quarta-feira, 7 de abril de 2010

Um lustrador de cristos

Estava no escritório sozinho. Esperava a pessoa com quem falaria. Numa parede havia um crucifixo grande, cruz de madeira e um cristo crucificado bastante realista, feito de um material que parecia cerâmica. O corpo era bem torneado e fora os ferimentos óbvios dos pregos e coroa de espinhos, pecou o artista por pouco realismo no restante do corpo. Na verdade, a tinta que representava o sangue estava meio desbotada.
A cabeça pendia para um lado. Os olhos eram fixos e não demonstravam qualquer sofrimento. De quando em vez nossos olhares se cruzavam. O meu de tédio pela espera, o dele não sei que diga. A boca entreaberta trazia um grito mudo ou seria uma fala que não chegou a ser dita?
Notei que havia uns pequenos respingos de tinta branca na barriga, braços e pernas. O cristo era um sobrevivente de alguma reforma, talvez noutra sala, antes de emoldurar aquela parede.
De repente a porta se abre e entra uma daquelas pessoas invisíveis que limpam os prédios, recolhem bandejas em praças de alimentação, juntam nosso lixo, varrem nossas ruas. Em silêncio, o homem que não me deu bom dia ou fez qualquer outro sinal de urbanidade, mais por timidez, penso, colocou seus apetrechos num canto e começou a se preparar para a limpeza do local.
Sacou um tipo de detergente e umedeceu um pano. Sem cerimônia, atacou o cristo que, inerte, não protestou. Esfregou-o vigorosamente para cima e para baixo. Tentou, num momento, limpar o rosto, como quem tira uma remela seca teimosa do canto dos olhos. Demorou-se pouco no serviço e foi adiante limpar a mesa com seus apetrechos eletrônicos. As manchas de tinta ficaram e nenhum dos dois se incomodou, mas eu quis ir lá e livrar o cristo da tinta, pareceu-me um desrespeito. Depois, o homem invisível atacou uma mesinha e do mesmo modo, sem qualquer reverência, esfregou uma Nossa Senhora Aparecida em miniatura e uma outra Nossa Senhora de igual tamanho que me escapa totalmente a designação.
Depois de limpar a sala, foi ao banheiro contíguo. E, por fim, uma boa varrida no chão, quando então, antes que me dispusesse a sair do lugar onde estava – uma mesa de reunião –, ele sugeriu que o sofá seria mais confortável, ao que obedeci sem mais palavras. Terminado seu trabalho disse-lhe um muito obrigado, ele agradeceu e se foi. O cristo assistiu a tudo em silêncio, como é de se esperar e ficamos nós dois lá sozinhos, cada qual em sua solidão.
Enquanto pensava sobre a cena de um cristo sendo esfregado, ocorreu-me uma ideia estapafúrdia. Será que meu Cristo pessoal não precisava também ser esfregado? Quero dizer, o Cristo que creio ou construí a partir de minhas próprias hermenêuticas e experiências pessoais era mais verdadeiro que aquele que me encarava e a quem queria esgravatar a tinta?
Embebido naqueles pensamentos, tentei imaginar em quem creio. Que artífice influenciou a minha certeza de fé? Que molde tem meu Cristo por quem tenho sentimentos de amigo sem intimidade? Por que ele permanece, não poucas vezes, com uma palavra atravessada na garganta enquanto eu espicho o ouvido para ouvi-Lo? Quanto de minhas certezas são apenas miméticas com a verdade sobre Ele que sempre confundia tanto detratores como seguidores?
Imagino alguém desejando me mostrar o bom caminho, pois certamente estarei em crise de fé ou a perdi por algum recanto onde as letras nos fazem delirar. Aliás, do que fui acusado numa EBD recentemente. Embora o aluno fosse apenas um homem amargurado e cheio de rancor e malícia e que não usou estas palavras. E eu apenas dizia que a expressão “pagar o preço” é inapropriada, pois o único que podemos almejar é a identificação no sofrimento com o Senhor, nada mais. O que passar disso, digo, é legalismo, petulância, ignorância e religião sem a Graça.
De todo modo, penso que como aquele homem que lustra cristos pregados em suas cruzes, preciso lustrar minha fé, retirar as manchas de tintas dos respingos de reformas feitas por um eu desastrado e inábil. Quem sabe, dizer simples e sinceramente, como um Michelangelo ao seu Moisés: Fala! E acrescentaria: Que teu seguidor precisa ouvir.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Herança de grego(a)

