O Psicanalista Contardo Calligaris não poderia
ser incluído entre pessoas fundamentalistas ou intransigentes em suas posições.
Acompanho-o na Folha já há algum tempo, não poucas vezes apreciando seus textos
e aprendendo com eles. Como ele mesmo diz em “Sentidos do Fundamentalismo” (Caderno
Ilustrada da Folha de 15 de dezembro de 2011): “...eu não sou
fundamentalista: decido e escolho segundo as circunstâncias e não por
princípio.”
O texto citado é muito
bom e recomendo sua leitura. Numa época em que o fundamentalismo religioso de
toda espécie ganha as páginas dos jornais pelos motivos mais infames, nunca é
demais questionar as razões e certezas absolutas de quem diz seguir ordens
divinas com resultados que relembram apenas os períodos de barbárie pelos quais
a humanidade passou.
Minha cisma começa quando
o Calligaris, a título de exemplo, retoma o tema que está sempre na ordem do
dia nos últimos tempos, o homossexualismo em contraposição com o cristianismo,
ou este contra aquele, e diz que prefere Oscar Wilde a Paulo, o apóstolo. Ora,
claro está que o articulista não está colocando em evidência sua mera
preferência – questão que, como se sabe, não se discute – mas o que subjaz à
afirmação e isto esclarece no parágrafo seguinte de seu texto.
Também gosto de Oscar
Wilde, mas conheço Paulo melhor. Nenhum dos dois poderá ser julgado pelo que os
outros fizeram com o que escreveram ou, no mínimo, se incorreria numa enorme
injustiça. Donde acho que a comparação é descabida. Sim, alguém poderia dizer
que Paulo enquadra a conduta homossexual, masculina e feminina, como algo que o
cristão deve evitar sob pena de estar praticando algo pecaminoso. De fato,
Paulo fala isso mais de uma vez, destaque para a carta aos Romanos (1.26,27).
Que se pode entender
destas recomendações paulinas? Em primeiro lugar, não há em qualquer de suas
falas sequer a insinuação de que os cristãos devem empreender uma caça aos
homossexuais como forma de extirpar o pecado seja de onde for. Em
segundo lugar, o que está na Bíblia, de modo geral, é para o que crê, logo é
somente este que deve se adequar como princípio de fé. Em terceiro lugar, os
fundamentalistas, ainda que sejam a face espalhafatosa da fé cristã, não a
representam. Ao contrário, distorcem seus princípios fundamentais, entre eles o
amor sua ordem basilar.
É de Paulo a descrição
mais bonita deste estado de alma (1 Co 13.2-9): “E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os
pobres e ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver
amor, nada disso me aproveitará. O amor é paciente, é benigno; o amor não arde
em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente,
não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se
alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê,
tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acaba; mas, havendo profecias,
desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará;”
Calligaris incorre em outro
deslize. Toma o termo “evangélicos” como algo unânime e coeso como se houvesse
uma única forma de ser evangélico, a saber, a forma fundamentalista como chama.
Se há os que desejam converter todos os homossexuais ou condená-los ao fogo do
inferno, e fazem disso quase uma missão, há os que entendem os praticantes
homossexuais como pessoas que, como qualquer outra, sob o ponto de vista
cristão, precisam do perdão dos pecados na pessoa de Jesus. O que,
absolutamente, não é impositivo.
O ser cristão é um modelo
de vida, uma postura perante o mundo, uma forma de entender a realidade, uma “contracultura”
como chamava Jonh Stott em seu livro baseado no Sermão do Monte. Baseia-se no
respeito ao outro, na misericórdia e encontra sua fonte na Graça que, no sentido
cristão, é a bondade de Deus em nosso favor sem que haja merecimento de nossa
parte. Se alguém se diz evangélico e representa ideias e comportamentos
contrários a estes princípios, não expressa o sentido da pregação de Cristo.
A Bíblia, as cartas de Paulo
incluídas, defendem sim, que certas posturas, pensamentos e posições são
pecado, a saber: toda forma de viver que nos distancia de Deus. Ao mesmo tempo, o Livro diz que todos somos
pecadores e que em nós habita o pecado (Paulo), o que põe em igualdade de
condições assassinos, ladrões,
homossexuais e aquele que não é nada disso, mas perjura, odeia, mente, engana,
sente inveja e ainda se gaba de não fazer o que os primeiros fazem. Como diz
Paulo: “Infeliz de mim! Quem me libertará
deste corpo de morte?” À pergunta retórica, ele mesmo responde: “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso
Senhor.” (Rm 7. 24)
O que está claro é que o
fundamentalista não suporta – não o cristão cheio de Graça – que as pessoas em
todos os tempos e em todas as classes, continuem vivendo segundo suas próprias
crenças, modelos e culturas. Que não estão obrigados a aceitar o “negar-se a si
mesmo” e seus “desejos” (viu Calligaris?) para estabelecer uma relação única de
obediência e serviço a Deus. A Parábola do Semeador é esclarecedora. A semente
é lançada pelo semeador num campo que fora previamente preparado. Mas parte
dela caiu à beira do caminho, outra parte sobre pedras, outra entre espinhos e
foi sufocada e outra no solo profundo, donde veio a germinar, crescer e
produzir frutos conforme sua natureza e em proporções distintas. Ora, nem aqui
há igualdade, mas o fundamentalista não suporta o diferente.
O Evangelho de Jesus é
acima de tudo inclusivo, não sem que o incluído seja transformado, sublimando
suas misérias em coisas produtivas e abençoadoras de si e de outros. Diga-se,
projeto para a vida inteira. Não é um ato em que as pessoas são submetidas a um
tipo qualquer de lavagem cerebral ou o tacão da lei, acontece pelo poder do
Espírito de Deus, cada um a seu modo e tempo. Se as pessoas querem viver de
acordo com seus cânones, alheios à fé, a expressão cristã genuína concorda com
Calligaris: “não é preciso escolher entre
as ideias e as práticas das partes, mas entre os que querem regrar a vida de
todos segundo seus preceitos e os que preferem que, nos limites da lei, todos
possam pensar e agir como quiserem.” Pois cada qual, diante de Deus, dará
conta apenas de si.
DESEJO A TODOS OS LEITORES UM NOVO ANO CHEIO DE
PAZ E SAÚDE.