sábado, 31 de dezembro de 2016

Um segundo é tudo que precisamos?

E lá vamos nós outra vez! O ano que se vai deixa um rastro de perplexidade, o que o tornará inesquecível. A lista de eventos é exagerada para um ano só. Tenho a sensação que vivemos vários anos em um. Como se vive um continuum e as demarcações temporais são meras ficções, os desdobramentos que virão em 2017 podem ser ainda mais assustadores. Não agouro. Prefiro manter a porta aberta para o que for.
Outra curiosidade deste ano excepcional. Ele ganhou um segundo a mais. Ajuste de rotina realizado pela instituição Tempo Atômico Internacional. A explicação é que é curiosa. Caso não fosse acrescentado este segundo, estaríamos mais rápidos que a rotação terrestre. É como se você estivesse dentro de veículo e chegasse ao destino antes do próprio que lhe carrega. Uma bizarrice, convenhamos.
Talvez fosse este mesmo o desejo de todos nós. Sair o quanto antes de um ano que nos descabelou de preocupação e sustos. Minha percepção é que a ordem das coisas que estava mais ou menos segura, a duras penas certamente, sofreu severo abalo e ainda ameaça uma desconjuntura no ano que chega, donde me pergunto se a pressa para sair do convulsionado 2016 nos levará a algo melhor, para além de nossos desejos protocolares.
Acho que todos temos este sentimento de um ano que se arrasta e como cada segundo dele nos deu eventos horrendos aos borbotões, como se a cada curva de seu tortuoso caminhar um desastre iminente nos espreitasse. Pergunto-me se lhe dar um segundo a mais não é uma temeridade. Sei das consequências para satélites, posicionamento global do transporte, a economia, enfim. E daí?
Que mais dá tudo isso quando parece que num segundo se repetirão as mortes aos milhares de afogados no Mediterrâneo, nos atentados terroristas cada vez mais brutos e diversificados, nas convulsões políticas – e nós que o digamos –, na ampliação da tentacular Lava Jato com suas centenas de delações premiadas que de tanta corrupção começa a se tornar banal, nas quedas de aviões por ganância ou falta de manutenção, nos fenômenos climáticos cada vez mais perturbadores.
Um segundo a mais e países inteiros se desfarão como vimos acontecer, exceção para a Venezuela que insanos e marginais estão destruindo devagarzinho, um segundo após o outro, com método, loucura e insensibilidade. Um segundo é tudo que se precisa para uma escolha desastrada... ou não. É de se perguntar por que a terra atrasou ou nós nos adiantamos. Como conseguimos este feito? Ocorre-me uma explicação mais simplória: nossos relógios enlouqueceram. Contaram tempo a mais e deixaram a terra para trás. Então nos demos conta que durante um ano inteiro apressamos acontecimentos, precipitamo-nos adiante no futuro sem estarmos preparados ou resolvidos no básico.
Entre nós e a terra ficou um espaço vazio que precisamos encher com um segundo, nos tornar mais pesados nessa carreira desabalada para um sem rumo que é como as coisas parecem estar. O atraso, quem sabe, nos poupe de outros desastres, pois na hora exata de seu acontecer ainda não teremos chegado ao local e momentos fatídicos.  O segundo a mais talvez nos faça refletir sobre nossa brutalidade, alheiamento, desumanização.
Em um segundo, a terra caminha ao redor de si 465 m, parece pouco, mas é a essa distância que estaremos do ano próximo quando a hora da mudança chegar. Caminharemos todo um segundo como quem atravessa uma fronteira em terra de ninguém. Voltaremos a caminhar como bípedes, um metro por segundo, um passo de cada vez. Talvez nos demos as mãos. Talvez olhemos para o outro que está ao lado. Quem sabe percebamos o caminho e a paisagem e, na contemplação, descubramos nossa verdadeira dimensão: grãos de pó com síndrome de onipotência carregados de hubris.

PS. Obrigado pela companhia. Desejo a todos um novo ano em que aprendamos a ser melhores. Isso nunca vem sem dor, sem luta, sem esforço. Que Deus tenha misericórdia de nós.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Não sou má pessoa

“Estou arrependido. Também não sou uma má pessoa. E o senhor [Ruas] que estava lá trabalhando também não era, era um cidadão de bem”, disse a jornalistas.

