terça-feira, 8 de setembro de 2015

Magic in the moonlight – Magia ao luar (2014)



O velho tema, verdadeira obsessão de Woody Allen está lá, mas com humor renovado. Allen voltou à forma. Diálogos rápidos, incisivos, irônicos. Deus continua sendo o tema preferido do autor de “Noivo Neurótico, Noiva nervosa” (1977) e, secundariamente, o sentido da vida. Esse é o grande quebra-cabeça: dar sentido ao mundo sem Deus, se há um propósito maior à existência humana, embora Allen não passe nem perto de querer fazer prosélitos.
Colin Firth faz o personagem Stanley Crawford, um mágico famoso disfarçado num personagem chinês. É um cético rematado e não exatamente conhecido pelos bons modos. De fato, sua enorme desilusão com o mundo e as pessoas, o tornam um tanto insuportável na convivência. A certa altura, o personagem diz que é um misantropo e, por isso mesmo, não tem raiva das pessoas, elas são o que são, não há o que esperar delas.
Além da mágica, Stanley caça charlatões. Nos anos vinte, período em que o filme é ambientado, os ricos, entre uma festa e outra, adoravam jantares onde recebiam picaretas com supostos poderes. Quase todos estes não passavam de embusteiros, viviam de golpes com o uso da ilusão, mágica, prestidigitação como se fosse um tipo de poder extra-sensorial e enrolavam muitos destes crédulos entediados.
Stanley é convidado por um amigo a desmascarar uma jovem encantadora, Sophie Baker (Emma Stone, a mais nova queridinha de Allen), que estaria causando assombro junto a uma família riquíssima, mas que alguns parentes desconfiam de ser uma trapaceira interessada em arrancar um casamento com o herdeiro e muito dinheiro.
Convencido pelo amigo, Stanley aceita a missão com a arrogância de quem expôs outros malandros e com sua arma predileta: o ceticismo e a crença, se se pode dizer assim, na ciência, em sua percepção de que o mundo não tem mistério algum e que absolutamente tudo tem uma explicação.
As reviravoltas do filme são muito bem estruturadas e no timing perfeito. Os diálogos ajudam a sair da aridez da quase ausência da palavra nos filmes blockbusters. A imagem é quase tudo, mas sem a palavra ela se torna intraduzível. As nuances da história não se contam. 
O filme trabalha a defesa intransigente da verdade científica, sem ilusões ou concessões até que o personagem de Colin se depara com o imponderável, com o mistério, com o sentimento de amor, e isto é o que torna o mundo suportável, “vivível”, sem o qual seria um enorme tédio e uma repetição infindável de fatos desconexos, sem propósito ou qualquer forma de valor. Lembra-me a célebre frase de “Os Irmãos Kamarazov”: “se Deus não existe, tudo é permitido”. Mas ainda não é desta vez que Woody Allen cedeu à fé.

domingo, 6 de setembro de 2015

Não me abandone, coração!



Uma pesquisa dos centros de controle e prevenção de doenças dos Estados Unidos descobriu que o coração de quase 70% dos adultos é mais velho do que a idade cronológica da pessoa.

Fonte: Jornal Nacional (02/09/2015)

Os sites na internete estão cheios de “testes” que dirão com “precisão” se um é preconceituoso, racista, se sabe lidar com o sexo oposto – expressão já com cara rançosa, talvez pela quantidade de definições de sexualidades modernas –, se é estressado, ou até se se é portador de transtorno explosivo intermitente. Assinale umas perguntas e no final, com precisão matemática, uma pontuação dirá o grau de sua moléstia.
        Tenho cismas com estas avaliações, então quase nunca respondo. Mas eis que, por um cutucão do Jornal Nacional, fico sabendo que uma pesquisa americana constatou: 70% dos americanos adultos tem o coração mais velho do que sua própria idade. Confesso. Roeu o bichinho da curiosidade. Será?  
        Um tanto cético, preenchi os dados e... descobri estupefato que meu coração é um ano mais velho do que eu mesmo.  À parte das razões biológicas e de hábitos de vida que recheiam os dados da pesquisa, explicando tintim por tintim porque esses corações provectos em corpinhos de trinta, batem descompassados e caquéticos duvidei que o meu, dentro do meu corpo, tivesse espichado numa carreira desabalada em direção ao fim e me deixado para trás, como se eu fosse a tartaruga e ele a lebre.
        Seria absurdo perguntar? Seria, claro. Ocorreu-me que se ele morresse antes, eu continuaria, indiferente a ele. De fato, com certa mágoa por ter sido largado sozinho depois de incríveis aventuras que vivemos juntos. Já dirão que quem sente mágoa é o coração e ele não estando lá, ou até presente, mas mumificado, como eu sentiria? Quem disse que é ele quem sente mágoa? Isso é coisa da nossa cabeça, isto sim, ele só reage feito uma besta, mas nem sabe por que o faz. É claro que compreendo que sem ele eu morreria. Ele me roubaria um ano que, convenhamos, qualquer um quereria a mais. Isso só aumentaria meu amarume com ele.
        E como diz a vizinha gorda e patusca do Nelson Rodrigues: há mistérios misteriosos. Sim, porque não me encaixo nos famosos grupos de risco: obesos – bem, o IMC disse que estou numa condição curiosa: “marginalmente” acima do peso. Não sou fumante. Uma vidinha sedentária, mas nada ruinoso para as articulações e condições aeróbicas. Amante da mesa, mas com parcimônia. Ora, não me encaixo nos parâmetros e porque arte esse coração foi envelhecer um ano antes de mim?
        Teria amado demasiado? Sofrido coisas que não percebi e ele, quem sabe por pudor, manteve-se em silêncio, sofrendo calado. E as desfeitas recebidas? Nisso acho que estamos empatados. Escapa-me a hipótese. O teste não se importa com estas coisas. É indiferente. Escora-se em numa amostra gigantesca de gente que, coitada, carrega velhinhos corações sem saber. Sim, não há cãs à vista ou qualquer coisa que, a olho nu, se saiba que o coração caducou. Essa é, talvez, a maior traição de todas. Ele se desminlinguindo, válvulas e câmaras em pandarecos, e o sujeito do lado de fora fazendo todo tipo de coisa achando que pode contar que ele vai segurar a onda. Não vai. Mas aí será tarde.
        Haverá algum tipo de vitamina, cirurgia rejuvenescedora que reequilibre este desmantelo? Nisso a reportagem não fala. Disse vagamente que um estilo de vida saudável pode ajudar, mas não garantiu que os anos que o atoleimado coração ganhou a mais vão reverter. Então só servirá o sacrifício para diminuir a velocidade de que chegue aos noventa e tantos anos e você estacionado lá pelos cinquenta achando, morto de enganado, que pode exagerar nas emoções. Coração é bicho enganoso.