Uma freira escocesa de 55 anos, que tinha sido deixada em um orfanato quando nasceu, descobriu que era herdeira de uma grande fortuna e de um bordel na Áustria, na região de Estíria, segundo o jornal austríaco "Kronen Zeitung".
A religiosa herdou o bordel após a morte de sua mãe, que tinha 75 anos. A mulher foi uma artista circense que fez fortuna com bordéis. Ela não tinha marido e outros filhos. Por isso, a freira era a única herdeira.
Do G1, em São Paulo
Prezada Senhora,
Meu nome é Peter Krauss, sou advogado e trabalhei para sua mãe ao longo de quinze anos, período no qual ela amealhou uma considerável fortuna. Lamento dizer que sua genitora faleceu, semana passada, de um infarto fulminante. Pena, era uma mulher muito ativa, apesar de seus 75 anos.
Mas a vida cobra seu preço. Vossa mãe, como posso dizer? Viveu tudo que tinha direito, era desmedida em tudo, inclusive na maneira peculiar de enriquecer. Explico que o atraso em contatá-la deve-se apenas pela demora nas pesquisas em nosso centro genealógico, nossa organização teutônica serve, afinal, para alguma coisa e esses registros nos permitiram achá-la, mesmo aí, num convento.
Lamento que a senhora não a tenha conhecido. Se me permite, esclareço assim en passant, o episódio de seu nascimento. Na época, Madame K (sua mãe, era assim que era conhecida) era trapezista num circo e apaixonou-se pelo engolidor de espadas. Deste affair resultou a senhora. Impossibilitada de criá-la, ela lhe deu para um orfanato.
Muitas andanças depois, estabeleceu-se e fundou um pequeno estabelecimento. O lugar se tornou popular e cresceu. Se me permite a comparação, o lugar abrigava jovens moças, assim como este em que a senhora vive agora. Não que sejam iguais, não digo isso, a comparação deve-se apenas ao fato de que são ambientes em que mulheres vivem em comunidades de serviços.
Pois bem, não sei se me entende, mas não me é fácil dizer-lhe. A senhora vive uma vida reclusa, longe deste mundo cão que, acredite, tem coisa do arco da velha. Espanta-me inclusive a disparidade entre sua vida e de Madame K. A senhora dedicou-se a Deus e Madame... Deixemos isso de lado por enquanto.
Como dizia, a senhora é herdeira de uma grande fortuna, não está em dinheiro propriamente, nem joias, está mais na marca de serviços prestados pela empresa que Madame K dirigiu até o dia de sua morte. Serviços que são símbolo de qualidade, artigos especiais - para isso ela tinha um bom gosto a toda prova -, embora eu mesmo, como temente a Deus e esposo, não tenha me aventurado a experimentar, ainda que Madame tenha me deixado à vontade não poucas vezes. Atitude profissional. Não convém misturar lazer e trabalho. Desculpe, desvio o tema.
Suspeito que a senhora desconheça a marca de serviços criada por sua mãe, claro, sua vida é reclusa e dedicada ao próximo, à simplicidade... é meu dever comunicá-la, portanto, que é única herdeira. Não sei o que fará para administrar o negócio - nem imagino como isso será possível -, mas estarei a seu dispor para auxiliá-la no que for possível, da mesma forma que prestei meus serviços à senhora sua mãe.
Desculpe novamente, não disse, afinal, do que trata a herança. Com todo respeito, a senhora herdou uma rede de quatro bordéis com magníficas moças, trabalhadoras do sexo.
A seu dispor, Peter Krauss.

domingo, 4 de abril de 2010

Poesia para Deus

A VOZ DE DEUS

Brilha uma voz na noite...
De dentro de Fora ouvi-a..
Ó Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria
Deste pavor, do archote
Se apagar, que me guia!
Cinzas de ideia e de nome
Em mim, e a voz: Ó mundo,
Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco de mim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que pra Deus me afundo.

(Fernando Pessoa)