domingo, 30 de outubro de 2016

Paz e contentamento

Experimente ficar em silêncio num lugar calmo por dois minutos. Perceba sua mente e o enorme barulho que ela faz. Os pensamentos lhe atravessam como comboios zuadentos, fervilhantes como uma rodoviária. Você pesca algo e mal se dá conta e outra coisa já o substituiu. Então um desassossego se insinua, porque você percebe que não é capaz de registrar, entender, explicar tantos pensamentos juntos. O barulho se torna ensurdecedor e você se levanta e liga a tv, põe o fone de ouvido para ouvir uma música enquanto liga o computador para ver algo na internete.
Ficar a sós consigo mesmo é um baita desafio. Perceber-se quase sempre é deparar-se com as inquietações cotidianas e, se alguém é suficientemente sensível, aquelas outras transcendentes e definitivamente mais sedentas por respostas que não temos. Alguns chamam isso de solidão. É como diz Mia Couto de um de seus personagens: “Tinha tanto medo de solidão que nem espantava as moscas.”
É possível se ouvir sem medo, sem querer tapar os ouvidos pelo incômodo da gritaria? Os orientais descobriram a meditação como forma de enfrentar esse caos interno. Os filósofos, a busca da verdade e do bem viver. Os cristãos, a contemplação nos espaços ermos do deserto. Hoje, um método prático é a Atenção Plena. É uma forma de meditação que tem como principal característica se ouvir e observar os pensamentos como se se visse um filme de imagens aleatórias, sem roteiro e trilha sonora. Cada um deles é só observado sem que lhe atribuamos significado, valor, ou busquemos – desesperados – explicação. Não é, contudo, panaceia. Funciona com dedicação e compromisso. Se assim for, ela nos dará – nós nos daremos – o seu melhor.
Resultado: mente mais clara, uma paz que vem porque não há pressa nem pressão para se reagir aos pensamentos. Eles são passantes como pessoas numa rua, anônimos que são para nós. Onde há mais paz, a alegria e o contentamento podem se imiscuir naturalmente.
Prefiro contentamento à felicidade. A felicidade pede busca como um bem que se compra ou se conquista e que coisa mais distante da verdade! O contentamento é forjado na escassez, na falta e na abundância, porque entende que nada na vida é permanente. Manoel de Barros parece se referir a isso: “Sou muito preparado de conflitos.” A felicidade é uma Carmem Miranda: esfuziante, viva, alegre, mas o show acaba uma hora. A felicidade tem a pretensão da permanência. Um feliz “para sempre” particular.
O contentamento vive a inteireza da vida. Acolhe o que vier. É incansável. E outra vez me lembro do Mia Couto que diz que “Não viver é o que mais cansa.” Paulo, o apóstolo, fala de um estado de contentamento. Nele significa autossuficiência, independência das coisas externas que pudessem perturbar sua paz interna. Ele reflete Sêneca que afirma que feliz é o homem que se sente contente em quaisquer circunstâncias que se encontre.
A felicidade pressupõe algo estático. Algo alcançado. Um destino. O ideal que se anseia por entre os fazimentos dos dias. A felicidade está no futuro e num lugar. A felicidade é coisa. O contentamento é a travessia. Sugere movimento. Ancora o hoje. Nunca se chega porque ele é desfrutável apenas no momento presente. É um estar e ser. O contentamento é aprendizável. Serpenteia os obstáculos. Respira gratidão.
Estar a sós é uma arte aprendida, necessidade nascida, cultivo de si. Pede disciplina que, como canta Renato Russo, é liberdade. Pede entrega. E “Repetir repetir — até ficar diferente.” Como sabia bem Manoel de Barros.