Vejam o que
uma sensação de futilidade não faz uma pessoa escrever. O
psicanalista Contardo Calligaris, autor da série PSI produzida pela HBO, estava
sob pressão para escrever um texto para sua coluna na Folha antes de partir e
entre outros muitos compromissos. Ao mesmo tempo, vivia um momento
particularmente importante em sua carreira. Sua série fora indicada para o
maior prêmio mundial do entretenimento televisivo, o EMMY Internacional,
concorrendo na categoria série dramática, além do que, o ator principal, Emílio
de Mello, também concorria ao prêmio de melhor ator dramático.
É nesse contexto, com as malas prontas, que Contardo é tomado
pela sensação de que tudo isso é fútil. Até diria mais. Do sem sentido de todo
o aparato, enquanto o mundo se convulsiona com o Isis (daesh) detonando etnias
– homens, mulheres e crianças indistintamente – em sua louca sanha religiosa.
Pelo menos foi esse tema que ele evocou. Haveria também um sentimento de culpa no
colunista? Dependendo da sensibilidade de cada um, nada mais normal. Embora,
suspeito, essa sensibilidade seja daquelas que causa leve comichão, enquanto se
assiste a notícia, mas encarapitado numa cobertura e tomando um vinho
importado. Ah, fazendo cara de nojinho, como diria Felipe Pondé.
Escrevo bem depois de o evento ter se realizado em Nova Iorque.
Depois das declarações de praxe: foi muito importante ter sido indicado, blá,
blá, blá. Não deu nem para o seriado nem para o ator. A essa altura, suponho
que a tal sensação de futilidade e o raciocínio destrambelhado do colunista
tenham voltado ao normal. Imagino que o sorriso amarelo e o travo na boca por
não ter ganhado o prêmio já tenha se extinguido.
Acertadamente, o colunista afirma que os fanáticos nos tomam a
todos por fúteis. O recente ataque a Paris foi, de maneira declarada, uma ação
premeditada contra o que julgam ser o suprassumo da frivolidade ocidental:
esporte, arte, shows, a diversão no barzinho. Os assassinatos foram um recado
ao que chamaram de algo como: um ataque à capital da prostituição mundial.
O texto sem verve até aí tem seu fio condutor e aponta numa
direção até interessante, a despeito da falta de inspiração. Então, nosso
colunista desanda. O texto já pedia consistência e então se torna num libelo
contra, pasmem, o cristianismo!!!
Se o texto já era raso, passou para o campo do nonsense. “No
campo cristão...” Daí pra frente o psicanalista se valerá da mais obtusa e
arcaica versão de certa variante teológica, portanto, construção intelectual de
um grupo ou vertente do cristianismo e a toma como verdade para desancar a
Paulo, a quem ironicamente diz ser um apóstolo autoproclamado que enveredou o
cristianismo numa cruzada, segundo ele, contra a futilidade e o prazer.
Calligaris coloca o daesh e Paulo exatamente no mesmo saco de gatos de
fanáticos em geral.
Quisera
Calligaris se contivesse por aí. O daesh foi literalmente esquecido, pelo menos
por momento. Primeiro, há uma ligeira digressão para mostrar a fala de um
filósofo que é, de certa forma, positiva a Paulo, mas apenas para discordar e
indicar seu herói, Nietzsche, aquele que anseia pela condição de super homem e
deplora tudo o que julga fraqueza humana, como o amor, por exemplo. Ao passo
que Paulo, segundo este sábio, odiava o humano que havia nele e incutiu o mesmo
ódio nos cristãos de todas as épocas. No que nisso Nietzsche é contraponto
positivo a Paulo, o articulista não diz.
Não sei se rio
ou choro ante tamanho despautério. Talvez Calligaris conheça Nietzsche, mas
certamente não conhece Paulo. Ou o sabe por terceiras mãos, leituras bissextas
ou ainda, como o filho do Lula, da Wikipedia. Calligaris vomita ignorância, mas
deve pegar bem ao seu público ou a certa intelligentsia da qual se julga
membro, em que usar a Bíblia para debochar da herança cristã que moldou o
ocidente é prática comum. Mas isso o Isis e assemelhados já fazem. Com um pouco
mais de ênfase, diga-se, pois metralham e explodem inocentes.
O homem estava
incontido. Não satisfeito, resolve até admitir que será irreverente – esta foi
a última coisa que conseguiu ser em seu texto – e aventurar-se em afirmações
para-históricas. Vá lá, uma piadinha tosca sobre a famosa queda do cavalo que
sofreu Saulo a caminho de Damasco. Calligaris não poderia ter sido mais
infeliz. Uma única leitura do livro de Atos e, se conseguisse entender,
descobriria que o evento e seus desdobramentos acontecem com o homem mais
improvável de todos.
Vá lá
Calligaris, leia Atos dos Apóstolos, pois ainda que o tome como literatura de
ficção, descobrirá que há um personagem e uma história que faz todo sentido e
nos força a concluir que Saulo, não tivesse vivido um extraordinário encontro
com Jesus Ressuscitado, jamais se tornaria Paulo.
Queda por
imperícia como cavaleiro? Usar isso como desculpa para forjar um suposto
encontro com Deus? Às tolas afirmações, Calligaris tenta dar um toque
psicanalítico de boteco: toda a experiência de Paulo foi um mecanismo
projetivo, afirma. O diagnóstico é de tal disparate que me pergunto se
Calligaris andou lendo outro Freud, de outra dimensão em que projeção não seja
uma identificação artificial com coisa ou pessoa, mas surto em que o sujeito se
torna naquilo que odeia. No caso de Paulo, se tornar cristão.
A projeção
desembestou numa versão de um cristianismo sombrio, na crença do próprio Paulo,
categoriza Calligaris. Como um Cavaleiro da Triste Figura que lutava contra
moinhos, Paulo é reduzido a um jacobino quem sabe, pervertido, que perseguindo
aos pecadores, ele mesmo aplacaria seus desejos carnais.
Calligaris, do
alto de sua sapiência, conclui: desta impostura religiosa paulina deriva toda
nossa culpa ao sentir o prazer, mesmo os inocentes. Paulo nos chicoteia com seu
desvario religioso que nos força a ter que pensar o tempo inteiro, diz o
psicanalista, e nos preocuparmos tão somente com o divino e o absoluto e ai de
nós se não for assim.
Não sei se o
Calligaris sofreu algum trauma numa escola católica pré Vaticano II ou se
sofreu sevícias – não necessariamente físicas – inconfessas de algum grupo
terrorista islamita, ou tão somente é fruto de uma intelectualidade frouxa que
se vale da liberdade que tem para proclamar besteiras sobre o cristianismo.
Esse tipo de gente é desonesta, pois é incapaz de reconhecer que a Bíblia
forjou tão profundamente os valores da liberdade e democracia dos quais goza e
que são, afinal, a essência de tudo que defendemos no ocidente, mesmo
pós-cristão.
Hoje
direi o que o roteirista de Psi reclamou que alguém deveria ter dito a Paulo.
Get a life, Calligaris! Vá viver sua vida! A salada que fez de jihadistas,
Paulo, seu avô morto e seu quase prêmio, não faz sentido nenhum.