quarta-feira, 24 de março de 2010

O livro de Eli - O filme

Para todo lado que um se vire hoje, um dá de cara com filmes que evocam o fim do mundo em cataclismos em forma de asteroides, vulcões e tsunamis, sem contar as guerras atômicas. Parece que é mais que uma moda. Talvez, para além dos efeitos hollywoodianos, reflita um medo real com fundo em nossa inacreditável capacidade autodestrutiva. Não se conte os programas na mesma linha – nos canais pagos – desvendando Nostradamus, o livro bíblico do Apocalipse, as previsões maias que afirmam que não passaremos de 21 de dezembro de 2012.
Bem, The book of Eli é mais um mundo pós-apocalíptico em que os homens voltaram à barbárie mais vil. Alguns são canibais, outros, embora não apareçam no filme, são alguma espécie de mutação com mais dedos que o normal e a quem os “normais”, por motivo obscuro no filme, não aceitam.
Eli vaga nesta terra inóspita, ressecada pelos raios ultravioletas cegantes do sol, numa missão divina, embora a terra se enquadre num lugar que Deus esqueceu. Há trinta anos ele caminha para um destino a Oeste, numa titânica disposição de chegar a qualquer preço, a despeito de si mesmo. Ele carrega algo precioso, um livro, a Bíblia. Todos os exemplares existentes da Bíblia foram queimados. E a razão, dizem alguns personagens, foi este livro perigoso que desencadeou a guerra que quase exterminou a humanidade.
Um homem, num lugar perdido, conseguiu com astúcia e força, organizar uma comunidade que beira ainda o estado de natureza, como diz Hobbes. Dá àquela gente aglomerada algum sentido de comunidade dominando-os da maneira vil e explorando as mulheres como a bichos. Ele é um dos poucos sobreviventes de antes do “flash”. Ele tem um sonho e o persegue a qualquer custo: possuir uma Bíblia. Acredita que suas palavras lhe darão poder sobre os miseráveis que restaram. Isto para a incredulidade de seus asseclas mais próximos, que conhecem somente a força das armas. O Livro é uma arma para dominarmos esta gente toda e outras comunidades, diz entre exasperado e convicto. Já aconteceu antes, acontecerá de novo.
A Bíblia, no filme, representa a sabedoria, a ordem, a humanização dos homens. É um símbolo. Os autores alargam este significado no final para o conhecimento e as artes em geral que, a despeito do homem, representam o que de sublime ele pode produzir. O personagem Eli, é o paradigma deste homem de uma forma ainda mais eloquente. É capaz de violência brutal e ao mesmo tempo ele é o receptáculo do conteúdo do Livro. A velha ambivalência humana.
Eli, que lamenta em dado momento não ter seguido o que aprendeu no livro, não prega a ninguém, ele é a mensagem, está possuído e permeado por ela. Perguntado qual teria sido o aprendizado que não praticou, ele retruca que seria servir aos outros mais que a si mesmo.
O mundo inteiro ser refeito a partir dos livros e das artes é uma miragem linda de se ver. Esquecida a hecatombe, porém, quanto tempo levaria para que no novo mundo os homens se devorassem outra vez? É válida a palavra de Jesus a Nicodemos que aqui parafraseio. Um home não pode voltar ao ventre da mãe e nascer de novo, nasceria o mesmo, pois o desconcerto é original. Mas renascido, pelo Espírito de Deus, ele é um novo homem. Pela entrega, pela conversão da mente, pela disposição, baixo a graça de Deus, de tornar-se novo. Isto é um elogio à inteligência. E o filme? Vale a pena vê-lo. Abstraídas as cenas de violência, é uma bela história.
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Relato agora uma situação curiosa. Os jornais brasileiros, desde o início do ano, dão conta da verdadeira bagunça em que o processo de seleção para as vagas na universidade se tornaram. Desde o vazamento das provas do Enem, ano passado e, na sequência, a ocupação das vagas nas universidades, o ministério da Educação tem protagonizado quadros que revelam incompetência e despreparo, sem plano B, para seus erros, exceto os adiamentos.
Também se tem visto na TV cenas de pugilato, vandalismo e agressões de jovens por gangs de sua mesma idade e escola em várias partes do país. Esta semana mesmo, no interior de São Paulo, na cidade de Sorocaba, uma escola viveu dias de terror com a chamada “gang das primas”. Meninas adolescentes que agridem outras pelos motivos mais banais, numa demonstração da completa falência da autoridade e ordem na escola. A diretora, quando entrevistada, limitou-se a dizer que nunca ouviu falar do problema e que sua escola trabalha o ensino e a cultura da paz. Atitude defensiva típica de negação, enquanto os pais tentam mudar seus filhos da escola para outras, uma aluna tem depoimento marcado na polícia esta semana e os alunos mais suscetíveis aos ataques estão até deixando de frequentar as aulas.
Nos EUA, nesta mesma semana, o Oprah Winfrey Show mostrou um flash mob patrocinado pelo programa e em seguida, um grande movimento em uma escola na Flórida em que, alunos, professores e diretoria, inspirados pelo flash mob da Oprah, realizaram uma simples e bem montada coreografia com os 1700 alunos, parodiando uma música de sucesso, cantando a prática da leitura. Apenas cada qual com seu livro na mão e o movimento dos corpos. A diretora testemunhou que esta e várias outras estratégias, tem funcionado para fazer os alunos despertarem para a prática da leitura. O resultado, disse ela, com o testemunho de dois alunos, apareceram nas notas.
No Brasil, crianças juntaram livros que foram jogados fora. Carregaram em sacos, sacolas e carrinhos de mão para montar uma pequena biblioteca na casa de um deles, numa periferia de São Paulo. Estas iniciativas ainda nos fazem ter um pouco de esperança.

