sábado, 14 de janeiro de 2017

A felicidade é uma miragem

A felicidade é um produto. Há um mercado que, parece, é imune à crise, por razões que suponho óbvias. De fato, tanto pior a situação, mais a felicidade vende. E um monte de gente se lança nessa busca frenética a vida inteira e se torna cada vez mais infeliz porque a felicidade-miragem que lhe vendem é medida em coisas que possa ter. O candidato a felicidade está sempre no vácuo dos vencedores, quase nunca no pódio.
O curioso é que ela é um produto versátil e que tem múltiplas fontes de definição e fornecimento. A indústria da autoajuda, especialistas de todo tipo imaginável – quase todos hoje levam o prenome coach –, as próprias pessoas umas para outras ofertam formuletas de como ser feliz. A diferença é que não cobram.
Para sobreviver aos felizes das redes sociais e propagandas que esbanjam a imagem dos agraciados e que se comportam como se vivessem uma Shangrilá particular, muitos aceitam uma felicidadezinha menos tunada. É isso ou a consumição de comparar-se o tempo todo e perder de goleada como num Brasil x Alemanha.
A felicidade como estado imutável, um espaço de plenitude que, uma vez alcançada, não acaba, é um mito. Uma utopia que continua a ser explorada por tudo quanto é corrente filosófica, por correntes políticas – especialmente as populistas – e religiosas que continuam a apontar o paraíso por aqui mesmo. Eis uma mentira difícil de nos livrar.
Há razões porque esta felicidade é impossível.
1.        Nós temos um mecanismo chamado “habituação” que depois de um tempo aquilo – coisas, lugares e dinheiro disponível – se torna banal e produz tédio.
2.        Nosso mecanismo fisiológico do humor varia naturalmente. Às vezes estamos mais borocochôs, às vezes mais alegres. Isso independe de quanto você tem.
3.        As circunstâncias da vida tem em seu seio uma coisa chamada “imponderável”. Uma hora algo de ruim acontece, mesmo no paraíso que criamos.
A felicidade é um lugar estático. Um ponto de chegada. Um final de uma caminhada, quase sempre antecedido apenas por dor, esforço, cansaço e, às vezes, muitas tentativas fracassadas. Parece depender da sorte. Alguns sugerem que pode ser adquirida, que há uma fórmula que, naturalmente, é vendida. Precisa de um tipo de iniciação, também paga.
A felicidade saudável teima em não se encaixar nos “para sempre” humanos. É feita de momentos e estados que duram um tempo e logo se desfazem acossadas pelas circunstâncias cambiantes. Quem quer isso ante a felicidade fosforescente e gorda de alegrias com que nos acenam?
E se em vez de buscarmos a felicidade que é fugaz, fluida por natureza, impermanente, desenvolvêssemos a atitude interior de contentamento? R. C. Sproul diz que contentamento é o remédio de Deus para a frustração. Embora seu artigo seja mais amplo, reduzir o contentamento a mero contraforte à frustração é torná-lo o que não é. A palavra autarkeia usada por Paulo em Filipenses 4.11 é traduzida por estado de espírito ou percepção de plenitude ou contentamento com o que se tem ou se vive. Contentamento, assim entendido, está mais próximo de uma filosofia de vida, um princípio existencial.
 Em termos psicológicos, pode-se dizer que o contentamento advém do encontro consigo e da aceitação que equivale a um autoconhecimento mais profundo. Um verdadeiro encontro consigo mesmo é o que diz Martim Bubber: “O ser humano se torna eu pela relação com o você, à medida que me torno eu, digo você. Todo viver real é encontro.” (do livro Eu e Tu)
Entre os gregos, quem mais se aproxima do conceito contentamento é Aristóteles e sua eudaimonia, que é definida como um estado de plenitude do ser. Outras duas correntes filosóficas gregas também ofereceram suas versões de uma vida boa e feliz: o estoicismo e o epicurismo.
Os estóicos defendiam que a indiferença era o caminho mais adequado para vencer a impotência em relação ao destino sobre o qual não se tem controle algum. Esta imperturbabilidade seria o lugar da paz e da superação sobre os eventos externos e, portanto, a chave para a felicidade.
Os epicuristas, por sua vez, ensinavam que se deveria minimizar a dor e maximizar o prazer, só assim se alcançaria a felicidade. Embora, advertia Epicuro, o prazer não deveria ser buscado de maneira indiscriminada, pois poderia resultar em dor. A própria dor não deveria ser evitada, pois poderia gerar prazer.  
Tenho a sensação de que vivemos num mundo de epicuristas – apenas a parte da busca do prazer –, pois tudo ao redor funciona no afã de mascarar, esconder, medicalizar e reprimir toda tristeza e dor. Esta é uma das razões porque muita gente prefere o caminho rápido de um ansiolítico, por exemplo, à jornada de aprendizado e crescimento que a terapia psicológica pode proporcionar.
Os epicuristas modernos tem algo que seus congêneres há mais dois mil anos não tinham: eles são marcados pela instantaneidade. Não suportam o processo, todos anseiam pelo resultado antes até de ter feito alguma ação ou qualquer esforço que lhe produza.

Leia a parte B deste artigo em “Contentamento é plenitude independente da circunstância”