sábado, 15 de fevereiro de 2014

Trapaça (American Hustle) 2013

Um elenco premiado e experiente e um enredo muito bem montado faz de Trapaça um excelente candidato ao Oscar este ano. O diretor (David O. Russel) que, segundo descobri, é fã de Scorcese, conseguiu colocar muitos elementos do estilo deste na trama, a la “O lobo de Wall Street”, mas ainda melhor. Ele também dirigiu os incríveis “O vencedor” (2010) e “O lado bom da vida” (2012), todos fortes concorrentes ao Oscar em seu momento.
Então, fora a excelentes atuações, particularmente do quarteto principal – Irving Rosenfeld (Christian Bale), Sydney Prosser (Amy Adams), Richie Dimasio (Bradley Cooper) e a vencedora do Oscar de melhor atriz de 2012 por “O lado bom da vida”, Rosalyn Rosenfeld (Jennifer Lawrence) o que o filme deixa de duradouro para um pensar?
Para mim, o personagem Irving que, sendo um homem do submundo do crime, um self made man, sagaz e criativo, inteligência acima da média e, talvez por isso, demonstre duas características difíceis de encontrar: uma pessoa que sabe exatamente sua medida e seu lugar no mundo, além de, neste contexto, ser alguém que revela princípios. Sim, cada mundo tem suas regras e a sobrevivência implica em lidar com elas com quem sabe que não pode desafiar a gravidade ao saltar de um prédio de 10 andares sem paraquedas.
Mas um pilantra que dá golpes de falsos empréstimos, explorando o desespero de outros trapaceiros, endividados ou perdulários; vende arte falsificada e administra como fachada uma pequena rede de lavanderias, pode ter princípios? Claro que pode. Se se abstrai a cor moral, o sucesso “empresarial” e a vida relativamente distante da cadeia. Isso tem a ver com controle que se funda em princípios e autoconhecimento. Alguém que só dá o passo onde a perna alcança.
Acho que o Eike, queridinho do governo até outro dia e que tinha o sonho louco de ser só o homem mais rico do mundo, teria alguma coisa a aprender com Irving. Não é que não se deva sonhar ou fazer planos que pareçam, às vezes, impossíveis. Para ser gigante, convém não ter pés de barro.
Irving é arrastado para um plano mirabolante de um policial do FBI (Dimasio) que, sim, não tem limites na sua ambição. Homem com sede de grandeza. Ao longo da história ele fica cada vez mais obcecado com a possibilidade de prender metade dos políticos e mafiosos de Nova Jersey, incluindo o Prefeito da cidade. Para isso ele precisa da expertise de Irving para bolar um plano, uma rede, se quiserem, que colocará no mesmo saco todos os que ganham propina e quem os paga. Já de cara se vê que, fosse no Brasil, não haveria cadeia no mundo que coubesse tanto marginal. Sem falar no tempo que os processos levariam. Taí o Mensalão com seus longuíssimos 8 anos e os patifes, não satisfeitos, querem outro julgamento.
Enfim, o filme é soberbo naquilo que tem de maestria como a história é contada. Nada está demais ou faltando. E a trupe de atores mostra competência e dão veracidade a seus desesperados, marginais, ridículos e humanos personagens.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Kafka à beira mar



