quarta-feira, 8 de abril de 2009

Mundo novo, prática velha


Não há como não chamar a atenção. Por vários lugares das ruas, em outdoors vermelhos com letras garrafais brancas está escrito: “Vagina”. Pequeno e encimado à palavra aludida, o início da frase título do que se tornou uma peça na versão brasileira: “Os monólogos da”. A versão original é um monólogo da americana Eve Ensler e está disponível em dvd. Dele a crítica diz: “um fenômeno real e verdadeiro” pelo The New York Times. “Um trabalho de arte com um texto inteligente” disse o Variety. “Simplesmente espetacular. Nota 'A'” disse a Entertainment Weekly.

Num site de vendas li: “...este filme sensacional trata de um assunto bastante polêmico: (...) o universo feminino pouco discutido pela sociedade, a vagina. Um filme com estilo poético (...). Situações reais com sabor de ficção, passagens hilariantes da vida pessoal e amorosa deste ser que, dos viventes, é o mais deliciosamente misterioso: a mulher.”

Adjetivos hiperlativos à parte, e uma ou outra tirada espirituosa, ou pelas gags das atrizes brasileiras na versão nacional, a peça reflete um tempo. Apesar disso, é difícil aceitar que a vagina seja um “universo feminino” e ainda menos que seja pouco discutido na sociedade. Nem se se toma a vagina a título de metáfora para a condição da mulher, sua participação na sociedade, sua contribuição. De fato, penso que o tiro sai pela culatra e provoca um reducionismo grosseiro tendo como veículo piadas nem sempre inteligentes. Pessoa(s) fala(m) da forma mais escancarada possível desta parte íntima feminina, abusando inclusive dos termos chulos – há dezenas deles – eis o motivo do riso que em muitos momentos arranca da platéia.

A peça/monólogo é símbolo de um tempo, porque nunca como agora colocamos aquilo que é particular às escancaras e à perscrutação do público. Ninguém precisa protagonizar um escândalo para ter suas partes pudendas à mostra. As pessoas mesmas são incentivadas a isso e/ou são postas por outros. O onipresente You Tube tem sido o veículo por excelência desse tipo de exposição. Há algo de supostamente verdadeiro nisso. Refiro-me ao fato em si. Digo isso a propósito do que defendo nesse texto: as revelações destas intimidades são tão somente a mostra da nudez ou de atos que nada dizem além de atiçar a curiosidade que explica porque pessoas pagam para assistir reality shows mostrengos como o Big Brother.

A imagem é verdadeira, não seus protagonistas, quase todos fakes. O grande mérito no final das contas de uma peça como Monólogos, não é certamente discutir a condição da mulher como pode parecer, mas dizer palavrões à vontade encaixados em situações ditas comuns, transgredir os ouvidos, e daí promover um riso desconexo que segundos depois estará desfeito do rosto.

Para além do moralismo rasteiro, há que se dizer, falar palavras que antigamente eram ditas com as mãos na boca ou dentro das alcovas, não significa que estamos melhores como pessoas, menos ainda que nos sofisticamos ou nos tornamos mais educados. Perdemos pudores sob o disfarce de uma transparência desinibida, que tão somente revela a carne modelada ou nem tanto, a alma, a essência do que somos. Esta permanece escondida, embotada, pois não tem lugar num mundo só de sentidos.

O protagonismo, travestido do jeito que for, revela o desejo de destacar-se, anseio por ultrapassar a linha da mediocridade ou do comum, onde quase todos nós estamos. Como, porém, chamar a atenção de um mundo intoxicado de excessos? Simples: toque no que é sagrado, por exemplo, na religião da maioria; manifeste opiniões que pareçam modernas, avançadas na área sexual, embora, um pouco de leitura e vivência prove que isso seja quase impossível.

O assunto é, portanto, antigo. Absalão, filho querido de Davi, é um homem que bem pode representar os modernos atuais. Um homem sem limites. É um desvairado e atravessado de desejos, acima de tudo quer equiparar-se ao pai. Tem até alguns predicados, mas não se domina, nem deseja fazê-lo. Importa-lhe o agora e se o futuro se lhe apresenta, nada mais há diante dele que não ele mesmo realizado em seus sonhos de poder. Não lhe ocorre que para um grande poder tem a contrapartida de uma grande responsabilidade. Ele, como nossos contemporâneos, querem o que seja, por ela mesma, não pelo seu significado, sua transcendência, apenas a coisa objeto do querer.

Ao mesmo tempo, nossos contemporâneos pregam o respeito à idéia do outro, a opinião alheia, mas como poderemos ter tantos protagonistas? Nasce um mercado do excesso, há que superar o recorde do feio, do obsceno, do mais longe, mais profundo, que outro fez e então se terá escrito o nome num panteão de feitos extravagantes, na maioria dos casos com poucos resultados bons para o outro. Não admira que, nossa sociedade que se orgulha de sua pluralidade, seja tão indiferente.

Absalão, entre tantas coisas desatinadas que faz, aconselha-se com o “sábio” Aitofel, símbolo da ganância, da esperteza maliciosa, maquiavélica. Deita com as concubinas de teu pai e todo mundo verá que houve uma ruptura definitiva entre vocês e o povo te respeitará. Define uma fronteira entre você e ele (2 Samuel 16.21-23). O filho aceita prontamente a sugestão. No terraço de um prédio, de forma pública, ele possui as mulheres de seu pai.

