quinta-feira, 4 de junho de 2009

Entre o mar e a praia


Há dias que as palavras nos fogem da boca. Os sentimentos parecem amontoados e o nó na garganta não é outra coisa que eles procurando chão onde possam repousar e não achando este leito, transformam-se em lágrimas que é como eles se evaporam de nós. O que fica para trás? Um sem sentido, uma casa vazia. Duro mesmo é quando não há lágrimas, porque não há mais forças para chorar e no lugar delas apenas o gemido fala.

O gemido diz: estou desamparado(a), não vejo nem uma nesga de luz. Sinto-me perdido(a) e não sei recomeçar. Preciso de sentido e motivação novos. Estou cansado(a) de perder-me ou perder o que seja. Neste instante quero dormir e não acordar, quero calar minhas dores porque faltam forças para dizê-las todas e gritar, expulsando-as para longe de mim. Minha carne treme debaixo da pele, um frêmito sobe e desce por minhas entranhas e não há nada que me anime. Todo olhar meu é perdido, todo suspiro é vão. Ah, se...

Esta é a resenha de uma alma em agonia e se dá quase sempre por perdas que podem ser de qualquer coisa e gentes nos quais investimos sentimentos, expectativas, amores, tempo. Nossa alma estava preparada, todo nosso ser se mobilizou naquela direção ou naquele encontro e sem que entendamos logo, tudo se esvaiu por tortuosos labirintos nos quais nos perdemos de nós. A sensação é de um quadro de Dali, onde quase sempre o chão não é o referencial, mas o espaço e é aí que estamos soltos.

Mas se as palavras bateram asas e todas elas juntas não dão conta de nossa dor, o corpo fala e, às vezes, é tal sua carga, que adoece. É assim que se encontra Pedro com quem hoje nos identificamos. É final de uma exaustiva madrugada. As redes foram retiradas vazias inúmeras vezes ao longo da noite. Alguém, à beira do lago, diz que lancem as redes outra vez. Há cansaço, descrença, hesitação. Lancem a rede à direita do barco e encontrarão peixes, diz ele. Como acharemos peixes? Mas o fazem, mecânicos.

Como mágica, a rede quase explode com os peixes se debatendo. João brada: É o Senhor! Pedro os deixa ali no barco, veste-se, e pula na água em direção à margem em busca daquele de quem sente vergonha, ternura, saudade. E é tal a profusão de emoções, que deseja desencontrado, fugir e correr para estar ao seu lado. Quando chegam todos, há uma pequena fogueira, pão, e Ele pede alguns dos peixes recém pescados para que façam ali uma refeição. Há um silêncio profundo. O que perguntariam?

Comem e Jesus quebra o momento e pergunta a Pedro: Tu me amas? Sua resposta é: tu sabes que te amo. Há nuances nesta resposta que, infelizmente, em português, não conseguimos perceber. Por hora, basta-nos saber que Ele pergunta algo como: você me ama como um homem ama a Deus?; a insistência da pergunta e o comentário do escritor sobre o entristecer-se de Pedro por causa da repetição. Era contudo, um ato curativo que ali ocorria. O palco das negações repetidas ali se reproduzia: noite, uma fogueira, pessoas ao redor para aquentar-se e comer.

A resposta, porém, que nos serve neste momento, é a expressão “tu sabes”. Não há força para dizer as razões e porquês deste amor que teme agora se comprometer. Ele sabe que ama, mas falhou. O próprio ali presente, de algum modo o decepcionou, assim ele percebe. Ele acenou com tantas coisas maravilhosas e no final é morto como outros o foram antes dele. Bem verdade, está ali, vivo. Mas que é isso? Terá dito mesmo que morreria? Não faz sentido. Que faz aqui? Por que pergunta se o amo? Amo? Sei que amo, mas não sei quanto valor isso tem, afinal isso não me impediu de negá-lo. Que amor é esse?

