sexta-feira, 14 de julho de 2017

Cativar e se tornar responsável... tô fora!

O pequeno príncipe de Antoine de Saint-Exupéry é uma das obras mais traduzidas do mundo – mais de 250 traduções. Até o ano passado havia vendido um número superior a 140 milhões de exemplares. Um feito grandioso para um livro que ao longo de seus setenta e quatro anos tem fascinado muitas gerações.
Algumas de suas frases têm sido repetidas e citadas um sem número de vezes nas mais diversas situações. Uma delas tornou-se um clássico: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. A fala é dita pela raposa. Ela explica que cativar é fazer com alguém se torne distinto e especial para nós. Cativar, segundo a raposa, é tornar alguém especial para si e ser o mesmo para o outro. O aforismo fecha diálogo.
A frase me veio à mente quase que automaticamente. Não recordo o que me fez relembrá-la. Algo deu um estalo em mim. Um incômodo. Como se ao ouvir uma música conhecida percebesse uma nota dissonante, ouvisse o cantor desafinar. O que seria?
Aviso, não sou do contra. A frase tem seu valor, mas... a responsabilidade que evoca está bem para além do razoável. Confesso que tentei salvar a frase para mim mesmo. Mas os senões se multiplicavam em minha cabeça. Ser responsável é se importar?
A maioria das pessoas entende o “aquilo” como outra pessoa, afinal uma cadeira ou um planetinha não pode ser cativado, o contexto do diálogo reforça a ideia. Então, ao cativar, encantar, seduzir, maravilhar alguém – não encantá-la no sentido de enfeitiçar –, você se torna responsável por mantê-la com a mesma opinião sobre você? Lembrando Raul. E se eu quiser dizer (ou fazer) o oposto do que eu disse (ou fiz) antes? Estarei amarrado à responsabilidade de conservar o outro ainda encantado comigo? Isso não cheira a uma armadilha?
A palavra “eternamente”, percebi, me dá urticária. Sim, eu dou o desconto da licença poética, mas continuo achando-a muito pesada para criaturas datadas e cheias de finitude como nós. O que quer dizer “responsável” na frase? Parece não haver saída que não admitir seu significado direto: alguém que é capaz de responder por seus próprios atos ou pelas ações de outras pessoas.
Responder por si, mesmo quando se quer desdizer o que se disse antes, é um belo desafio e um símbolo de autonomia e certa liberdade íntima. Ser responsável pelo o que os outros fazem, nem com procuração! É um peso grande demais.
Talvez Exupéry quisesse dizer que quando cativamos alguém, irmanamo-nos com ela. Essa quase identificação sugere mais uma responsabilidade nossa que do cativado. Ou queria dizer que devemos ser responsáveis por aquilo que fazemos e dizemos, pois cada um teria o poder de influenciar os outros. Imagine usar este poder para cativar pessoas e levá-las para o mau caminho. Por que elas iriam? Por que são criaturas de mentes simples e sem referencial. Talvez carentes como a raposa que está cansada da vida monótona que leva.
Haveria diferença entre cativar de propósito, donde a palavra seduzir estaria mais adequada, e cativar pelo jeito de ser, pelo carisma pessoal? O primeiro pode conduzir a um tipo de dominação, carrega uma intencionalidade nem sempre honesta. O segundo seria espontâneo, pois o cativado foi atraído porque nele mesmo já estaria a identificação com quem o cativou.
Você pode aceitar a frase sem prensar em suas sutis implicações, seus pedidos de explicação ou repensá-la assim: Sou responsável por aqueles que cativo, mas sou livre e os deixo livres para partir e buscarem outros encantos onde desejarem e não tenho obrigação de satisfazê-los em suas expectativas sobre mim. Sei, perdeu a poesia, encardiu-se de realidade, diminuiu o efeito encantador, talvez porque em plena guerra, Exupéry quisesse apenas que seus leitores sonhassem um pouco, a realidade era cruel demais para aguentar. Talvez ainda seja. 