Este nosso mundo que apupa a contestação, estranhamente caminha pelo viés da uniformização. Discordamos para sermos todos iguais. Esta esquizofrenia pede gente disposta a ouvir qualquer tolo e um tolo-mor que se dê ares de grande sabedoria. De Aitofel se diz: “O conselho que Aitofel dava naqueles dias era como resposta de Deus a uma consulta.” (vers 23) O mundo desajustado, tem também seus muitos dogmas. E um deles é que você seja autêntico e ser autêntico é quase não ter limites, isso porque nossas fronteiras pessoais estão meio apagadas. Ser, hoje, é fazer ou dizer algo, tanto mais exagerado, melhor.

O Evangelho propõe ser em Jesus, sem que, quem o segue, jamais perca sua alteridade, porque o homem/mulher que em nós precisa desabrochar pleno, não nascerá até olhar para si mesmo e ter a descoberta que o profeta em momento de quase êxtase teve diante do Inaudito: “Ai de mim, que vou perecendo! Porque eu sou homem de lábios impuros, e habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o rei, o Senhor dos Exércitos!” (Isaías 6.5)

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Com a morte não se brinca


Convencido de que estava à beira da morte após sofrer um derrame, ele confessou o assassinato de Jimmy Carrol, então com 20 anos de idade.

"Ele quis limpar sua alma", disse o detetive Tony Grasso, que escutou a confissão.

Fonte: BBC Brasil

Gregory, pacato cidadão, bom marido, ativo membro da igreja local, está recostado na sua cadeira predileta logo após o almoço. A idade – quase 70 –, a leseira que bate depois de um bife com batatas que a patroa faz como ninguém. Começa a cochilar. Súbito, uma fisgada no pescoço, uma dor excruciante na cabeça, perde os sentidos.

Acorda zonzo, horas depois. Está tudo embaçado, as pessoas em volta com aquelas caras escorridas, num misto de pena e alegria, afinal ele estava voltando. A esposa que o acompanhou por longos anos, aproxima-se e sussurra: Você teve um derrame. Gregory entende, mas parece que não foi com ele, sente o corpo pesado e ouve como se estivesse de longe de quem fala. Balbucia algo. A esposa se aproxima para entender. Onde estou? No hospital. Graças a Deus você está bem agora. Mas ele não se sente bem. Moveu os olhos em direção ao corpo inerte e não consegue mexer todo o lado esquerdo. A língua parece que tem um nó, a cabeça dá voltas. Sente sede. Ao beber, metade da água escorre pelo lado da boca, é que está torta, paralisada também.

De repente, lembra algo terrível. Uma coisa que guardara consigo por mais de trinta anos. A esposa sabe, mas nunca falaram daquilo. Há um pacto de silêncio entre eles. Está tomado de angústia. Chora pelo olho que consegue emitir lágrima. A esposa se aflige e o consola. Chora também. Beija-lhe o rosto ternamente. Gregory tem certeza que chegou seu momento fatal, o que lhe aumenta o terror por causa do segredo. Precisa consertar esta parte de seu passado. O terror do inferno toma conta de seu coração.

Faz sinal para que a mulher se aproxime. Cochicha seu medo e sua decisão. Ela fica muda, olhos arregalados. Havia esquecido. Tenta demover-lhe da idéia que considera louca. Ele responde: Vou morrer, não quero ir para o inferno. Preciso confessar. Ela se resigna, é um moribundo quem fala. Choram novamente. Ele de alívio, ela de desespero, pois preferiria nunca mais sequer ouvir esta história, quanto mais trazê-la a público.

Dia seguinte, o xerife do condado está ao lado da cama de Gregory. A esposa explica que ele fala com dificuldade, se ele não conseguir entendê-lo que lhe pergunte. Gregory olha decidido para o xerife. Seu rosto é severo por causa da paralisia, mas por dentro ele está contente, vai se livrar de um fardo. O xerife inclina a cabeça para ouvir. Gregory não faz rodeios: matei um homem há 30 anos noutra cidade e não paguei por isso. Perdi a cabeça. Pensei que ele estava dando em cima de minha mulher. Era um vizinho meio folgado. Matei e enterrei no quintal de casa.

O xerife está estupefato. Não diz palavra. Levanta-se calmamente, faz um sinal com a cabeça para o confessante e chama a esposa para conversar no corredor. Acha tudo aquilo inacreditável. Precisará investigar os fatos para saber se confere, deverá levar umas duas semanas, pois o suposto assassinato ocorrera em outro estado. A esposa ouve calada, apenas confirma com a cabeça.

Os dias passam e Gregory melhora rapidamente. A fala torna-se fluida, os movimentos melhoram e nem a boca se vê torta. Recebeu alta, anda pela casa sem necessidade de ajuda. Depois do almoço, um suculento bife com batatas, descansa em sua cadeira predileta. Súbito, cai em si. Olha a burrada que fez. Não vai morrer. Confessou sem necessidade. Chama a mulher. Precisamos fugir é já. De novo? Mas, mas... Mas nada. Estamos velhos, talvez nada aconteça, argumenta a mulher. A lei vai me pegar, eu sei. Prepara as coisas. A mulher sai para preparar duas malas, ele anda de um lado e para o outro. Pensa: que burro! Tapado! Eu sou uma besta!

A mulher volta e diz: terminei. A campanhinha toca. A mulher atende. O xerife e dois policiais declaram: Chame o senhor Gregory, ele está preso por assassinato. O que vai acontecer a ele? Será julgado e neste estado a pena é a morte.