E nem bem Pedro organiza as idéias e logo Ele pergunta outra vez: Tu me amas como um homem ama a Deus? Tu sabes que te amo. Outra vez “tu sabes”. Não há nada a dizer. Concordo com algo porque se me pergunta, mas sei mesmo o que estou respondendo? Não sei, sei? Em algum lugar de sua alma, a segunda vez perguntada abre outra fenda na couraça de trevas que o envolve. Mas ele mesmo não tem certeza. Ele que realiza prodígios deve saber. Mas por que continua a perguntar? Como vou saber se olho dentro de mim e que vejo? Uma imensa tristeza – desta sei – e dúvida, medo e vergonha.

Ainda está envolto com seus pensamentos e logo uma terceira vez Jesus pergunta: Tu me amas? O que equivale neste momento: você me ama como um amigo? Parece que a isso Pedro pode responder, por que nas duas vezes anteriores foi assim que respondeu: eu te amo como a um amigo. Disso sou capaz, não me peças mais que isso, pois falhei em te amar como Deus. Se mais te amo, tu sabes, eu mesmo não tenho coragem de dizer.

Que sabemos na hora da dor? Esta é uma das questões, tudo que se sabe é que todas as certezas, convicções são destroçadas e nosso mundo inteiro se abala como se sofresse um imenso terremoto. Cai junto o que é sustentado por estes saberes vãos: os sonhos, as esperanças de dias melhores, o amor de alguém ou por algo. Todo amor, porém, carrega uma grande responsabilidade daí a fala tergiversante do pescador.

A fala de Jesus à terceira resposta de Pedro: Apascenta minhas ovelhas, quer dizer: cuida de ti, cuida dos outros, segue em frente, agora você sabe que amar é correr riscos, mas o amor nunca acaba, mesmo que você falhe, embora haja terríveis conseqüências a esta falha. Você foi tocado pelo amor e não pode mais ser o antigo homem, nem que quisesse. Você falhou e ainda falhará, mas você sempre poderá se reerguer porque o amor o ajudará – você que foi atravessado por ele – desde que ele tenha um alvo em mim, no outro, em você. O amar precisa fluir como corrente de águas, do contrário apodrece como, se inutiliza.

Nada mais a perguntar, nada a dizer. Jesus lida com o tempo e com o diálogo. Tempo, porque nele estamos engolfados por hora e nele tudo é processual. Diálogo, porque somos tornados seres falantes e nada se faz nem se realiza sem a fala. Ela produz a bênção e a maldição. Ela navega os oceanos profundos da alma, mesmo que tenhamos sempre a sensação de sua insuficiência em muitos momentos. A palavra é o exercício vivo dos sentimentos e por meio delas é que eles chegam aos outros. Às vezes elas podem se tornar desnecessárias, desde que tenham sido faladas antes.

PS. Escolhi a ilustração na obra de Frida Khalo. Nenhum artista entendeu tanto de dor e expressou isso em sua obra com tanta delicadeza e força. A obra ilustra chama-se "La coluna rota".

quarta-feira, 3 de junho de 2009

A hidra


Taí esse menino, o Angeli, com sua versão da hidra. Mas nós não combinamos nada, a não ser que o tratante não queira me dar o crédito. Olhando assim, acho que faltou o bigode, né não?



A lenda de Pragmônio


O ministro de Justiça britânico, Shahid Malik, renunciou nesta sexta-feira na primeira perda de alto escalão do governo do premiê Gordon Brown desde a divulgação dos escândalos dos gastos reembolsados, no qual deputados e parlamentares pediam reembolso do governo britânico por despesas como estrume, comida para cachorro, churrasqueiras e outros itens pessoais.

Fonte: Folha On line - Reuters

Homem educado, de modos e gostos refinados, escovados ao longo de mais de uma cinquentena de anos, seus movimentos eram milimetricamente planejados, até o tique num dos olhos, que olham como uma esfinge. Roupas, aparência, cada detalhe causava seu próprio impacto. Trabalhava de forma tenaz, porém, para aparentar algo Vestal ao mesmo tempo sublime.

Ele não dizia mais termos chulos, coisas que denegriam seu status. A esta altura, tinha gente que dissesse por ele. Uma de suas leis, entre muitas pelas quais se guiava, era, no dito popular: O bom cabrito não berra, versão nordestina de “vingança é um prato que se come frio”. Mas não dizia estas coisas tolas que funcionam na prática e na boca de um tipo de presidente peculiar. Nele, não.

