domingo, 19 de fevereiro de 2017

O Equívoco de Scarlett Johansson

Desde sempre falas de celebridades causam impacto. Nelas estão projetadas tudo aquilo que o indivíduo comum gostaria de ser ou ter. Elas são, neste sentido, algo entre humanos e semideuses. A fantasia rasteira é a de que não sofrem das agruras banais da patuleia. Tem reconhecimento, dinheiro, amores e sua vida simula uma espécie de perfeição que aos pobres mortais sequer se pode imaginar.
Não admira que uma fala sobre banalidades ou sobre temas que tocam aos demais seres rastejantes também causem grande impacto. Então, quando Scarlett Johansson diz que “monogamia não é natural” ouvimos um Ohhhh! estupefato, admirados com tamanha ousadia, independência e, sim, todas as fantasias sexuais que isso evoca em nossos sonhos enlouquecidos por peyotes imaginários. Nem se fale nas projeções que as personagens que costuma encarnar, que esbanjam sensualidade. Ou alguém não gostaria de tirar uma casquinha com aquela Viúva Negra e seus cabelos vermelhos?
A apimentada atriz tem, vejam que coisa, dois casamentos no currículo. O último dos quais lhe nasceu um rebento, mas durou apenas dois anos. Estando recém-divorciada, dou-me a liberdade de crer que a declaração tem algo de chifre ou como diria alguém mais educado: algo de prática adulterina por parte do ex ou dela mesma.
A negação daquilo que se deseja é tão velha quanto Freud em suas primeiras incursões pela mente humana. Dispositivo de defesa óbvio como o resultado de dois mais dois. Como é óbvio também a reação das revistas de fofoca e tudo que lhe reverbera. Imaginem a contribuição para a sociologia humana este devaneio sócio-erótico-filosófico!
A agora senhorita Johansson é como a raposa que observa o cacho suculento e maduro de uvas, mas, muito alto e por resta razão impossibilitada de comê-lo, malgrado muitas tentativas, cansada e frustrada diz: estão verdes!
Como foi uma frase solta, ao sabor do momento, pelo visto, não há que se levar a sério? Sem recorrer a um possível ato falho da atriz, o fato é que, independente da cultura e do tempo, a outra opção à monogamia, a poligamia, sempre foi fonte de sofrimento, ciúmes, abandono afetivo e indiferença. A Bíblia é um catálogo de versões desastradas das multirrelações.
O que dona Scarlett não percebe em sua fala à toa, bem como todos os que com ela partilham desta fantasia patriarcal em seu pior momento, é que nossa inadequação a esta prática é de natureza. A natureza humana que é possessiva, exclusivista e tem preferências. Na prática, não se pode amar a dois senhores, pois há de se amar mais a um que outro. Os que insistem em quebrar esta regra se enchem e aos outros ainda mais de dores emocionais terríveis.
Que dona Scarlett desnaturalize a monogamia no contexto presente nada há de estranho. O que, pois, é natural em nós? Ou melhor, o que é não natural? A palavra cabe infinitas possibilidades de sentido, depende apenas da perspectiva. Mesmo uma parafilia que a ninguém incomode, nem cause sofrimento ao seu praticante, é natural. Veja-se o fetiche que muitos têm por pés, como já lembrava o Bruxo do Cosme Velho em seu A Pata da Gazela no século XIX.
Natural lhe parecerá se acostumado estiver. Natural será se culturalmente estiver definido para o grupo ao qual pertence. Seria natural dar nove vacas ao pai da noiva como dote ao pedi-la em casamento? Seria ridículo e bizarro entre nós, não em muitas comunidades na África em que é obrigatório ou já era a noiva.
Se não é natural a monogamia, seria então a poligamia? Ora, mas já é em muitos países. Se legalmente nos países ocidentais ainda há um interdito legal e cultural, mesmo que alguns mórmons ortodoxos insistam em quebrar a regra, em dezenas de países é tão comum quanto caminhar sobre os pés.
Sim, por aqui se fala em poliamor: muitas pessoas juntas tendo relações em todas as direções imaginadas – transversais, mão dupla, na contramão – mas que no raso mesmo é outro nome para suruba comportada e de amor mesmo nada tem. Fora da curiosidade sócio-sexológica, ninguém vê isso como um padrão que se estabelece, mas como moda, experimentação e tédio. Ah, um monte de gente junta num mesmo espaço diminui as contas pra caramba.