sábado, 1 de outubro de 2016

O tempo não está do seu lado

Acho que não sou injusto com Eckhart Tolle se reduzir seu “O poder do agora” a essa frase: o passado e o futuro não existem, existe apenas este nanossegundo em que você está. O escritor é o guru da vez. O livro vendeu milhões de cópias. As falas sobre sua obra são superlativas. O The Independent disse que ele é o homem que vai mudar sua vida.
Merchandising à parte, o autor redescobre uma velha ideia que está presente na filosofia e na religião. Bem, e na psicologia que é meio filha das duas. A afirmação de que só há este momento e no exato instante enquanto escrevo ele já não é mais, é provocante. Ela desafia nossa forma datada de viver, mãe de todas as ansiedades.
Estar no instante presente nos coloca plenos naquilo que realizamos e expulsa o automatismo com que fazemos quase tudo. Nosso cérebro pensa continuamente, mas refletimos sobre nossas ações? Temos verdadeira consciência de nossos atos? Os pensamentos atravessam repentinos aos milhares uma fresta consciente. Quase não notamos, exceto aqueles que ganham adjetivos, um valor, e se tornam preditivos, fazem nascer expectativas, mas quase sempre na forma ansiogênica.
Curioso que doenças como ansiedade e depressão têm, fundamentalmente, uma dimensão temporal. A primeira lança sua vítima para um futuro do qual se quer garantias agora, o controle, a certeza. A segunda arrasta para um passado em que todas as dores, ou algumas em particular, se tornam pesos descomunais a puxar o frágil barco para o fundo dos sumidouros da água. Elas matam o presente que só é percebido em forma de desprazer, agonia e dor. Lembro Gil. “Não se iludam, não me iludo. Tudo agora mesmo pode estar por um segundo.”
Jesus, em seu discurso do Sermão do Monte, ensina (parafraseio): em vez de andarem ansiosos com o vestir, olhem os lírios do campo, pois nem Salomão teria se vestido como um deles. A planta é frágil, de ciclo curto, então se não se olhar, vai-se perder a beleza, a delicadeza e o perfume da flor. Ele se referia ao zelo e cuidado de Deus com os seus, mas entendo que sugere um olhar para fora, em vez de um estar ensimesmado com as falhas e faltas que ainda virão.
O agora, a que se refere Tolle, dialoga com o Kairós. O tempo exato da oportunidade, nem mais, nem menos. O instante propício que não depende de nossa vontade ou desejo. Ele nos é dado como um presente. Por isso se chama tempo de Deus. O cronos, outra ideia de tempo, é nosso domínio. Como o deus que lhe deu nome, ele devora tudo, inclusive seus filhos. Temos nele sempre a sensação de perda e projetamos nossas ilusões de controle, corremos em busca dos desejos. É cheio de nomes: segundos, minutos, horas, dias meses, anos... Com ele nos medimos e de tal sorte nisso estamos focados que só nos esquecemos dele quando fazemos algo realmente significativo. Então, quando voltamos ao tempo, nos damos conta de que ele escorreu e não percebemos, mas sem sofrimento, apenas admiração.
O cronos vende cosmético, movimenta uma roda de dinheiro, faz promessas de retardar o inexorável e, alguns ousados, juram parar o tempo. Mas ele é um indiferente a nós. O grande drible contra o tempo tirano é dar-lhe pouca importância. Focar no ato, na ação do presente, que é quando validamos nossa existência e a ela damos uma dimensão transcendente. É a única forma de nos manter inteiros, doutro modo, como é comum, estaremos divididos entre a versão de ontem e a de amanhã de nós. “Time is on my side”?

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Aparências nada mais...

A conversa de que a grama do vizinho é sempre mais verde que a nossa ganhou dimensões inusitadas e muito mais concretas do que antes o monstro de olhos verdes nos poderia dar a entender.
Há anos, o estado americano mais rico, a Califórnia, vem sofrendo com períodos de secas tão graves quanto as que sofre o Nordeste brasileiro. Lá sem a promessa-miragem da transposição de um rio que por aqui, no dia em que for executada, nem haverá rio de onde tirar água.
Mas sigamos. Cidades com casas espaçosas e gramados quase sempre verdejantes, agora são cenários desolados, tristes e marrons. Como dizem que a oportunidade é a mãe das invenções, apareceram empresas que vendem a pintura para a grama seca. Em verde, por suposto. A tinta, dizem, tem propriedades herbicidas, mata formiga, é eco-amigável, a prova d’água, inodora, não tóxica e segura para crianças, velhos e bichinhos de estimação, não necessariamente nesta ordem.
Outra empresa vende mantas de um verde vivo que imitam com perfeição um belo gramado: eternamente aparado e limpo da mais singela erva daninha. As empresas estão vendendo feito água, literalmente. Sai mais barato do que a multa de 500 dólares por dia para quem for pego “aguando” seu jardim.
A questão da aparência é tão velha quanto o andar bípede. Em muitos casos o que menos importa é a realidade, mas aquilo que a imagem simula. As pessoas que pagam para (re)criar um simulacro de gramado sentem um incômodo enorme com a ressecada visão da entrada de suas casas. Evoca a ideia de abandono, de descuido e de descaso. A pintura ou a grama falsa amenizam a sensação de incongruência percebida e sentida.
De fato, a percepção de si é uma das marcas da inteligência de seres superiores. Testes com golfinhos e macacos, por exemplo, sugerem que eles se reconhecem. Ora, reconhecer-se indica um tipo de consciência. Em nós ela é infinitamente mais aguda porque ao nosso reconhecimento agregamos valores, adjetivos, comparamos com nosso próprio sentido estético ou com o que se diz que é aceitável e bonito. Mas como tudo na vida, a dose desse notar-se, como a quantidade separa o remédio do veneno, é a distância entre um sintoma de doença mental ou de saúde.
A lista de transtornos que está relacionada com a aparência é grande: vigorexia, bulimia, anorexia, etc. O desleixo consigo mesmo, ou melhor, a aparência descuidada, é um dos sinais a ser observado numa consulta psiquiátrica. Se uma doença mental atinge o ego, e todas elas o fazem, para mais ou para menos, esse zelo consigo será irremediavelmente afetado. No limite, o super-cuidado ou o desmazelo, matam.
Se alguém se abandona porque algo se rompeu na sua inteireza como ser, não haverá espelho que o faça remontar os pedaços esfacelados. Se uma perda ou forma de supercompensação se faz necessária, uma dessintonia se instalou profundamente e o espelho produz ilusões irreais, impossíveis de serem alcançadas.
A grama ou nosso corpo e rosto, pedem mais que a percepção qualitativa aparente. O autoengano proposital diminui a sensação de feiúra, mas a verdade das coisas não se altera. A grama está verde e... morta. Já conosco a situação fica ligeiramente mais vasta e... complicada. Menciono apenas uma coisa. O desconforto conosco, refiro-me ao excessivo, aponta para uma quebra – ou nunca esteve inteiro – do valor, estima, e amor próprio que gera a autoaceitação.
A busca da perfeição reflete somente uma obsessão que corrói o íntimo. Ela se torna o centro de tudo. É o máximo de existência autocentrada que, longe do que lembra Jesus em sua frase célebre, não é um amar-se a si mesmo que, por conseguinte, impede o amor pelo próximo, é uma doença da alma que produzirá uma solidão eterna e frustrante.