quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

“O aborto já é livre no Brasil”

“O aborto já é livre no Brasil”, disse o renomado médico Dráuzio Varella, num arroubo retórico no calor da epidemia de microcefalia. Respondia a propósito do dilema que o vírus Zika produziu em milhares de bebês especialmente no Nordeste brasileiro. É correto abortar um bebê que se sabe de antemão ter a doença irreversível?  
Assim se manifestam os formadores de opinião no Brasil. São homens pragmáticos. Às vezes, uns maria-vai-com-as-outras. Veja-se o notório ministro do Supremo, Luís Roberto Barroso, que defendeu o aborto até o terceiro mês – alegou que países modernos não criminalizam o ato até este período – numa manifestação sua em um momento em que o tema aborto era tangencial. Esqueceu que um ministro ou juiz responde ao que está nos autos, na petição, segundo a lei, e não segundo seus pontos de vista.
A frase do doutor, por sua vez, quis dizer que a coisa corre frouxa no país. Que a lei não é suficiente para estancar esta hemorragia de vidas sacrificadas sob todo tipo de desculpa e razão que ele e outros gostariam que fossem válidas e acudidas. Na verdade chama de hipocrisia e falsidade ser contrário ao aborto nas condições que entende serem corretas. Que a iniquidade social permite que algumas mulheres tenham acesso a um aborto em condições de segurança e às mulheres pobres restam as condições que expõem suas vidas a perigos.
Pelo mesmo raciocínio, poder-se-ia dizer que o assassinato está liberado no Brasil, pois afinal, de forma violenta, mais de 50 mil pessoas morrem todos os anos no país. Estas mortes excluem as de acidente de carro, quase a mesma estatística. Não seria exagero, seguindo a lógica do médico, dizer que o assalto endêmico em todos os lugares também está liberado, pois vemos as forças policiais e todo o arcabouço do código penal impotente ante tamanha quantidade de crimes.
Mas Varella não é, suspeito, um defensor empedernido do aborto. Ele é um homem socialmente sensível, digamos. Então, se a mulher pobre precisa abortar, ele defende que ela tenha acesso a um aborto clinicamente seguro. É assim que diz: “A mulher rica faz normalmente e nunca acontece nada. Já viu alguma ser presa por isso? Agora, a mulher pobre, a mulher da favela, essa engrossa estatísticas. Essa morre.”
Sua sensibilidade exclui, por suposto, o feto que é morto, mas absolutiza a mulher economicamente desprovida porque isso aponta para uma injustiça dupla: ela é criminalizada e está exposta ao risco de morrer. É claro que esse tema é importante, pois a lei vigente deve ser para todos, mas o Estado falha em proteger a vida, pois somente uma lei proibitiva não é suficiente. Tem uma lei para reger o tema, mas vive indefinido pelas demandas que as questões sociais reclamam.
O problema é o pressuposto que se evoca para defender o aborto escancaradamente ou ficar em cima de um muro de adobe que ameaça desabar. O feto é iniquamente esquecido. A necessidade, conveniência, razão econômico-social, gritam e então se sente pena da pobre mulher pobre que tem que recorrer a métodos caseiros, para dizer o mínimo, engrossando a epidemiologia de doenças e morte. É uma tragédia. Mas é muito maior a da cultura de morte – o aborto – que impera e reclama aceitação. Será que nossa sociedade é tão parva que não consegue achar uma solução para esse problema tão delicado?
Dráuzio diz que não é favor do aborto e diz que nenhuma mulher quer abortar. Em suas palavras: “É uma experiência absurdamente traumatizante, uma tragédia.” Concordo. Mas erra ao dizer que a mulher não quer abortar. Converse com uma feminista. Quer, sim. Algumas, premidas por suas razões, não pensam nas sequelas físicas e emocionais, estas quase indeléveis. Muitas mulheres usam o aborto quase como método contraceptivo tal a banalidade com que se trata a questão. Ante a vida que está em jogo, não há razão imperiosa que se possa justificar.
Onde a falha? Varella alega, com razão, diferente do débil ministro esquerdista, que o Estado não pode ser culpado de tudo. Ele se referia a conter os atos de pessoas que criam, com sua imbecilidade, ambiente para o mosquito da Zika. No caso do aborto, cabe o mesmo raciocínio. Seria leviano dizer que o Estado não tem qualquer política de controle da natalidade. A questão não é essa. O que ocorre é que premidas pelas mais diversas razões, as mulheres recorrem ao aborto. O que se quer é que toda razão seja válida o que, na prática, equivale a liberar o aborto pela razão que for.
O doutor alega a questão controversa do início da vida como forma de justificar o aborto, não sem ironia, pois critica que a se aceitar a defesa dos contrários ao aborto, espermatozoide e óvulo estão vivos. Em seu argumento, compara o caso de uma menina que teve morte cerebral e que, portanto, pode ter os órgãos doados de forma legal. Morte cerebral significa dizer morte do sistema nervoso que, afinal, além de controlar o funcionamento do corpo, é o sistema que nos dá a consciência, o sentido de existência, a individualidade e unidade de ser. Ora, ensina o médico, “mas até o 3º trimestre de gravidez, não há nenhuma possibilidade de arranjo do sistema nervoso que se possa qualificar como atividade cerebral em qualquer nível, a não ser neurônios tentando se conectar.”
Vejam que coisa! Não há um sistema nervoso maduro, completo, portanto, pode-se matar esta coisa, este amontoado de células que afinal, são só um monte de neurônios tentando se conectar. Parece que o médico não se dá conta do absurdo que diz. Então, sem culpa, sem medo, sem praticar um assassinato, matemos este ente antes que os neurônios se conectem e está tudo bem?
É como quem faz um bolo e coloca no forno. Juntados todos os ingredientes batidos, amassados, temperados, se coloca na forma e logo no forno. Há que se esperar algum tempo até que ingredientes, submetidos ao calor se transformem no bolo. Mantidas as condições adequadas ter-se-há um bolo para ser saboreado. Ele não se transformará em outra coisa. Fatalmente será um bolo. Há um continuum que é descaradamente esquecido pelos defensores do aborto. Logo, parece um tanto cínico defender que se em determinado momento se abortar, não se matou uma pessoa, mas só ingredientes foram descartados.
Como não poderia deixar de ser, o doutor tinha que bater nas forças obscuras representadas pelas igrejas católicas e evangélicas. Seu poder é um absurdo, vociferou. Trata-se, segundo diz, de uma maioria que impõe sua vontade. Respeitar a opinião das minorias é parte da democracia, diz. A tal democracia nestes tempos estranhos virou a panaceia para justificar todo tipo de ideia idiota. Onde a questão fundamental? A de que se trata não de impor uma visão religiosa hegemônica, mas de defender a vida?
Então é de opinião que se trata? O doutor e seus iguais neste tema precisam se definir. Desconfio, porém, que eles estão dispostos em nome de um sem número de argumentos, todos frouxos, exceto aqueles consagrados na lei e que, ainda assim, cabe alguma discussão, a usar qualquer um que se preste para defender seu ponto de vista. Se não conseguirem defendê-lo, pularão para outro numa corrida insana para proteger sua posição.
É evidente que o aborto não se trata de mera opinião. Uma vida está em jogo. Esse é o ponto nevrálgico. Todas as demais condições pessoais e ambientais são secundárias a este ponto de partida.
Dr. Draúzio Varella deu entrevista por telefone à BBC em 2 de fevereiro de 2016