quarta-feira, 12 de julho de 2017

"No" ofenda a ninguém

“No ofenda a ninguém” Ignoro se a frase era uma tradução ruim do espanhol ou se foi um erro que os danados destes corretores costumam fazer nos pregando peças.
Era um videozinho destes que se distribui pelo whatsapp e – você pode ver aqui nesta postagem –, convenhamos, enchem a paciência com suas mensagens açucaradas de autoajuda.
Acontece que este tinha um quê de recomendações pseudofilosóficas e subpsicológicas com as quais a maioria das pessoas concorda sem pensar. O vídeo contém aquele tipo de afirmação que se pretende um tipo de verdade autoexplicativa. Discordar do que diz é caminhar sob os cenhos franzidos de reprovação das pessoas.
Mas vamos lá! O “no ofenda a ninguém” está ok, mas isto é o título. O problema está na frase que explica porque “no” se deve ofender o próximo. Neste primeiro, a razão dada é porque há pessoas que não podem falar e não podem se defender. Como? Não “falo” Libras, mas sei que se pode falar e muito, inclusive xingar, por suposto, se defender. Não se deve ofender, porque devemos respeitar quem quer que seja. Ponto.
O segundo quadro não melhora. “não reclame do gosto da comida”. A razão? Algumas pessoas não tem nada para comer. Como assim? A comida tá um grude, coma? A comida queimou, coma? No máximo não reclamo por constrangimento, a famosa vergonha alheia, só!
Adiante. “não reclame de seu companheiro” e conclui de forma fantástica: alguém enterrou seu companheiro ontem. É o cúmulo! Milhões enterraram alguém seu ontem, hoje e vão enterrar amanhã. O que isso tem a ver com reclamar de um preguiçoso, irresponsável e desleal...? 
A bobagem segue. “não reclame de sua casa: algumas pessoas não têm onde dormir.” Outra vez milhões estão nesta condição. É uma tragédia, sem dúvida, mas não tem relação com reclamar da goteira ou meramente desejar uma casa maior porque a sua está pequena para suas necessidades.
Agora uma punhalada na lógica. “não reclame de seus filhos: algumas pessoas nunca poderão ser pais.” Pois que adotem! Não discipline seu filho, não dê a ele regras e normas de educação com peninha porque ao fazê-lo, se lembrará que existe um monte por aí que não tem filhos. Eles continuarão sem filhos e você, com sorte, com um mandrião dependente; com azar, com um bandido para visitar no presídio.
Esta é para você, aposto. “Não reclame de seu trabalho: algumas pessoas lutam para encontrar um.” Este é o cúmulo da idiotice. Acorda! No Brasil são doze milhões de desempregados. Ter um pouco de ambição e desejar crescer profissionalmente não fere a condição catastrófica do desempregado. Trabalhe com responsabilidade, mas reclame se lhe exploram, se lhe assediam moral ou sexualmente, se lhe dão condições desastrosas para cumprir suas tarefas. Que coisa!
E com essa eu concordo: “não amaldiçoe a sua vida...” a conclusão ou a razão para não fazê-lo, no entanto, é ridícula. “algumas pessoas são jovens e tem doenças incuráveis.” É triste, sim, mas não se deve se autoamaldiçoar porque é melhor amarmo-nos a nós mesmos, não de forma narcisista, autocentrada, mas porque devemos cuidar de nós mesmos, pois quem não se ama, possivelmente, está em depressão severa ou tem outro transtorno mental. Quem não se ama precisa de terapia e um psiquiatra e não pode amar aos outros.
Uma coisa desta fede a socialismo bolivariano. Não é tolerância, é coitadismo. Não é respeito pelo outro, é um tipo de glorificação da miséria. É um igualitarismo doentio. Desrespeita as diferenças que a vida impõe e a de cada um. Podemos ser solidários, empáticos, compassivos, o videozinho estimula a pena pelos outros que é o mesmo que anulá-las. Pior, nos anula junto.
Enfim, detesto estas coisinhas que são distribuídas como se fossem o suprassumo da sabedoria pratica para a vida e não passam de tolice rematada que vai devorar a memória do celular. Eu deleto tudo.