Chamava-se Pragmônio Sarnakovsky, nome sem dúvida diferente, o que ele tornou uma marca, e marca a gente se acostuma depois de milhões de vezes exposto a ela, a ponto de não se perceber mais exatamente do que ela fala. É como se tornasse parte do cotidiano, algo que enche as ruas, os prédios, até biblioteca, como cupins leitores que adoram furar buracos enormes nos livros, embora tenham a teima em deixar as capas intactas – bicho disfarçado e estratégico –, quando um se dá conta, adeus omasos.

Pragmônio foi político. Tinha um dom inacreditável: mimetizava-se em tantas formas e cores ideológicas que, passados tantos anos, estudiosos descobriram, não em seus escritos, dos quais se orgulhava a não mais poder, mas disso já falamos. Descobriram cavoucando a história remendada nas ruas, nos edifícios, nas leis, nos alfarrábios registrados de seus mandos, coisa que, diziam – para espanto de todos que na primeira vez que se ouviu –, se identificava traços de suas digitais desde as capitanias hereditárias. Havia quem dissesse que vinha de mais longe, algo lá pelas sesmarias.

Mas dizia, os historiadores descobriram uma particular ideologia nos atos deste titã, à qual denominaram Sarnakovsklítica. Não houve nada igual, nem desde os césares e olha que os caras eram mestres nas manobras políticas. Mas Pragmônio criou algo único, diria, irrepetível, talvez num milênio num país longínquo ao qual chamavam Brazyl. Exceto se por causa de nossas desavenças humanas chegarmos à beira do extermínio e tivermos que começar outra vez. Os estudiosos descobriram um padrão, é que na arte Pragmônica, tipos iguais vicejam no caos, na pobreza, na deseducação e se possível, em situações de falta de liberdade. É como um tornado classe V, condições específicas e raras devem se unir para produzi-lo.

A Sarnakovsklítica não é violenta. Isso é algo interessante, afirmam os historiadores. Não a violência bruta, à luz do dia, ela se vale das forças da própria estrutura que organiza as gentes para consumi-la. Serpenteia no intrincado labirinto de relações entre os poderes. Move peças em todos eles a fim de alcançar o que lhe apetece. A violência é subreptícia, as mortes dos inimigos realizadas com espetacular ciência, prescinde das fogueiras e de forcas em praças públicas, mesmo assim os mata, um a um. Dizem que o poder daí nascente é tentacular. Comparam-no às vezes, por troça, com a Hidra de Lerna, cuja cabeça cortada renasce noutro lugar. Não há Hércules que chegue.

Frase de Pragmônio - não confirmada – a literatura salva. Esta é outra peculiaridade dele. Como fosse algo parente do lendário Matusalém que, segundo se diz, viveu 969 anos, ele precisaria de um titulo que lhe desse entre os meios sociais a característica de imortalidade – coisa que já tinha –, não no nome como é comum pensar, nem nos escritos pelos quais zelava como o Cérbero, seu irmão, vigia a porta do Hades. Até porque as academias estão cheias de mortos bem morridos – quem se lembra? –, a não morte é por outros meios, mais, digamos, mefistofélicos. Fausto que o diga.

A Sarnakovsklítica remodelou toda a idéia do que chamavam democracia. Porque ela com esta não se confunde, pois necessita de espaço físico, portanto, revive os trejeitos dos déspotas esclarecidos, sem seus rompantes, porém. Lembra o absolutismo, mas feito ao pé do ouvido, pavoneia seus pares, troca cafunés de poder. Domina amplas lavras de terra, sem, contudo, cuidá-las como o faziam os senhores feudais, mas é certo retirar dela seu quinto.

Quanto mais estudam as habilidades de Pragmônio, mais admirados ficam os estudiosos. Dizem que não morreu, desapareceu como Dom Sebastião. Sua sombra ainda se estende sobre as almas, como lenda em terras brancas, entre casarões seculares e, por último, como um espírito da floresta.