sexta-feira, 24 de julho de 2009

Um dia você acorda


Um dia você acorda e sente que já não é mais o mesmo, que o cheiro da vida mudou, que as antigas motivações não lhe servem mais, como roupas antigas e apertadas, desbotadas pelo uso excessivo.

Um dia você acorda e percebe que a luz está diferente, que os sons da vizinhança não lhe dizem mais respeito, que o som do seu coração está cansado das mesmas batidas na terra, seu coração está pedindo é para voar .Percebe que antigos sonhos estão voltando, mas não têm lugar naquele pouco espaço que lhes foi destinado, como uma revoada de passarinhos a fazer um barulho incrível no seu peito, batendo asas e soltando penas.

Você acorda e se dá conta do que não fez, de onde não chegou, dos arranjos e das coisas e gentes que usou para seu gozo, e no entanto, não conseguiu ser íntegro consigo mesmo.

Um dia acorda e percebe: decepcionado, quis crer em tantas crenças e doutrinas, se esforçou para agradar a gregos e troianos, disse "sim" quando queria dizer "não", e deixou de falar "não" tantas vezes que já não sabia mais qual era o seu querer, quais eram os seus sabores preferidos e a direção que escolheu caminhar.

Da mesma forma, acorda e percebe que estava com saudade da sua música, seus livros, seus segredos e seu ócio. Acorda e olha para o teto, vê possibilidades acima do teto; sorri, simpatizando-se com a aranha tecendo teimosa a despeito das estocadas diárias da vassoura.Sem se render, ela recomeça toda noite, e agora você se dá conta que existe a coragem de recomeçar.

Um dia você acorda e lembra que riu, comeu e sentou a mesa com gente que de fato nunca se importou, e você oferecendo seu melhor sorriso em troca de aceitação. Que bobagem. Lembra que não protestou diante de absurdos, recolhendo-se à boa educação de sempre.Lembra que deu o relógio para a pessoa errada, e deixou de abraçar por puro preconceito, e que não tentou mais uma vez.

Um dia você acorda cansado de dizer que está cansado de viver, e decide que vai correr o risco de recapitular suas teologias e filosofias.

Um dia. Um dia você acorda.

Ilustração: Hércules levanta a pele do mar e Vênus espera um intante antes de acordar o amor - Salvador Dali, 1963
Fonte do texto: Pavablog
Autora: Helena Beatriz Paccitti

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Sorrir é o melhor remédio?


Uma empresa ferroviária japonesa está usando um novo método para checar se seus funcionários estão sorrindo sempre. A companhia instalou máquinas especiais em 15 estações de Tóquio que medem, através de um sistema de computador, a curvatura do sorriso.

Os trabalhadores que não tiverem um sorriso adequado vão ser advertidos que devem ser menos sérios e mais simpáticos.

Fonte: BBC Brasil

Os funcionários se espremiam no espaço exíguo. O chefe quisera assim. A imprensa rondava e eles estavam sob fogo cerrado dos clientes, do governo e até dos costumeiros surfistas ferroviários - o cúmulo, os caras reivindicavam melhores condições para exercerem seu, digamos, esporte. O chefe foi direto: estamos ameaçados de perder a concessão na linha. Se perdermos, está todo mundo no oco da rua.

A cultura de nossa empresa precisa mudar. Foi muxoxo para todo lado. Calma, pessoal. Contratamos um grande especialista, dr. Landrózio. Ele está acostumado a mudar a cultura de empresas e é disso que se trata nosso caso. Ou mudamos ou dançamos, quero dizer, perdemos a prestação do serviço.

Por favor, dr. Landrózio. Muito bem. Acabo de chegar do Japão. Lugar onde os serviços públicos são tratados quase como segurança nacional. O concessionário por lá ganha bem, mas tem que tratar o cliente no tapete vermelho. O segredo? Sorrir o tempo todo. Num é sorriso meia boca, é riso farto, acolhedor. Aí foi que o alvoroçamento do povo aumentou. Uma sujeita com a cara encardida de maquiagem disse logo: eu mêrma num sô paga pra rir pra seu ninga. Eu tenho é que fazê meu serviço. E qual é seu serviço, senhora? Limpeza. Outro fez coro. Ganhamo pouco e ainda temo que ficar mostrando os dente pra essa cambada? Vai esperando. O senhor faz o quê? Fiscalizo.