segunda-feira, 22 de março de 2010

A cobiça dos pés

Na Coreia do Sul, onde é costume tirar os sapatos antes de entrar em casas, restaurantes ou agências funerárias, um problema se tornou comum: as pessoas vão embora com os sapatos de outras, seja por engano ou, às vezes, intencionalmente.


Mas o detetive Kim Jeong-gu ficou de queixo caído recentemente, quando abriu o armazém de um ex-presidiário em Seul e encontrou 170 caixotes de frutas contendo 1.700 pares de sapatos de grife, organizados por tamanho e marca, e todos teriam sido roubados.
Fonte: Folha de S. Paulo/The New York Times

Seul, 21 de março de 2010.
Prezados amigos e parentes,
Desculpem pelo vexame que os fiz passar. Preso, tive tempo de refletir e estou envergonhado. Perdoem-me se os desonrei. Vocês tem todo direito de não quererem se associar a mim em qualquer circunstância, inclusive, devido ao rumoroso que se tornou meu caso. Sei que a imprensa os está procurando para montar meu perfil. As piores coisas têm sido ditas a meu respeito, só não aceito a classificação de louco nem que me chamem de pés cobiçosos. Portanto, eu os autorizo a negar que me conheceram até na escola primária.
Meus vizinhos podem negar que eu morei em sua rua e seu prédio. Acho que assim vocês estarão livres de mais este aborrecimento. Por outro lado, se alguns de vocês quiserem falar aquelas coisas de praxe, fingindo admiração ou estupor, podem fazê-lo. Sei que alguns vão gostar de sair no jornal ou na televisão.
Como vocês sabem, nunca fui muita coisa. Que posso dizer? Sou um bosta. Meu melhor emprego foi naquela sapataria de sapatos usados. Ali começou meu fascínio – guardem esta palavra – por sapatos. Posso dizer que em toda Coréia e quiçá no mundo, não tem alguém que entenda mais de sapato que eu. Até um Zé Ninguém tem algum talento.
Mas vocês sabem, a loja estava mais para uma quitanda vagabunda. Imagine, vender sapatos usados. Mas havia alguma freguesia. Um homem, porém, tinha bom gosto, fora rico e conhecia o produto. Perguntava por marcas mais refinadas que eu, na minha bruta ignorância, desconhecia. Pensei: eis aí uma oportunidade de vender mais e quem sabe, montar minha própria loja. Num país que é cultura deixar os sapatos do lado de fora de quanto é canto, eu estava feito. Foi ganância, meus amigos.
Quantas vezes não se calça o sapato alheio sem querer? Explorei este engano tão comum entre nós. Eu dizia a mim mesmo, nos primeiros “enganos” que cometi, que eram isso mesmo, enganos. Meu cliente ficava satisfeito. Eu passei a traficar sapatos pra ele que ficava feliz e até indicava novos clientes, quebrados iguais a ele, que não podiam comprar novos, mas que ainda apreciavam produtos de qualidade.
Quando dei por mim era especialista, mas também desenvolvi o gosto por calçá-los eu mesmo. Logo, já não entregava os sapatos aos meus receptadores e fui montando uma coleção que, modestamente, chegou a 1.700 pares. Sabe lá o que é botar o pé num Oxford? Um Gucci verdadeiro? Um cromo alemão? Passava noites inteiras no depósito calçando-os, desfilando para mim mesmo.
Não, não senhores, eu os envergonhei, é verdade, mas o nome para isso não é roubo, esta coisa baixa e banal. Considero-me um gourmet de sapatos. Nem se diga a inebriante sensação de calçar um Manolo. Entonado num deles, eu sou o cara.
Reconheço que parece nojento apropriar-me de sapatos em velórios, mas nestas mega organizações de lamento de mortos existem salas como se fossem um shopping e vocês não acreditariam como as pessoas vão bem calçadas. Isso é uma incógnita para mim. Fui pego no ato, que fazer? Depois de três “enganos” que pratiquei. Aquilo estava uma festa, se me permitem o humor negro.
Que mais posso dizer? Sou tarado por sapatos. Como diriam os americanos: um addicted to shoes. Desenvolvi uma sapatofilia. Assumo: sou sapatófilo. Dou meu mindinho por um Prada que até o Papa calça. Naquele pequeno instante sou rico, bonito, feliz e, não me desculpo por isso, um homem de profundo bom gosto. Sou estou preocupado é que agora dei para ter admiração por salto alto, não sei que farei com minha labirintite.
Kim Kuong