O romance “Kafka à beira mar” de Haruki Murakami (2008), autor japonês que foi apresentado aos brasileiros em 2001 com “Caçando carneiros”, parece um ensaio para o ambicioso projeto “1Q84”, que foi publicado por aqui em três volumes e alcançou grande sucesso entre os leitores. O fantástico que serve de fundo para as duas histórias bebem da rica fonte e, para nós, estranha, mitologia japonesa e o caldo místico das religiões orientais.
Considero que a inserção de um mundo paralelo que está escondido num local tão banal quanto na descida de uma escadaria de um elevado de uma estrada, como em 1Q84; a “banalidade” de duas luas no céu, com cores diferentes, no mesmo romance; ou do homem que conversa com gatos em Kafka à beira mar, conferem às histórias do autor um instigante efeito no leitor que quase acredita que nosso mundo é muito mais do que nossos olhos veem. Uma versão shakespereana japonesa “Há mais coisas entre o céu e na terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia” (William Shakespeare – Hamlet).
Kafka à beira mar, contudo, tem alguns problemas. Os dois principais núcleos da história caminham em paralelo até quase no fim do livro sem que se perceba qualquer vínculo entre ambos. O frágil elo que se estabelece no final parece forçado. Sra. Saeki tem um encontro com Tanaka apenas para ouvir que chegara seu momento de morrer, coisa que ela já sabia, mas esperava alguém para dizê-la. Isso depois de Tanaka rodar meio mundo aos trancos e barrancos, pois ele não tem a menor ideia nem onde fica, nem porque deve ir ao lugar onde se encontrava a personagem.
Ao mesmo tempo, o pai do personagem principal (Kafka Tamura) tem uma vida e aparência totalmente surreal. Não se sabe se ele assume esta aparência – John Walker, aquele do uísque – depois que o filho foge de casa ou  antes; e que, além de ser um artista reconhecido e rico, mata gatos, come seus corações e de sua pele faz um tipo de flauta que depois se prestará para um propósito horrível, mas que ninguém sabe o que é.
O personagem estranho tem um bruto de um cachorro demoníaco, com quem conversa – natural, ele mata gatos – e que a certa altura deve ser morto por alguém. Ele, aparentemente, têm flautas de gatos suficientes e está meio aborrecido de viver ou ainda é como ele entra no submundo da morte para realizar enfim, seu plano macabro que não se sabe qual é, mas é sugerido como algo terrível.
A busca de Kafka por sua mãe, que desaparecera quando ele tinha 4 anos e com ela levou uma irmã, serve de fio condutor para a história do núcleo do qual ele faz parte. Mas este mistério familiar permanecerá insolúvel, pois a ele se acrescenta uma maldição, imprecada pelo pai, que o rapaz carrega como um Édipo ainda mais louco que o original, pois não só terá relações com a mãe como com a irmã também. Claro, o personagem foge deste vaticínio como o cão da cruz. Mas o destino, irremediavelmente, lhe colocará nas duas situações nas quais ele, entre a dúvida e o desejo, acaba cedendo e isto, aviso, sem qualquer propósito para o enredo.
O autor usa a maldição e sua realização como uma dica. Jamais dirá se as duas personagens com quem Kafka se envolve são irmã e mãe respectivamente. Mas ele se relacionará intimamente com as duas, logo... O que quer o autor? Deixar o suspense para que o leitor preencha como um quebra cabeças para o qual não há peças suficientes? Seja lá a razão, não creio que funcione.
Tanaka, o segundo mais importante personagem, tem sim uma história que explica sua condição de vida. Mas o evento que lhe dá uma espécie de poder, tampouco tem explicação. As muitas investigações realizadas pelas autoridades à época nunca conseguiram determinar o fenômeno que ocorreu com 16 crianças num passeio à montanha, entre os quais estava Tanaka, que sofreu o maior dano, pois ao acordar havia perdido toda a memória e tornou-se incapaz de ler ou fazer qualquer tipo de raciocínio minimamente sofisticado. Em contrapartida, ganha o poder de conversar com gatos e ter um pé em outra dimensão.
Oshima, outro personagem importante, é uma incógnita em todos os sentidos. Além de culto, ele é uma espécie de hermafrodita. Um ser a meio caminho de tudo, não só da sexualidade. Então, por esta condição, ele parece captar o mundo estranho que acompanha Kafka e termina por ser seu mentor e protetor por um tempo.
Por fim, a história da personagem Sra. Saeki: além de um passado trágico – ela perde seu grande amor de forma absurda, o que a transforma radicalmente numa mulher ensimesmada e triste – todo o restante de sua vida é apenas sugerido e não é menos difícil do que sua perda fundamental. Ela e Kafka se encontrarão por meio de labirínticos e erráticos acontecimentos, como se estivesse escrito por um destino caprichoso. De modo que a relação que nasce entre os dois soa artificial e o sexo apenas uma forma de cumprir a maldição da qual o jovem fugia. 
O livro tinha potencial, mas a amarração entre os personagens e a fluidez da história é mais difícil de aceitar do que Nakata conversando com uma pedra mística que abre portais para outros mundos ou seu talento de fazer chover peixes e sanguessugas.