O incrível nessa frase é o aparente constrangimento que ela revela. Seu autor parece preocupado com sua imagem ante um ato errado que cometera. A opinião dos outros, de algum modo, ganhou um peso e importância que ele se vê premido a dizer que, a despeito de seu erro, não é alguém ruim. É como se, repentinamente, ele tivesse entrado em contato com uma versão de si mesmo que é horrenda e estranha a ele mesmo.
Espantado com o que se depara, se vale de uma maquiagem verbal. Ele fala de forma maquinal como se estivesse ausente e repetisse aquilo porque se lhe perguntam. Ele tem consciência do que fez, mas só ali preso, no mostruário dos olhares incriminadores, mirado por câmeras e microfones, se tornou real e aterrador como se o demônio tivesse saído da caixa e agora mostrasse toda sua feiúra.
Ele justifica o morto. Ensaia a defesa de sua honra e inocência. De alguma forma isso ameniza seu crime bestial. Algo nele se irmana com o assassinado. Ele ensaia uma igualdade que os coloca a ambos como homens de bem, o que só torna sua declaração ainda mais chocante e espantosa. Parte dele agride, outra parte morre. É essa parte morta que pede clemência. Que tenta minimizar. Que se desorienta por não saber juntar os dois lados.
Seu olhar perdido procura um ponto de apoio, mas vagueia para lá e para cá nas dezenas de rostos que vão de curiosos a hostis, de sádicos a ameaçadores. A realidade cruel se infiltra agora em toda sua dureza na alma atormentada do assassino. É um bicho enjaulado. Seu cérebro pensa mil formas de escapar, mas é inútil. Dizer que não é má pessoa é uma louca defesa. Não faz qualquer sentido, mas nem precisa. No momento é tudo que tem, embora a verdade fria e afiada como uma katana lhe deixe nu ante a multidão.
É impressionante que ele se preocupe como sua boa fama, a reputação que, sendo miserável e banal, nunca valeu grande coisa. Cada qual carrega uma autoimagem de si e tendemos a ser autoindulgentes com ela. No fim é tudo que se tem e é também um ponto de partida de nós que caminha em direção ao outro ou se manifesta em meio à massa de gente. Esta aparência interna diz quem se é, diferente do outro, reconhecível por algum valor, por roto que seja.
A autoimagem, por disforme que seja, explica uma unidade, mesmo remendada com fita adesiva vagabunda que, não conseguindo prender suficientemente as partes que bambeiam, ameaça romper-se ao mero esforço e abrir a rotura. Muita gente se arrasta por aí mal ajambrada, sabe-se quase nada, percebe-se menos ainda. É o que é num amontoado de instintos, cada um gritando por satisfação. Precisam acontecer hecatombes, um armagedom particular para despertar.
Pessoas assim vivem a mínimos de distância de desastres. Alguém indicou que o assassino descobrira uma traição da mulher naquele dia fatídico, daí a explosão de monstro captada na câmera da estação do metrô. Disse que não justifica a carnificina de um só, o vendedor.  Pelo jeito, queria achar uma explicação para a selvageria, posto que não se encaixa em nenhum parâmetro de normalidade.  Assim, o assassino parece mais humano. Pode-se concluir que qualquer um faria igual. As bestas-feras em nós, no entanto, são alimentadas do nada, do vazio de bem, da falta de coisas elevadas. Elas se reduzem à carne e seu frêmito. Daí porque suas reações tem a assinatura da insanidade.
Recuso a mínima insinuação de que qualquer um poderia realizar a barbárie como se fosse algo que nos escapole sem controle. Bastaria alguém acender o estopim. Esconder os assassinos na pobreza ou miséria é outra saída infeliz. Também pobre, de onde o vendedor tiraria a coragem, a empatia, para defender um travesti morador de rua? Os mecanismos anti-bestafera existem, apenas se tornam eclipsados num mundo frio, individualista e indiferente.
Mais que medo, havia um espanto no olhar do assassino. Um quê de incredulidade. Só agora percebia o sangue nas mãos, o corpo estendido inerte como um molambo usado. Será que se perguntou alguma vez: como pude fazer aquilo?