sábado, 8 de fevereiro de 2014

Justiça cibernética

Logo após as 14h, Yin começou a receber centenas de ligações no seu celular, de pessoas que gritavam obscenidades e o acusavam de se comportar como um animal. Demorou um pouco até que Yin, perplexo, entendesse o que estava acontecendo.

Fonte: BBC em Pequim, China. (06/02/2014)

Havia muita confusão. As informações eram desencontradas. Uns diziam que o maluco que protagonizou uma das maiores caçadas que a polícia realizou, era um facínora fugitivo. Outros diziam que queria protestar, fazer um rolezinho nas ruas da metrópole e, por fim, havia quem dissesse que dirigir na contramão, andar na calçada, bater em semáforos e dezenas de supostas tentativas de atropelamentos era uma mistura de tentativa de suicídio com atentado terrorista.
Horas depois da perseguição – ruas fechadas e a instalação do caos em pleno horário do rush – prendeu-se o simplório taxista, anônimo entre milhares de outros que infestavam a cidade. Estava grogue e falava de forma desconexa. Algemado e submetido a safanões e cascudos, cutucões com cassetete, forma que a polícia deixava extravasar sua frustração e vergonha por percorrer meio mundo com metade do contingente para, no final, prender aquele zé-ninguém que, inacreditavelmente, já ganhava a simpatia do público por dar tanto drible na briosa.
Arrastado, ele apontava insistentemente para o bolso. Dali o homem arrancou um pedaço de papel que não conseguiu passar a ninguém, pois é claro que os meganhas não se importaram. Um popular que assistia a tudo pegou o papel do chão. Era uma carta. Dali foi direto para um jornal onde foi publicada e aqui repassamos, depois de dura tradução com meu mandarim macarrônico e uma ajudazinha do golgle tradutor, babylon e o diabo a quatro.
Autoridades e demais interessados. Protesto inocência. Alguém postou na internete a foto de parte da placa de meu táxi, que era de um carro quase clone, embora o meu seja cinza e o tal carro do escarrador seja prata. Ali se dizia que fui flagrado enquanto cuspia num mendigo que se aproximou para limpar o para-brisa ou pedir. O postante se dizia revoltado com minha suposta maldade por humilhar um miserável em plena rua. A coisa cresceu como um monstro. Do dia para a noite vasculharam minha vida inteira. Até a retirada de uma verruga está lá para quem quiser ver.
Numa manhã, o carro não pegou. Os ponteiros do meu relógio andavam no sentido anti-horário. Meu tablete recusava-se a obedecer a qualquer comando que lhe desse. A cada enter, aparecia uma mensagem com agressões. O teclado virtual se digitava sozinho. A luz de minha casa acendia e apagava como se fosse um daqueles enfeites de natal.  Isto foi apenas o começo.
Daí em diante, minha desgraça só aumentou. É como se o Julian Assange do Wikileaks tivesse se reproduzido em milhões numa infestação virótica cibernética. Amotinados como piratas enlouquecidos, os internautas decidiram que fariam justiça com as próprias mãos virtuais. Comecei a receber telefonemas em todas as horas do dia e da noite. Apenas num dia, recebi 1452 ligações com impropérios, xingamentos, ameaças e chantagem. Primeiro, não entendi nada. Pensei que era engano. Depois, vi que não, eu era vítima dos black blocs da rede. Até minha sogra com 93 anos recebeu ligações escandalosas. Eu tentava explicar que eu não cuspi em ninguém, que era um engano, mas só aumentava a certeza deles de que eu era o cuspidor serial de mendigos indefesos.
Aguentei até onde pude. Eu era a vergonha da humanidade, diziam. Que eu estava marcado para sempre, como quem tinha o sinal de Caim. Desesperado, postei minha foto com um singelo cartaz no qual clamava minha inocência. Minha cara já diz: sou apenas um trabalhador. Um homem comum. Foi pior. Agora, o enxame de justiceiros cibernéticos tinham minha foto que foi reproduzida milhares de vezes com o bigodinho do Hitler, como drag queen e um sem número de outras coisas, inclusive o demo. Nunca mais peguei um único passageiro, eu conduzia o táxi besta-fera, o infernal molestador de pobres coitados. Nada mais me restava, exceto lançar-me nesta cruzada louca em que não mais importa a justiça ou inocência, eu quero é tocar fogo no mundo.
Na entrada da delegacia, um repórter ousado quase enfia o microfone no olho do taxista. Você quer dar uma declaração? O olhar do homem esbugalhou. Vocês estão ouvindo? Bip, bip, bip... é um satélite no espaço que está monitorando seu pensamento. E deu uma gargalhada com a boca escancarada cheia de dentes.

PS. Tradução do cartaz. Eu sou inocente, bando de fi d’uaégua!