Crematório da Vila Alpina sofre com
falta de urnas de madeira há dois meses. A licitação deveria ter
acontecido no início do ano, mas só será realizada em maio. A prefeitura disse
que o atraso ocorreu por que as empresas aumentaram em 137% o valor do produto.
Fonte: G1 (30/04/2012)
Olha esse pé na minha cara!
Calma, amigo, estamos todos em igual situação, o lugar é apertado. Tira essa
mão boba, disse uma voz feminina em algum lugar mais abaixo. Olha, isso aqui
não é o trem da Central do Brasil, não, ouviu? Tenha um pouco de compostura,
seu descarado, insistiu a voz feminina. Ô, companheiro, vou chamar a polícia,
ameaçou outro. Pode chamar, eu não passei mão na bunda de ninguém, essa moça é
muito sensível, aliás, nem sei onde foram parar minhas mãos, ó. Mostrou os
cotocos. Então quem foi? Exasperou-se a mulher. Silêncio.
Alguém sabe dizer porque fomos
amontoados que nem restos neste lugar? Faltou urna, dizem lá. Outro completou.
Ouvi dizer que uns capitalistas, verdadeiros urubus, aumentaram o valor das
urnas em mais de cem por cento. Mas isto não é da época do Sarney? Sunab neles!
Que coisa mais antiga. Sei lá, alguém ponderou, o tempo aqui é meio estranho.
Em que ano estamos? 1978, disse uma. 2003, disse outro. Viu só, estamos num
limbo. Os caras das urnas são uns pilantras, vociferou uma voz aguda. Ok, e nós
é que temos que pagar o pato? Incompetência! Gritou um que se dizia louco.
Uma voz gutural, lá no fundo,
falou como se estivesse espremido por toneladas. Precisamos reclamar sobre este
descalabro. É muita falta de respeito nos colocarem todos amontoados sem a
menor cerimônia. Houve um coro de vozes concordando. Uma voz afetada e cheia de
requebros gritou perguntando o que se iria fazer. Outro silêncio. A mesma voz
deu a solução. Olha, eu e as monas minhas amigas fomos espremidas horrores por
aquela sociedade preconceituosa e homofóbica. A saída é subir no salto e fazer
uma parada. No meio da confusão, alguém perguntou: alguém viu um pezinho com um
anelzinho no dedo mindinho? Ih, mais um, um sujeito gruniu. Enquanto isso, a
ala masculina chiou com a sugestão do rapaz da vozinha. Era mais quem dizia que
não subiria em salto nenhum. A vozinha deu uns muchochos amuados. Nós aqui
nesta situação e vocês estão preocupados com uma metáfora? Incompetência!
Clamou o louco, agora para risos de alguns.
Senhora, senhora, por favor, sou
um homem casado. E daí, sua esposa está por aqui, por acaso? Não, ficou...
Então, tolinho... mas você não faz o meu
tipo e esta encoxada aqui não tem nenhuma segunda intenção, é que não
posso evitar, aliás a coxa nem é minha. Pelo menos não lembro dela nesta cor.
Como não sou o seu tipo? Incompetência! Interrompeu o louco para gargalhada
geral, embora alguns o tenham mandado calar a boca. O que que eu não tenho que
os outros tem? Que outros, seu coitado? Está me estranhando como uma dessas
piriguetes que estão no meio do espremido? É que ela reconheceu uma zinha
qualquer que foi sua desafeta lá no meio do bolo de gente. Além de causar
reclamações de algumas que se sentiram atingidas, a tal zinha prometeu-lhe uns
bons bofetes nas fuças e por pouco, não fosse a contenção de alguns, o lugar se
tornaria um octógono feminino.
Por momento, a paz reinou em meio
a gemidos e bufos. Bateram minha carteira! Alguém gritou em algum lugar. Claro,
todos que ouviram queriam saber quem roubou e quem foi roubado. Uma mulher
disse que era para chamarem o Janjão. Quem??? O guarda, ela respondeu. Eu o
encontrei quando estávamos sendo jogados aqui. Quer dizer, o que reconheci por
aquela pança.
Quase todos. Janjão! Janjão!
Aqui, disse uma voz sonolenta. Ô Janjão, uma balbúrdia dessas e você aí,
cochilando. Cochilando, não, comigo é sempre alerta. Levantou a mão direita
para fazer o símbolo dos escoteiros, mas faltavam os três dedos. Acho que
aquela feijoada pouco antes de vir para cá pesou. Justificou-se. O que é?
Bateram a carteira de alguém. Estou fora. Você é única autoridade aqui, precisa
fazer alguma coisa, basta o que passamos lá fora com a falta de segurança. Não
é possível que numa comunidade tão pequena haja uma batedor de carteira
desavergonhado. Janjão sem poder sair de seu lugar. Aê pessoal, estou a procura
do larápio, qualquer informação passem aqui para meu setor e voltou a cochilar
alheio ao banzé. A turba ficou aparentemente satisfeita, inclusive o suposto
furtado.
Noutro plano, bem próximo, dois
barnabés discutiam o destino das pessoas. Já fizeram a licitação? Sei não. Que
vamos fazer com esta gente? O saco já está transbordando. Vamos esperar a
licitação. O que é isso? Perguntou o mais burro dos dois. Acho que um jeito de
comprar as urnas. É por que eu não aguento mais espanar cinzas da roupa e
cabelo. E do chão, ó, do chão!