Biutiful não é um filme para se
gostar. É um soco no estômago. É um autêntico Alejandro González Iñárritu. Os
mesmos temas de Babel e 21 gramas são revisitados, mas com uma visceralidade
muito maior, como se estes dois fossem um ensaio.
Se eu tivesse de lamentar por
algo da experiência que é assistir Biutiful, é pela escuridão de Barcelona que
é uma cidade iluminada. A história está inteira engolfada por uma luz indecisa,
de modo que é difícil saber se amanhece ou se anoitece. Um único momento de
luz, não sei se proposital, é quando os irmãos voltam do crematório onde foram
cremar os restos mortais do pai que eles não conheceram sequer de vista.
Uxbal (Javier Bardem) é um ser
perdido que tal como a penumbra que ambienta o filme, vive num limbo da
ilegalidade. Ele é parte de uma cadeia de exploradores e explorados. Esta
mistura monumental que a facilidade de deslocamento e comunicação do mundo
globalizado produz, gera uma infinidade de apátridas, sobreviventes, seres
subterrâneos que não existem para ninguém.
Sozinho, Uxbal sustenta dois
filhos pequenos e faz o que é preciso para isso. Por esta causa, a sinopse nos induz
a erro. O filme não trata apenas disso. Mas de muito temas e destinos que se
entrelaçam de forma irremediável numa aridez de afeto, respeito e dignidade
humana. Os chineses são os grandes fornecedores de qualquer coisa, inclusive de
gente. Os africanos esgueiram-se entre a polícia que os persegue sem trégua, a
vida pobre e a tenacidade de aguentar qualquer coisa pela sobrevivência tão
somente porque na África que deixaram para trás é muito pior. Os europeus
mediam os chineses e exploram os africanos. Os chineses exploram os seus como
só eles sabem fazer.
A sensação é de um moto contínuo
de vidas que acordam às 6:30 da manhã, trabalham 14, 16 horas por dia e voltam
para seu calabouço para dormir. Sujeitam-se por causa do desamparo. Uxbal, que
aparentemente é livre, guarda em algum lugar de si uma alma que, a seu modo,
tenta cuidar daqueles dos quais sobrevive. Ele tem uma espécie de dom. Fala com
mortos e cobra por isso. Uma possível leitura sugere que a espiritualidade,
representada de forma mais plena por Bea, amiga de Uxbal, seja uma saída para
humanizar o mundo. É dela a frase que um dom recebido de graça não pode ser
cobrado. É contudo, uma espiritualidade sem Deus, sem céu, quer dizer, sem
esperança de qualquer forma. Os mortos só precisam de ajuda na passagem,
trabalho que Uxbal realiza umas poucas vezes e só.
Não há riso neste filme,
tampopuco beleza, eis a ironia com o título, propositalmente escrito errado
indicando uma não beleza, um vazio de formas e conteúdo porque as pessoas são
como cascas andantes. A refeição do chinês que está no topo desta cadeia de
devoradores não dá qualquer pista de família feliz. Ao contrário, comem como se
fossem partir rápido. E no meio desta intimidade invade porta adentro seu
amante, apenas mais um elemento desconexo, parasita do parasita.
Como tudo que está ruim pode
piorar no mundo de Iñárritu, Uxbal descobre um câncer em estado terminal. Um
homem que tem intimidade com a morte – dos outros – não quer morrer. Por nenhum
motivo nobre, apenas sofre por não saber o destino dos filhos e de repetir o
que sofreu com o pai ausente. Eis aí um salto minúsculo para uma eternidade que
chama dentro de cada ser humano a despeito da desconstrução nanométrica a que
somos submetidos. Novamente, a espiritualizada Bea tem uma frase de efeito: o
universo cuidará deles. Não sem antes questionar a pretensão de Uxbal que julga
ele cuidar dos filhos.
Biutiful mostra um mundo sem perdão,
reconcliação e com escassas possibilidades de redenção. Uxbal, que se preocupa
com o frio pelo qual passam seus explorados chineses, agora não mais escravos
da máquina de costura, mas da construção civil, compra aquecedores. Um porão
sem ventilação, um escapamento de gás e vinte e cinco mortos. De quem é a
culpa? De ninguém e de todos. Se isto é possível.
O fim. Uxbal, que havia
acolhido uma africana imigrante cujo marido fora deportado, tem nela sua tábua
de salvação. Para cuidar de seus últimos dias e dos filhos, já que sua
ex-esposa está internada em mais uma crise de loucura e drogas. Em seus
momentos fatais, ele se vê numa família fruto deste grande acaso misturado às
pequenas escolhas que fazemos. A africana imigrante ilegal será mãe de seus filhos
e ele parte para encontrar seu pai que nunca conhecera. Parece que, para
Iñárritu, apenas neste mundo improvável há alguma possibilidade de paz.