Richard Ledgard (Antonio
Banderas) é um cirurgião plástico de incrível habilidade. Rico e bem sucedido,
também é um gênio. Carrega, contudo uma história pessoal trágica. A mulher que
amava, o traía com o meio irmão que é seu oposto em tudo: marginal, mau
caráter, ladrão sem escrúpulos.
A mulher que escapa de morrer
carbonizada num acidente de carro, deprime-se a ponto de suicidar-se. As
dores e a mutilação que não foi capaz de
curar deixa em Ledgard um misto de culpa e obstinação por descobrir uma pele
imune ao fogo, picadas e danos, algo que teria salvo sua esposa. O avanço
tecnológico, inclusive a travessia do limite – a transgênese –, não vem sem
quebrar todos os protocolos éticos e morais que deveria seguir como médico e
cientista.
A filha, traumatizada pela morte
da mãe, desenvolve transtornos mentais que a levam a anos de tratamento. Quando
tudo parece caminhar para uma estabilidade, a moça que a vida inteira foi
protegida do mundo e sem qualquer imunidade às experiências humanas, sucumbe a
uma quase relação que não se consuma e o fio de sanidade que a mantinha se
quebra.
Ledgard, o homem obcecado pelas
perdas e dores nunca curadas de sua alma perdida, estabelece um plano. Uma
cobaia humana para finalizar sua descoberta, uma vingança pela perda da filha,
a ressurreição da mulher amada.
Almodóvar, até aqui, brinca
conosco. Monta a história. Como um malabarista, brinca com o tempo, a ordem dos
fatos. Joga pistas como quem atira milho aos pombos numa praça. E buscamos ávidos,
entretecer as linhas, costurar os personagens entre si e na história. Ao mesmo
tempo em que vamos sendo socados com a crueza da narrativa que se revela
surpreendente e absurda com é a vida.
Richard é uma vaga mistura do
médico e o monstro. Um Frankestein redivivo, à sua maneira. Todos queremos
consertar o que desmantelamos por burrice, raiva, por amor, inveja e tudo o que
explica nossos atos tresloucados se tivéssemos chance. Deste labirinto, se
vamos longe o suficiente, não haverá saída, nem com o mestre das chaves. Sem que perceba, Legard terá sua paixão transformada em loucura e ambas são feitas da mesma matéria.
Descoberto o culpado pela perda
da filha, há que fazê-lo pagar. Todo prisioneiro desenvolve, nas condições
adequadas, amor pelo captor. Ao fenômeno se dá o nome de Síndrome de Estocolmo.
A condição humana, na maioria das pessoas, pede o contato, a fala, o olhar de
outro ser humano. Se o aprisionador é o único igual a quem a vítima tem,
segue-se um sentimento de afeição.
O personagem de Ledgard parece
saber disso para melhor dominar seu prisioneiro, não mais com correntes, mas
pelo emoção e pela mente. Cada pequena concessão parece uma dádiva para quem
recebe. Ao fim e ao cabo, os dois lados das grades estão tão envolvidos que não
sabem mais o que os une. As emoções são retalhos misturados que causam repulsa
e atração. Nunca estaremos imunes à convivência uns com os outros, para o bem
ou para o mal. Almodóvar parece dizer que mesmo transformados da maneira mais
radical, sempre saberemos quem somos por debaixo da pele. “Pode, acaso, o etíope
mudar a sua pele ou o leopardo, as suas manchas?” Pergunta Jeremias, o profeta das
lágrimas.
Há um estado perfeito do que
somos ou do que entendemos ser, que jamais poderá ser mudado. A grande
dificuldade de todos nós é conhecer quem somos. Nossas neuroses e psicoses são
fruto da incongruência, pensava Carl Rogers. Vivemos com o que dizem de nós,
máscaras falsas, ou pior ainda, com o que esperam de nós, a escravidão mais
sutil e cruel. Estamos perdidos entre os dois.
Almodóvar sabe disso. Seu filme
é uma pedra com muitos lados a serem decifrados, tais quais os personagens.
Brutalmente humanos. Ambíguos. Indecifráveis se os olhamos rapidamente, menos
ainda se tentamos montá-los. Carregam o bem e o mal. Há em nós há um eco da
fala serpentiforme: “...como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal.” A serpente nunca pretendeu que
“conhecer” fosse algo apenas a expressão do intelecto, mas da experiência.