“Mortais” não é o que pensei que fosse. Não decepcionou
propriamente. O título sugeriu a mim uma viagem mais
poético-filosófica sobre esta ligeira condição humana. Sua
leitura, naquela toada da minha compreensão, seria mais um deleite,
a descoberta de perspectivas novas sobre a morte. Foi uma espécie de
coincidência. Em minha agenda, havia uma aula sobre luto, então,
perambulando pela livraria, deparei-me com “Mortais”, o que vinha
a calhar com o momento.
Curioso é que a aula veio e foi e não dei uma única palavra sobre
o livro aos alunos. É que fui, suspeito agora, excessivamente
didático com o tema luto e ainda que o livro não abordasse a morte
pelo ângulo que eu imaginei, tampouco cabia na aula. Ou cabia, eu é
que não o havia digerido. Como quando uma destas cobras constritoras
comem. Leva tempo para – nem tanto assim, diz a ciência –
reduzir a nada pele, cascos, chifres e ossos.
Atul Gawande, autor de “Mortais”, é um cirurgião americano de
origem indiana. Premiado e renomado em sua profissão, atreve-se a
ver os pacientes, todos os descritos em estado terminal, de uma
forma, para usar um termo clichê, humana. Gawande passa longe da
arrogância e onipotência semidivina dos cirurgiões.
É claro que ele fez pesquisa, entrevistou pessoas, mas é também
um pouco o relato de sua própria trajetória profissional. Ou da
mudança que ela sofreu. Na primeira parte, ele avalia e descreve a
situação de envelhecimento e a cultura política de saúde
americana para as pessoas nessa faixa etária. Nos EUA, os idosos
vivem independentes por muito tempo até que doenças e as
consequências do envelhecimento os empurram para asilos. Segundo
Gawande, é um modelo que tem se renovado para melhor, se bem
entendi. Deixa de ser um depósito de velhos com regras estritas a
bem de sua segurança e saúde ou aquilo que restou dela, para
ambientes com maior liberdade e autonomia possível para seus
residentes.
O autor relata o drama familiar, privilegiando o ponto de vista
daquele que envelhece. De forma marginal, mas não menos importante,
dos parentes mais jovens, em particular os filhos. Os asilos vem
sofrendo pressão por sua humanização com novas abordagens
denominadas “residências assistidas”. A expressão define bem a
diferença. Nestes lugares os idosos têm espaços próprios e a
liberdade de receber pessoas e até de possuir bichos de estimação.
Os custos não são baratos, mas há espaços para receber pessoas
idosas nos mais diversos formatos. Desde os totalmente particulares
até aqueles que são iniciativas de instituições de caridade. A
grande maioria recebe subvenção do estado.
A segunda metade do livro, Gawande dedica à terminalidade e suas
difíceis implicações relacionais, clínicas – estas ele descreve
com bastante clareza como médico que é – e as conversas e
decisões difíceis que este momento exige. Quase todos os relatos
mostram personagens com cânceres incuráveis e numa condição quase
intratável, inclusive a história do próprio pai do autor. Será
que não há mais nada a fazer, exceto esperar o desfecho fatal?
Gawande diz um sonoro “não”. Há muito a ser feito e aqui ele
discute o momento – que exigirá coragem e sabedoria – de saber
parar com o tratamento que, nestas condições, quase sempre produz
mais dor e desamparo do que bem-estar.
O médico, sem fazer proselitismo, ou diminuir as conquistas que a
medicina nos proporcionou frente a tantos males, defende os cuidados
paliativos com inúmeros exemplos de superação dos pacientes,
inclusive do tempo de vida que lhes foi determinado. E o melhor de
tudo, com qualidade de vida. Por suposto, dentro das condições
periclitantes que viveram. De qualquer modo, morrer com dignidade e
tendo a chance de se despedir, dar orientações, lições, expressar
desejos, não tem nada de mórbido. Em meio à tristeza, tanto os que
partem como os que ficam, são beneficiados. No final, o livro ensina
humildade que, nas palavras de Atul Gawande, se expressa assim: “Às
vezes podemos oferecer cura, às vezes apenas alívio, outras vezes
nem isso.” Em toda e qualquer condição das mencionadas, explica o
cirurgião, “só se justificam se atendem às metas maiores de vida
da pessoa. Quando nos esquecemos disso, podemos infligir um
sofrimento bárbaro. Quando nos lembramos, podemos fazer um bem
enorme.”
Mortais. Ed. Objetiva, 259 p.