sexta-feira, 20 de maio de 2016

Um anjo caiu do céu

Os habitantes de um vilarejo remoto da Indonésia encontraram uma boneca inflável em uma praia e acreditaram que o objeto era um 'anjo' que caiu do céu, informou a polícia local.
Fonte: AFP Jacarta. (03/05/2016)
Adélia Prado diz que o homem é religioso como é bípede. Lembrei que Aristóteles disse que a natureza abomina o vazio. Você deve se perguntar: o que uma coisa tem a ver com a outra? Eis a história. Em uma das milhares de ilhas indonésias, há um pequeno vilarejo. O sudeste asiático não só tem uma das maiores concentrações populacionais do planeta como, por esta mesma razão, os mares ao redor são cortados por um número incontável de barcos, grandes e pequenos.
Singram por aquelas águas cargueiros, barcos de passeio, de pesca, de piratas, de gente, membros de minorias religiosas escorraçadas de seus países e que, diferente dos sírios, afegãos e africanos que morrem aos montes no Mediterrâneo, estes recebem menor atenção da mídia mundial, mas também navegam maltrapilhos e morrem afogados e de inanição nos barcos imundos que navegam.
O que mais carregarão esta miríade de barcos para lá e para cá? Bem, no caso aqui descrito, uma tara e uma briga de amor, de casal, como queiram. Que, como os dramas fatais shakespeareanos, terminou de forma trágica. Ela, em vida, foi uma linda boneca inflável. Um sujeito caiu de amores por ela e a comprou. Planejou um tórrido romance que se daria entre aquelas ilhas paradisíacas, mares cristalinos e azuis, coqueiros, areias brancas que doem na vista, um chalé com comodidades básicas, mas funcional.
Num belo dia de sol, saíram a navegar. Entre um mergulho e outro, sexo desenfreado, uma ponta de ciúme toldou a mente do amante. Ela teria olhado para outro, dado mole para um bronzeado surfista? Mas não havia ninguém ali, consolou-se o amante. Mas o ciúme tem ardis misteriosos Teria sido no passado? Quem poderia garantir? Todos tem um passado indizível e secreto. O demônio dos olhos verdes lhe tomou a alma completamente. No barco a discussão aumentou de temperatura, mesmo que ela, recatada e silenciosa como uma gueixa, nada tenha retrucado. Num acesso de loucura, o amante lançou seu amor ao mar. A correnteza furiosa os afastou e foi tudo silêncio.
Pela manhã, um morador do vilarejo voltava fatigado de uma madrugada de pescaria quando deu com ela presa entre umas pedras. Pensou ser uma sereia, mas não, era um ser celeste. Parecia dar um grito mudo por socorro. Era branca como a areia. Por alguma razão estava nua como veio ao mundo. Ele se compadeceu. Lembrou-se que no dia anterior acontecera um eclipse do sol que afetara gravemente sua noite de pesca. Um fenômeno tão espetacular é porque os mundos espirituais estavam em guerra entre si. Aquele ser não era outra pessoa que não um anjo caído.
Rapidamente, retirou sua camisa em molambos e envolveu delicadamente o anjo. Pediu desculpas por ver suas partes íntimas. Ela deixou-se quieta em seus braços. Ele se comoveu com seu silêncio e abandono em seu colo. Estava exausta do fragor da batalha e do mar. As pernas e braços meio bambos pendiam como que exaurida. O pescador correu até o vilarejo a anunciou a boa nova. Um anjo caiu do céu justo em sua ilha que doravante seria abençoada.
A notícia correu de ilha em ilha até a capital do país. O governo, entre cético e crente, enviou um batalhão de especialistas, teólogos islâmicos, feiticeiros e incréus.  A procissão de barcos que se formava em direção à ilha já causava um enorme engarrafamento no mar. Quem poderia imaginar o que resultaria dessa queda de anjo? Numa montanha, os ilhéus haviam construído uma pequena cabana onde jazia o anjo. E que prova maior havia de sua anjice? Seu corpo não se deteriorava, nem fedia da podridão que acomete os reles mortais. Os enviados da capital, ao ver o anjo se quedaram embasbacados. Tiraram fotos e amostras para estudo e ao povo disseram que o levariam para cuidados e reenvio para o céu que era seu lugar. Não queriam retirar-lhes a fé pura.
Talvez explicando a fala de Aristóteles. Também na fé, como na natureza, o vazio de sentido e explicação sempre será preenchido pela primeira loucura que o conhecimento religioso subjacente puder construir.