir uma família e cuidar dela é sua forma de se tornar um homem digno, mas a pobreza, a falta de oportunidade, o sofrimento pelo fracasso de grande esportista que poderia ter sido encontrou uma explicação na raiva daqueles – os brancos – que, imaginado ou verdadeiro, o impediram de conquistar seu lugar de fama e sucesso por direito.
As mentiras se tornam uma forma de amenizar as dificuldades, elas o colocam na posição de guerreiro que enfrenta a morte e a enxota. A esposa é quem lhe dá o equilíbrio, nele precário.
Como todos nós, ele reproduz na relação com o filho a relação que antes teve com o pai. E a sua foi dura e violenta. Ele ama ao filho, mas o dever está acima do amor, pois o cumprimento do dever é a única forma que ele sabe de ser esse homem que pede respeito e um lugar numa sociedade excludente: um negro num EUA antes da vitória dos Direitos Civis.
A esposa compreensiva e dedicada (Viola Davis, ganhou o Oscar de atriz coadjuvante), o filho nascido de uma aventura e que simula sua própria trajetória, o filho com quem tem uma disputa inconsciente ainda que deseje que ele não viva o que viveu, o amigo de muitos anos, isso é seu mundo. Ele será abalado.
A cerca que esposa pede para ser consertada e que ele nunca termina, torna-se uma metáfora que o amigo Bono explica como algo que as pessoas fazem para prender os que estão próximos ou para deixar do lado de fora os forasteiros.
Ele deveria terminar a cerca com o filho, mas nunca consegue fazê-lo. A cerca é a vida interminável. É fadiga. É a promessa à espera para ser cumprida. É o sonho de ter algo. Delimita um espaço seu.   
Ela divide e separa. Ela protege até certo ponto. Ela estabelece um dentro e um fora. Ela precisa de reparos, às vezes. A cerca dá uma falsa sensação de segurança.
Enquanto espera cada sexta-feira, para o fim de semana de descanso, ele sofre com a segunda-feira e todos os dias para aguentar o pequeno ganho, a vida limitada. O quintal e sua cerca por fazer é o lugar das longas conversas, das mentiras grandiosas, das conversas sérias e do abandono bêbado enquanto entoa uma velha canção que fala do blue (tristeza), mas que é um cachorro leal e valente. Seu velho pai cantava, ele canta, um dia seu filho cantará, mas não mais na derrota, mas por outra tristeza.
Talvez tenhamos que ser resistentes e fazer o que precisa ser feito, mas diferente do personagem de Denzel Washington, com espaço para o amor, para o riso, para a leveza da alma. No final pode ser a única coisa que conta de verdade.