“O aborto já é livre no
Brasil”, disse o renomado médico Dráuzio Varella, num arroubo retórico no calor
da epidemia de microcefalia. Respondia a propósito do dilema que o vírus Zika
produziu em milhares de bebês especialmente no Nordeste brasileiro. É correto
abortar um bebê que se sabe de antemão ter a doença irreversível?
Assim se manifestam os
formadores de opinião no Brasil. São homens pragmáticos. Às vezes, uns
maria-vai-com-as-outras. Veja-se o notório ministro do Supremo, Luís Roberto
Barroso, que defendeu o aborto até o terceiro mês – alegou que países modernos
não criminalizam o ato até este período – numa manifestação sua em um momento
em que o tema aborto era tangencial. Esqueceu que um ministro ou juiz responde
ao que está nos autos, na petição, segundo a lei, e não segundo seus pontos de
vista.
A frase do doutor, por
sua vez, quis dizer que a coisa corre frouxa no país. Que a lei não é
suficiente para estancar esta hemorragia de vidas sacrificadas sob todo tipo de
desculpa e razão que ele e outros gostariam que fossem válidas e acudidas. Na verdade
chama de hipocrisia e falsidade ser contrário ao aborto nas condições que
entende serem corretas. Que a iniquidade social permite que algumas mulheres
tenham acesso a um aborto em condições de segurança e às mulheres pobres restam
as condições que expõem suas vidas a perigos.
Pelo mesmo raciocínio,
poder-se-ia dizer que o assassinato está liberado no Brasil, pois afinal, de
forma violenta, mais de 50 mil pessoas morrem todos os anos no país. Estas
mortes excluem as de acidente de carro, quase a mesma estatística. Não seria
exagero, seguindo a lógica do médico, dizer que o assalto endêmico em todos os
lugares também está liberado, pois vemos as forças policiais e todo o arcabouço
do código penal impotente ante tamanha quantidade de crimes.
Mas Varella não é, suspeito, um defensor empedernido
do aborto. Ele é um homem socialmente sensível, digamos. Então, se a mulher
pobre precisa abortar, ele defende que ela tenha acesso a um aborto
clinicamente seguro. É assim que diz: “A mulher rica faz normalmente e nunca
acontece nada. Já viu alguma ser presa por isso? Agora, a mulher pobre, a
mulher da favela, essa engrossa estatísticas. Essa morre.”
Sua sensibilidade exclui, por suposto, o feto que é
morto, mas absolutiza a mulher economicamente desprovida porque isso aponta
para uma injustiça dupla: ela é criminalizada e está exposta ao risco de
morrer. É claro que esse tema é importante, pois a lei vigente deve ser para
todos, mas o Estado falha em proteger a vida, pois somente uma lei proibitiva
não é suficiente. Tem uma lei para reger o tema, mas vive indefinido pelas
demandas que as questões sociais reclamam.
O problema é o pressuposto que se evoca para defender
o aborto escancaradamente ou ficar em cima de um muro de adobe que ameaça
desabar. O feto é iniquamente esquecido. A necessidade, conveniência, razão
econômico-social, gritam e então se sente pena da pobre mulher pobre que tem
que recorrer a métodos caseiros, para dizer o mínimo, engrossando a
epidemiologia de doenças e morte. É uma tragédia. Mas é muito maior a da
cultura de morte – o aborto – que impera e reclama aceitação. Será que nossa
sociedade é tão parva que não consegue achar uma solução para esse problema tão
delicado?
Dráuzio diz que não é favor do aborto e diz que
nenhuma mulher quer abortar. Em suas palavras: “É uma experiência absurdamente
traumatizante, uma tragédia.” Concordo. Mas erra ao dizer que a mulher não quer
abortar. Converse com uma feminista. Quer, sim. Algumas, premidas por suas
razões, não pensam nas sequelas físicas e emocionais, estas quase indeléveis.
Muitas mulheres usam o aborto quase como método contraceptivo tal a banalidade
com que se trata a questão. Ante a vida que está em jogo, não há razão imperiosa
que se possa justificar.
Onde a falha? Varella alega, com razão, diferente do
débil ministro esquerdista, que o Estado não pode ser culpado de tudo. Ele se
referia a conter os atos de pessoas que criam, com sua imbecilidade, ambiente
para o mosquito da Zika. No caso do aborto, cabe o mesmo raciocínio. Seria leviano
dizer que o Estado não tem qualquer política de controle da natalidade. A
questão não é essa. O que ocorre é que premidas pelas mais diversas razões, as
mulheres recorrem ao aborto. O que se quer é que toda razão seja válida o que,
na prática, equivale a liberar o aborto pela razão que for.
O doutor alega a questão controversa do início da
vida como forma de justificar o aborto, não sem ironia, pois critica que a se
aceitar a defesa dos contrários ao aborto, espermatozoide e óvulo estão vivos. Em
seu argumento, compara o caso de uma menina que teve morte cerebral e que, portanto,
pode ter os órgãos doados de forma legal. Morte cerebral significa dizer morte
do sistema nervoso que, afinal, além de controlar o funcionamento do corpo, é o
sistema que nos dá a consciência, o sentido de existência, a individualidade e
unidade de ser. Ora, ensina o médico, “mas até o 3º trimestre de gravidez, não
há nenhuma possibilidade de arranjo do sistema nervoso que se possa qualificar
como atividade cerebral em qualquer nível, a não ser neurônios tentando se
conectar.”
Vejam que coisa! Não há um sistema nervoso maduro,
completo, portanto, pode-se matar esta coisa, este amontoado de células que
afinal, são só um monte de neurônios tentando se conectar. Parece que o médico
não se dá conta do absurdo que diz. Então, sem culpa, sem medo, sem praticar um
assassinato, matemos este ente antes que os neurônios se conectem e está tudo
bem?
É como quem faz um bolo e coloca no forno. Juntados
todos os ingredientes batidos, amassados, temperados, se coloca na forma e logo
no forno. Há que se esperar algum tempo até que ingredientes, submetidos ao
calor se transformem no bolo. Mantidas as condições adequadas ter-se-há um bolo
para ser saboreado. Ele não se transformará em outra coisa. Fatalmente será um
bolo. Há um continuum que é descaradamente esquecido pelos defensores do
aborto. Logo, parece um tanto cínico defender que se em determinado momento se
abortar, não se matou uma pessoa, mas só ingredientes foram descartados.
Como não poderia deixar de ser, o doutor tinha que
bater nas forças obscuras representadas pelas igrejas católicas e evangélicas.
Seu poder é um absurdo, vociferou. Trata-se, segundo diz, de uma maioria que impõe
sua vontade. Respeitar a opinião das minorias é parte da democracia, diz. A tal
democracia nestes tempos estranhos virou a panaceia para justificar todo tipo
de ideia idiota. Onde a questão fundamental? A de que se trata não de impor uma
visão religiosa hegemônica, mas de defender a vida?
Então é de opinião que se trata? O doutor e seus
iguais neste tema precisam se definir. Desconfio, porém, que eles estão
dispostos em nome de um sem número de argumentos, todos frouxos, exceto aqueles
consagrados na lei e que, ainda assim, cabe alguma discussão, a usar qualquer
um que se preste para defender seu ponto de vista. Se não conseguirem defendê-lo,
pularão para outro numa corrida insana para proteger sua posição.
É evidente que o aborto não se trata de mera
opinião. Uma vida está em jogo. Esse é o ponto nevrálgico. Todas as demais
condições pessoais e ambientais são secundárias a este ponto de partida.
Dr.
Draúzio Varella deu entrevista por telefone à BBC em 2 de fevereiro de 2016