O medo é um
elemento fundante em nossas histórias de vida. Uma pessoa sem medo é como
alguém que sofre de analgesia congênita. Há consequências possivelmente
mortais. Os psicólogos evolucionistas explicam o papel do medo, essa emoção tão
primitiva, como um tipo de ferramenta que dava aos nossos ancestrais maior
probabilidade de se safar de um predador ou de inimigos. O que equivaleria
dizer, como piada talvez, que os covardes passaram seus gens adiante na cadeia
evolutiva humana. Explica-se porque todos nós temos esse comichão interno a
oxidar a vida, se com ele não sabemos lidar.
A emoção medo
é multifacetada, plástica, sofisticada. O medo é útil como sinal de alerta que
disparará uma cadeia de reações emocionais, fisiológicas e de raciocínio que
nos ajudarão a tomar decisões em momentos de grave ameaça... ou não. O medo,
quantas vezes, aparece em toda sua exuberância e nada há mais que fantasia de
uma amígdala que vê o que não está lá e, irrefreável, produz a doença tão
conhecida como ansiedade, esta com muitíssimas caras.
Nem toda
ansiedade é ruim. De fato, ela é um mecanismo perfeitamente natural e de
ajustamento. A ansiedade ruim é quando nossas percepções estão doentes e
desenfreadas, nos fazendo imaginar cenários distorcidos da vida e provocando
sensações aterradoras e paralisantes. Fernando Pessoa falava de doenças e
dores, mas aqui um fragmento de sua poesia nos serve: “Há angústias sonhadas
mais reais / Que as que a vida nos traz, há sensações / Sentidas só com
imaginá-las / Que são mais nossas do que a própria vida.”
Ainda bebês,
este mecanismo parece adormecido. No máximo se demonstra uma hesitação. Mas há
bebês bem mais reativos ao que perceberiam como amedrontador. Depois vem os
medos de máscaras, escuro, estar sozinho sem um rosto familiar. A apreensão do
mundo é feita aos trambolhões. Um barulho alto, o susto e pode ser associado ao
medo como quando Clarissa ouvia, nas primeiras audições, seu irmão tocar sax. O
som do sax alto reverbera profundo e intenso. Mas o medo pode ser
dessensibilizado quando se é exposto a ele repetidas vezes: ao vivo ou num
exercício de visualização. Clarissa já ouve o som vibrante do sax sem chorar.
O que é
curioso é que o medo pode ser aprendido. Experiências danosas à nossa
integridade, vivências traumatizantes imprimem registro profundos de medo que
estarão ali à espreita, desencadeando reações tremendas ao menor cheiro de
repetição da experiência. O medo pode ser incutido em nossa mente por outros.
Nós pais temos muita culpa nisso. Transformamos o medo num cabresto, um chicote
que deixará marcas inimagináveis no futuro do rebento.
Atribui-se a
Nietzsche a frase: “A essência da felicidade é não ter medo”. Possivelmente
porque o medo denunciasse a fraqueza humana que ele tanto deplorava. Mas ter
medo é ser fraco? Ou é condição humana e até animal que não se pode remediar?
Alguém sempre pode se drogar para não sentir medo, mas aí você não será você. O
medo nos torna prudentes e cautelosos com o desconhecido. O medo dispara a
síndrome do estresse que, ante uma ameaça, nos faz reagir: lutar ou fugir.
A explicação
evolucionista para o medo é interessante e satisfaz aos anseios da ciência que
precisa de vínculos, provas, experiências que podem ser repetidas. É curioso
que a Bíblia nos apresente o medo num cenário antes idílico, o Jardim. O medo
parece ser a primeira e a mais íntima emoção quando o homem, indagado por Deus,
responde: eu me escondi porque tive medo. Estava com medo porque me percebi nu.
Quem fez você saber que estava nu? Pergunta Deus.
As
consequências deste episódio parece ser um medo instalado nas funduras do
cérebro. Ali, aninhado, ele parece determinar tanta coisa como se fôssemos seus
marionetes. Eis quem somos: aqueles que temem. A gente pode escolher o que
temer, contudo. Porque há uma diferença entre saber do temor e ser dominado por
ele. Pessoa afirma em certo poema: Há tanta coisa que, sem existir, / Existe,
existe demoradamente, / E demoradamente é nossa e nós...