Olha pessoal, sei que vocês estão acostumados com uma forma de trabalhar, mas nossa empresa está sob pressão. Esta imprensa sacana denunciou a gente por que alguns dos colegas de vocês foram um pouco mais persuasivos com o pessoal que não entra no trem. Todos riram. Só por causa de umas cacetadinhas? Pior foi no Rio. Pois é, povo mofino este. Mas o fato é que embolachar os cliente não pode mais. Agora é por favor, senhor, senhora, por obséquio e coisa do tipo.

A coisa caminhava para a balbúrdia. Dr. Landrózio interveio. É o seguinte, ou vocês riem ou perdem o emprego. Instalaremos um sistema de vigilância do sorriso. Várias câmeras vão fiscalizar os colaboradores e quem não estiver rindo, está fora. O silêncio foi sepulcral. Para treinar, trouxe do Japão o mestre K. Gao que vai ensinar a doutrina do riso e vamos começar agora.

Num precisa, num precisa, atalhou um dos líderes. Vamo todos rir, né pessoal? É isso aí! Valeu! Só o nome do mestre já dá pra rir uma semana. Ok, pessoal, então posso ficar despreocupado? Na boa, chefe. Olha que o sistema vai monitorar todo mundo.

Semana seguinte, os passageiros estranharam a nova. Era um tal de atendente sorridente, fiscal gracioso, segurança risonho. Vazou que eles agiam assim por causa das câmeras. O povo foi à forra. E aí seu filho da p. me vende logo esta passagem. E o cara lá, rindo. Vem cá, seu fiscal de m. E o sujeito de dente na fresca. O cara pensava em retrucar como nos velhos tempos, mas aí, o olho eletrônico nem piscava. Resolveram devolver rindo, mas não era a mesma coisa e assim aconteceu a primeira greve na empresa: a negação do riso, até o forçado.

domingo, 19 de julho de 2009

Deus estranho


“Muitas coisas me valem quando Deus fica estranho e do que é mínimo, às vezes, vem o desejado consolo”.

Deparei-me com esta frase da Adélia na poesia “Folhinha” do livro “Coração Disparado”. E isso justo num momento em que Deus, para mim, está mais que estranho. Falo isso, mas no mesmo ato em que os neurônios trocam sinapses algo vem e diz: já te ocorreu que o estranho aqui é tu mesmo? E penso isso porque, explico para mim, quem se torna estranho verá o outro de forma estranha. No que concordo meio a contragosto. Mas tenho contra-argumentos e digo. Sim, mas há que buscar porque me estranhei. Desconheci Deus. Pelo menos aquele que me pareceu familiar durante tanto tempo. Ocorre-me que foi um Deus aprendido. De leituras com hermenêuticas pré-cozidas em fogões de outros. É isso. Ele sempre foi o que disseram dele para mim e o que li nas páginas da Bíblia, mas que de algum modo me havia sido dito antes, como uma história que sabemos o fim.

Acrescentei “descobertas” de coisas e formas de como Deus funciona. Disse a outros, ora com convicção, ora em dúvida porque me perguntava como falava de algo sobre o qual não experienciei e a última pessoa que conheço que atesta ter vivido isto morreu há pelo menos 3 mil anos? Os ouvintes perceberam a hesitação, por isso aquelas caras sem expressão. Não entendiam. E se a tal experiência dele é única e não há como revivê-la? Atemo-nos ao princípio, não ao fato tal como aconteceu, respondo. Que seja. Quero então conhecer sob as condições de temperatura e pressão do hoje.

Ao contrário da poetisa, meus olhos se perdem em grandes coisas e não vejo o mínimo donde posso achar um necessário consolo. Até o ipê que me desperta sentimentos de alumbramento quando floresce, este ano deu meia copa de flores. Carrego o desamparo e a desconfiança. Tenho dificuldade de lembrar seus feitos gloriosos que não vi e não me satisfaz os mares partidos, as pragas que subjugaram inimigos, nem carruagens de fogo arrebatando gente viva no meio do caminho.

Até corro o risco do mal entendido, mas basta dar glória em meio à angústia porque se está vivo e a comida não faltou à mesa? Banalizo a dádiva? Apequeno a bênção? Quero comer sentidos. Quero beber palavras para encaixar nos desvãos da alma desorientada. A comida e a bebida irão, depois, para lugares escusos, quero o que se incorporará ao que é eterno em mim.