sexta-feira, 19 de março de 2010

Ilha do medo


A tradução de Shutter Island (Ilha do medo) não faz jus à história do filme. Medo, neste caso, nada tem a ver com terror que, como se sabe, tornou-se espetáculo regado, não raro, a decalitros de sangue, mutilações que arrancam dos espectadores, no máximo, risos e alguns gritos e agora, vampiros aos borbotões. Mas estes seres meio humanos, meio diabólicos não são exatamente aterrorizantes, mas fazem eles, os meninos vampiros, o delírio das adolescentes.
Enfim, desvio o tema. Toda a ideia do filme é uma veneziana, uma abertura, uma persiana que se abre, como sugere a palavra shutter, de uma janela mental de um homem que surta definitivamente, para quase nunca mais voltar, diante da dor que ele é incapaz de elaborar. O medo em estado sólido é a assustadora visão que ele não consegue voltar a ela sem que faça um gigantesco esforço: os três filhos mortos afogados pela mulher que enlouquecera e a quem ama profundamente.
Como explicar, como suportar a culpa pela qual é corroído? A culpa faz o seu papel, como é praxe nestas circunstâncias. Se tivesse ouvido. Se tivesse visto. Se... No caso do filme, seria ouvir e ver as condições de ampla deterioração mental da mulher. Estavam lá na cara, mas ele preferiu não ver, segue-se a esta negação, digamos assim, a tragédia inominável.
Como num curto circuito, falhados todos os dispositivos de proteção mental, os mecanismos de autorregulação e enfrentamento, este homem sucumbe criando um mundo em que a culpa de tudo está em outros, num sistema maléfico, que se misturam às suas memórias de guerra.
A estratégia dos médicos (psiquiatras) é corajosa e desesperada. Sem medicamentos – pelo menos não na tentativa mais audaciosa que empreendem na luta pela cura daquele homem – embarcam em seus delírios paranóides, solidarizam-se em suas alucinações, ao mesmo tempo em que tentam conduzi-lo à verdade dos fatos, para que, confrontado, recupere a sensatez, contrariamente a tudo que se pode esperar dando-lhe liberdade. Quase conseguem... A liberdade parece aqui uma belíssima metáfora de cura, de retorno a si mesmo.
Os médicos só não sabem como dizer àquele homem como carregar seu fardo insuportável. Não sabem ensiná-lo a aceitar o inaceitável e, quem sabe, não esquecer – sua desgraça é também sua história, ou parte dela –, mas ver todo o caos em que sua vida foi engolfada, à distância, como um sonho ruim.
Ponto para o filme que começa ao contrário. Ponto para Di Caprio, que em sua pareceria com Scorsese, dá conta com louvor da exigência emocional que seu personagem pede. É uma história dentro da história, sendo que a primeira é apenas fruto de uma mente, não diria doente, sofrida ante a dor que não ousa dizer o nome. Eis o medo, da realidade.
Diretor: Martin Scorsese
Elenco: Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Emily Mortimer, Michelle Williams, Max von Sydow, Jackie Earle Haley, Dennis Lynch.
Produção: Brad Fischer, Mike Medavoy, Arnold Messer, Martin Scorsese
Roteiro: Laeta Kalogridis, baseado em obra de Dennis Lehane
Fotografia: Robert Richardson
Duração: 148 min.
Ano: 2009
País: EUA
Gênero: Drama

Poesia sobre Deus

Deus

Às vezes sou o Deus que trago em mim
E então eu sou o Deus e o crente e a prece
E a imagem de marfim
Em que esse deus se esquece.

Às vezes não sou mais do que um ateu
Desse deus meu que eu sou quando me exalto.
Olho em mim todo um céu
E é um mero oco céu alto.

Fernando Pessoa

segunda-feira, 15 de março de 2010

Lula Falastrão

Incluo a charge que segue pelo humor (negro) e pela incrível capacidade que a arte tem de condensar, neste caso numa imagem, a que nível chega a imbecilidade humana. É o retrato do presidente brasileiro que, dos píncaros de sua egolatria, imagina que nada do que diga faz qualquer sentido ou tem qualquer valor, especialmente quando é julgado pelo bom senso.

