Logo após as 14h, Yin começou a
receber centenas de ligações no seu celular, de pessoas que gritavam
obscenidades e o acusavam de se comportar como um animal. Demorou um pouco até que Yin,
perplexo, entendesse o que estava acontecendo.
Fonte: BBC em Pequim, China. (06/02/2014)
Havia muita
confusão. As informações eram desencontradas. Uns diziam que o maluco que
protagonizou uma das maiores caçadas que a polícia realizou, era um facínora
fugitivo. Outros diziam que queria protestar, fazer um rolezinho nas ruas da
metrópole e, por fim, havia quem dissesse que dirigir na contramão, andar na
calçada, bater em semáforos e dezenas de supostas tentativas de atropelamentos
era uma mistura de tentativa de suicídio com atentado terrorista.
Horas depois
da perseguição – ruas fechadas e a instalação do caos em pleno horário do rush –
prendeu-se o simplório taxista, anônimo entre milhares de outros que infestavam
a cidade. Estava grogue e falava de forma desconexa. Algemado e submetido a safanões
e cascudos, cutucões com cassetete, forma que a polícia deixava extravasar sua
frustração e vergonha por percorrer meio mundo com metade do contingente para,
no final, prender aquele zé-ninguém que, inacreditavelmente, já ganhava a
simpatia do público por dar tanto drible na briosa.
Arrastado, ele
apontava insistentemente para o bolso. Dali o homem arrancou um pedaço de papel
que não conseguiu passar a ninguém, pois é claro que os meganhas não se
importaram. Um popular que assistia a tudo pegou o papel do chão. Era uma
carta. Dali foi direto para um jornal onde foi publicada e aqui repassamos,
depois de dura tradução com meu mandarim macarrônico e uma ajudazinha do golgle
tradutor, babylon e o diabo a quatro.
Autoridades e
demais interessados. Protesto inocência. Alguém postou na internete a foto de
parte da placa de meu táxi, que era de um carro quase clone, embora o meu seja
cinza e o tal carro do escarrador seja prata. Ali se dizia que fui flagrado
enquanto cuspia num mendigo que se aproximou para limpar o para-brisa ou pedir.
O postante se dizia revoltado com minha suposta maldade por humilhar um
miserável em plena rua. A coisa cresceu como um monstro. Do dia para a noite
vasculharam minha vida inteira. Até a retirada de uma verruga está lá para quem
quiser ver.
Numa manhã, o
carro não pegou. Os ponteiros do meu relógio andavam no sentido anti-horário.
Meu tablete recusava-se a obedecer a qualquer comando que lhe desse. A cada
enter, aparecia uma mensagem com agressões. O teclado virtual se digitava
sozinho. A luz de minha casa acendia e apagava como se fosse um daqueles
enfeites de natal. Isto foi apenas o
começo.
Daí em diante,
minha desgraça só aumentou. É como se o Julian Assange do Wikileaks tivesse se
reproduzido em milhões numa infestação virótica cibernética. Amotinados como
piratas enlouquecidos, os internautas decidiram que fariam justiça com as
próprias mãos virtuais. Comecei a receber telefonemas em todas as horas do dia
e da noite. Apenas num dia, recebi 1452 ligações com impropérios, xingamentos,
ameaças e chantagem. Primeiro, não entendi nada. Pensei que era engano. Depois,
vi que não, eu era vítima dos black blocs da rede. Até minha sogra com 93 anos
recebeu ligações escandalosas. Eu tentava explicar que eu não cuspi em ninguém,
que era um engano, mas só aumentava a certeza deles de que eu era o cuspidor
serial de mendigos indefesos.
Aguentei até
onde pude. Eu era a vergonha da humanidade, diziam. Que eu estava marcado para
sempre, como quem tinha o sinal de Caim. Desesperado, postei minha foto com um
singelo cartaz no qual clamava minha inocência. Minha cara já diz: sou apenas
um trabalhador. Um homem comum. Foi pior. Agora, o enxame de justiceiros
cibernéticos tinham minha foto que foi reproduzida milhares de vezes com o bigodinho
do Hitler, como drag queen e um sem número de outras coisas, inclusive o demo.
Nunca mais peguei um único passageiro, eu conduzia o táxi besta-fera, o
infernal molestador de pobres coitados. Nada mais me restava, exceto lançar-me
nesta cruzada louca em que não mais importa a justiça ou inocência, eu quero é
tocar fogo no mundo.
Na entrada da
delegacia, um repórter ousado quase enfia o microfone no olho do taxista. Você
quer dar uma declaração? O olhar do homem esbugalhou. Vocês estão ouvindo? Bip,
bip, bip... é um satélite no espaço que está monitorando seu pensamento. E deu
uma gargalhada com a boca escancarada cheia de dentes.