Eu estava curioso para ver o
filme desde sua primeira divulgação no Brasil. Talvez porque tenha entre seus
atores o Tom Hanks, de quem gosto. Mas estão lá também: Susan Saradon, Hugh
Grant, Halle Berry e outros não tão famosos, mas conhecidos. Não li qualquer
sinopse antes de assisti-lo, portanto não tinha a menor ideia com o que iria me
deparar. Por outro lado, um filme dos irmãos Wachowski
(Andy e agora, Lana) – triologia Matrix – conta muito.
A primeira
meia hora do filme é um desafio. Trechos das
histórias vão sendo apresentados. Um pouco de uma, corta, um pouco de outra,
corta. De repente comecei a contar quantas pessoas
abandonavam a projeção. Muita gente. Acrescente-se os comentários no final ou
mesmo durante o filme. Ouvi muito: não entendi. Na segunda vez que assisti
havia menos gente, mas de novo contei os que abandonaram o barco. Menos, desta vez.
O filme se
baseia num livro chamado Cloud Atlas, de David Mitchel, ainda sem tradução em
português. Seis histórias se entrecruzam ao longo de vários momentos temporais
que começa em 1849 e vai além de 2144, num momento não datado, 106 anos depois
de um evento que se chama A Queda. Quatro histórias se intercalam entre estes
extremos. Uma em 1946, outra em 1973, ainda outra que ocorre em 2012 e, por
fim, outro episódio em 2144.
Por causa
disso, o filme foi entendido por muita gente como um libelo ao espiritismo,
inclusive um crítico de Veja, que desancou o filme, obviamente por que não
entendeu nada e não tem a mais remota ideia do que seja espiritismo. Um pequeno
escorregão, para mim, pode levar a este equívoco. No início do filme, um dos vários personagens de Tom Hanks, Zachry, já velho, começa a contar a
história como se fosse uma. Neste caso, como foi seu primeiro encontro com o
Velho Georgie (Hugo Weaving, Mr Smith de Matrix). Uma espécie de diabo ou o
Mal. Esta é outra curiosidade do filme. Todos os atores vivem vários
personagens ao longo das seis histórias.
Descontado isso, reduzir o filme à mensagem espírita é
ridículo. Do que se trata, então? Os protagonistas de cada história aparecem
marcados por um sinal, como se fosse uma pequena tatuagem de um cometa. Cada
qual encarna em sua vida, época, forma de atuar no mundo, a difícil luta de
combater o Mal em suas múltiplas formas. Não se engane. Às vezes o mal é sutil,
não arromba a porta, ele é sedutor, tenta convencer, burila argumentos quase
justos, inadiáveis, protetores, quase verdadeiros.
O Mal é resistente, multifacetado. Ora é representado por um
homem ganancioso, vil, traiçoeiro. Ora é um sistema opressor. Aliás, os
sistemas opressores estão presentes em todas as histórias e tem caras humanas.
Seja o regime de escravidão no século XIX, seja a Unanimidade que governa Nova
Seul no século XXII. O discurso é o mesmo. O mais forte deve dominar e até
comer o mais fraco, pois esta é a lei natural das coisas. O mal se alia/cria os
sistemas e oprime, devora, recicla, determina a forma de viver e ser, sempre em
nome de uma ordem que não deve ser mudada e qualquer tentativa de combatê-la, a
consequência é a eliminação.
Os heróis de cada história não são anjos. São humanos que
conservam a inquietude diante do mal. De alguma maneira se veem voluntária ou
involuntariamente na linha de frente, resistindo, questionando, lutando com
armas ou com a mente e pagando o preço por isso. Com suas ações, eles
manifestam os valores de lealdade, amizade, respeito, coragem, justiça, verdade
e solidariedade tão necessárias à vida.
Em cada momento, o Mal se transmuta numa forma, tem um
discurso e uma prática, mas nunca muda sua essência. Do mesmo modo, aqueles que
são marcados, de alguma maneira chamados, irão protagonizar a oposição a este
mal com os mesmos valores.
Uma trama invisível nos conecta. O passado, presente e futuro,
são tecido inconsútil de um mesmo grande desenho, a história humana. Cada ação
tem consequência entre os que estão próximos ao que protagoniza e num futuro
imperceptível. Um dos materiais que une as seis histórias é a arte. Ela se
manifesta na escrita, na música, no cinema, na escultura. Cada qual, com sua
mensagem, é como que uma testemunha, um agente catalizador, que despertará
sabe-se lá que revoluções, sejam pessoais ou em toda uma comunidade não importa
quanto tempo passe. Esta é a “eternidade” da arte.
Vale a pena ficar quase três horas (2h52m) no cinema? Vale. Você
estará num carrossel de ideias provocantes. Muitas coisas em que pensar será
seu prêmio, se você tem conteúdo para fazê-lo. À parte, a diversão de
identificar que atores encarnaram quais personagens. Alguns não são tão fáceis
quanto se imagina. A maquiagem fez um trabalho muito bom. Se não conseguir, ao
final da projeção, nos créditos, eles serão mostrados.