Foi em cana só por pensar... em hambúrguer

O norte-americano Michael Francis McLaughlin, de 48 anos, foi preso na semana passada em Gastonia, no estado da Carolina do Norte (EUA), depois de ser flagrado em uma rua segurando um cartaz que dizia: "Eu estou pensando em um hambúrguer". 
Fonte: Do G1, em São Paulo
A vida tem sido uma madrasta para mim, essa é que a verdade. Você me pergunta como é que eu vim em cana. Já sei o script, colega. É praxe trocar figurinha com o companheiro de cela. Pois não se impressione comigo. Sou pé de chinelo. Você veio por bater na mulher? Isso é mal, colega, mas você tem sorte. A minha é que batia em mim.
Já estive aqui antes. Nada grave. Dirigir bêbado. Isso quando eu tinha carro. A minha ex, aquela bruxa, me tirou tudo. Até o treiler. Já dormi por um tempo dentro de um contêiner. No verão é um inferno. Mas desci ainda mais. Antes da prisão, dormia num tubo de concreto. Outro motivo? Vadiagem. Pois é, já fui preso por isso também.
Num país civilizado isso nunca aconteceria. Mas estamos aqui, nos Estados Unidos da América. Encarno o perdedor, tudo que este país mais odeia. Mas não é assim no mundo todo, não, senhor. No Brasil, por exemplo, um cara como eu tem vez. No mínimo estaria pendurado no Bolsa Família ou então invadindo terras. Até o governo defende, você acredita?
Sei que pedir esmolas ou comida é contra a lei. Aqui em Gastonia quem não tem para gastar, está lascado. Piada infame, essa. Eu sei, não é engraçado. Eu quero é que me digam como infringi a lei. Isso é uma interpretação muuuuuito esticada desse juizinho. Eu mesmo estou orgulhoso da minha astúcia. Veja você se cometi ato ilegal? Sem emprego há três anos, vivo de bico. Faz tempo que não tenho nada do seguro desemprego e mesmo é uma merreca, não dá pra nada. Há dois dias não boto nada na boca.
Usei a cachola. Minha cara não diz, mas aqui dentro (aponta para o cérebro), colega, tem fosfato. Só fiz um cartaz com dizeres inocentes, evidente, bem na frente da lanchonete local. Dizia assim: “Estou pensando num hambúrguer”. Poderia passar por qualquer um que protesta contra estes fast foods que só engordam os outros. O dono da lanchonete não gostou.
Quando dei por mim, chega um policial. Que você tá fazendo aqui? E eu. Nada, senhor. E esse cartaz? Que cartaz? Perguntei. Ele achou que eu estava com deboche. Ele insistiu. Esse aí que você segura dizendo que está pensando em hambúrguer. Aí eu vi que aquele sujeito de maus bofes estava mal intencionado. Disse que nem tinha visto o que estava escrito. Que peguei o cartaz para fazer uma sombrinha e tal. Quem disse que o homem engoliu?
        Fui preso por dizer a verdade, é isso. Com fome, um sujeito só pensa em comida. É ou não é? E esses hamburgueres, meu camarada, o cheiro daquilo para um pobre com fome é uma tortura. Eu estava pirando e como não podia pedir, saquei o lance do cartaz.
Lá no Brasil, o negócio é outro. Qualquer um pode mendigar. Aliás, colega, um amigo me disse que pedir é quase um esporte nacional. Tem tanta gente pedindo que aqueles que aparentam que podem dar algo é que correm dos pedintes. Pede o gari, pede o funcionário público (mas aí tem outro nome). Os flanelinhas, ah, já este atacam é na chincha. Lá eu seria fichinha. Sabe o que é isso? Direitos humanos. Lá eles respeitam.
        Agora quem pede mesmo são os políticos. Quer dizer, pedir, pedir, não é bem o termo. Eles pedem o voto e depois eles tomam na surdina ou nem tanto, o que podem. É uma raça infeliz em todo lugar.
      Tô pensando que talvez, depois desta cana, dar um pulinho lá pras bandas do Brasil. Acho que vou me dar bem. Já viu que nos filmes tudo quanto é bandidão só foge pra lá? Agora, aqui pra nós, eu acabei me dando bem. O juiz me tascou uma fiança de 500 dólares, que não tenho, naturalmente. Ele disse que é pra eu e outros de minha laia sair de circulação, mas no final das contas, arrumei casa, comida e roupa lavada. Sou esperto ou não sou?