segunda-feira, 18 de junho de 2018

Google "adivinha" as chances de morte de um paciente

O Google tem um programa que pode adivinhar quando o paciente morrerá. Adivinhar é por minha conta. A unidade de trabalho denominada Medical Brain conseguiu o que médicos e hospitais vêm tentando realizar a um tempão: tomar todos os dados disponíveis sobre um paciente e avaliar suas chances de sobrevivência com o máximo de precisão possível.
Nigam Shah, professor de Stanford, um dos autores do artigo, relata o feito goggliano (na verdade um programa baseado em inteligência artificial) e sugere que lidar com aqueles dados sobre o paciente, trabalho entediante e difícil, está com os dias contados. “Você pode jogar tudo lá e não precisa se preocupar com isso.” Com “jogar lá” Shah se refere a todo tipo de dado, inclusive aqueles escritos a mão. O programa os cataloga, analisa e vaticina preciso.
De uma única paciente com câncer de mama o programa analisou 175.639 pontos de dados. Resultado: a inteligência estimou em 19,9% suas chances de morte. A mulher morreu em poucos dias. Os computadores do hospital estimaram que suas chances de morte em apenas 9,3%.
A reportagem afirma que o Google tem nesse programa um novo mercado. De fato, estão trabalhando freneticamente para prepará-lo para o serviço em clínicas. A promessa é de que os médicos estarão livres do tal trabalho entediante de lidar com grande variedade de dados e fazer o que importa: cuidar dos pacientes. Mas por que será que tenho a impressão de que já ouvi esse mantra antes?
A tecnologia sempre oferece mais tempo para fazer o mais importante, seja estar com a família ou, neste caso, focar no cuidado do paciente. Mas ninguém é capaz de pensar (ou é) dos desdobramentos indigestos que a tecnologia gera. Celular era para nos comunicar em qualquer lugar e quando fosse necessário com as pessoas que quiséssemos. Mas presos às redes de centenas ou milhares de amigos as pessoas estão cada vez mais desconectadas umas das outras obsessivas com dar e receber likes.
Um sistema desses pode justificar com precisão lógica irrefutável as razões da (eufemisticamente) alteração do tratamento. A economia de tampo dos profissionais, recursos, leitos será resultado direto da adoção do sistema. O mal, diz Brodsky, quase sempre se disfarça de bem.
Sim, é muito tentador e, diria, até necessário que uma tecnologia realize com precisão máxima previsões diagnósticas e prognósticas. Mas há outro lado da moeda. Sempre há. Mercado rima com lucro. Lucro é, afinal, a razão de ser de um negócio. Qualquer um.
Quem impedirá que em nome da margem de ganho não se diminua substancialmente o suporte àquele que o sistema infalível determinou com parcas chances de sobrevivência?
Não digo que estamos na iminência de que uma IA faça sozinha o trabalho de definir todos os procedimentos que definirão, em última instância, a continuidade da vida de alguém, por precária que esteja. Mas é difícil não pensar que tamanha certeza não justifique a economia de procedimentos terapêuticos até em nome da economia que suprirá muito aos pacientes com melhores chances. Pense num sistema de saúde pública do tamanho do SUS com suas crônicas deficiências de tudo e a necessidade de atender milhões. Em megacorporações de saúde que atendem unicamente aos acionistas e à remuneração das ações.
Tecnologia como essa precisa de vigilância e ser submetida a intenso debate. De baixo de nossos narizes e mesmo envolto num escândalo que fez jus ao mastodôntico tamanho (com bilhões de dólares em perdas, mas já recuperadas), o Facebook diz candidamente que sabe até quantos e quais movimentos você faz no seu mouse. É para botar as barbas de molho ou não?