domingo, 28 de maio de 2017

Negação


“Na guerra, a primeira vítima é a verdade.” Não deve soar entranho, então, que até a guerra precise de regra. Depois da Primeira Guerra Mundial vários acordos internacionais tentaram estabelecer ordem na selvageria, o problema é que, como no caso recente da Síria, em que mais de uma vez gás venenoso foi usado contra a população indefesa, seguir uma regra é uma questão de caráter e escolha pessoal. As leis internacionais preveem punições, mas neste mundo multipolar em que um assassino como Assad escapa com a proteção da Rússia, pode-se virtualmente tudo.
Este parágrafo é apenas para ilustrar o que o livro “Negação” explora. A obra virou filme em 2005. Os judeus têm sido, ao longo dos séculos, saco de pancada verbal, ideológico ou real de muita gente e países. Os dentes dos racistas e antissemitas continuam afiados, mas exploram outras áreas.
Os “Protocolos dos Sábios de Sião” foram desmascarados e é, virtualmente, insustentável hoje usá-los como prova de que está ou esteve em curso uma trama judaica para dominar o mundo. Mas, conquanto tolices como essas sejam repetidas, haverá sempre um público ignorante consumidor novo, como o barbeiro com quem corto o cabelo de vez em quando que mistura Iluminatis, cristianismo apocalíptico – o anticristo incluído – e a velha trama da dominação judaica que, segundo ele, é dona do banco central brasileiro e de todos os outros segundo sua fonte. Ele não é louco, antes que alguém ria disso. 
Durante alguns anos proliferou no mundo acadêmico na área historiográfica várias versões históricas sobre o Holocausto. Entre elas uma que ficou conhecida como Negacionista. Isto porque o grupo de acadêmicos que, por desonestidade intelectual ou antissemitismo, quando não as duas coisas juntas, defendiam que o extermínio judeu pelos nazistas não passou de ficção. Se muito, admitiam que morreram poucos e não por uma política deliberada dos nazistas.
A história do livro relata que um dos mais notórios negacionistas, o inglês David Irving, estrela acadêmica, agressivo contendor, cujos livros vendiam milhares de cópias entre o público racista e antissemita e também entre aqueles que eram meros curiosos, resolveu processar Debora Lipstadt por causa de sua obra “Um estudo acadêmico sobre o negacionismo do Holocausto”. Em seu livro ela apontava Irving como um partidário de Hitler. Um escritor que manipulava e distorcia documentos históricos, omitia evidências contrárias às suas teses. Irving ganhava muito dinheiro com livros e palestras disseminando suas teses nos EUA e Europa. Por esta razão sentiu-se lesado em sua honra como historiador de reputação mundial e isto o levou ao pedido de reparação por danos à sua imagem, por calúnia e difamação.
O mais nosense dessa história é que, a despeito de Lipstadt ter feito um trabalho irretocável do ponto de vista histórico e usando seu direito à liberdade de expressão, em seu país, os EUA, ela possivelmente não seria processada. Mas como a editora inglesa, Penguim, publicou o livro na Inglaterra, ela foi sujeita a um sistema jurídico em que o acusado é que deve provar sua inocência e não o acusador deve provar que foi lesado.
O livro conta uma batalha jurídica emocionante. Uma saga que uniu pessoas em três continentes em favor da verdade. A equipe realizou uma epopeia de pesquisa que custou mais de dois milhões de dólares à acusada, mas que recebeu imensa solidariedade e o pagamento foi realizado com doações de pessoas de vários lugares.
A leitura de Negação é educativa e nos mostra algo aterrador. A verdade, às vezes, não basta a si mesma. Não é óbvia ou evidente por seus próprios méritos, ela precisa de uma guerra em sua defesa. As mentiras de Irving, sua obra nefasta e enganadora, seu cinismo e arrogância, foram expostos de maneira devastadora, mas sua obra, como cabe no ocidente democrático e livre, continua viva, seus livros mesmo agora, possivelmente não editados por editoras sérias, não entraram para um índex ou receberam uma fátua que os destinaram a uma fogueira. Seu veneno potencial está ativo e ao alcance de qualquer um. Eles têm um verniz de seriedade e de pesquisa científica, mas são mentira assim mesmo.
Ler Negação é entender que a mentira pode ser tremendamente convincente, passar anos despercebida como se verdade fosse, ou pelo menos uma versão contrária admissível da verdade mais aceita. Ela continuará sua sanha até que algo se lhe imponha a verdadeira máscara. É o que acontece a David Irving e seus admiradores nesta incrível história. Mas certamente eles ou seus filhotes atingidos no âmago de suas ideias falsas, talvez estejam apenas como esporos, aguardando condições adequadas para germinar outra vez.