terça-feira, 2 de agosto de 2016

O tropeço do Papa

O papa tropeçou na Polônia. A imagem foi reproduzida milhões de vezes e por mais de um ângulo. Ele rezava uma missa no encontro mundial da juventude, que aconteceu naquele país. Aproveitou uma folga e visitou o mais icônico de todos os campos de concentração nazistas: Auschwitz-Birkenau.
No Campo, pediu misericórdia a Deus para “seu povo” e que perdoasse “tanta crueldade”. Clóvis Rossi – e muitíssimos outros antes dele – se espoletou. Em artigo cujo título é, por si, uma declaração de (não) fé, “O papa, Auschwitz e a omissão de Deus” (29/07/2016 – Folha de São Paulo), ele se expressou assim: “O problema, acho eu, não é só perdoar, mas acima de tudo entender como Deus, se é misericordioso, pôde permitir tamanho horror.”
Elie Wiesel, escritor e único sobrevivente de sua família de prisões em guetos e do campo de Buchenwald, fez a pergunta mais direta em sua obra e há quem diga que toda ela a reflete: “onde estava Deus em Auschwitz?” Nesta terrível experiência, Wiesel perdeu a fé: “Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que transformou minha vida numa longa noite, sete vezes maldita e sete vezes selada. Nunca esquecerei aquela fumaça. Nunca esquecerei os pequenos rostos das crianças, cujos corpos vi tornados em coroas de fumaça sob um céu azul em silêncio. Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram minha fé para sempre.” (Do livro A Noite)
Um anônimo judeu prisioneiro escreveu com carvão nas paredes de sua cela: “Se existe um Deus, ele terá que implorar meu perdão.” Esta frase é razoável? Sim, é. Quem pode julgar o homem nas condições a que foi submetido? Sugiro o filme “O filho de Saul” para avivar a memória. No sofrimento, perdemos a perspectiva. Embrutecemos. A fé se esvai como numa hemorragia. A vida perde sentido. Nosso cérebro busca desesperado uma explicação, uma razão, para entender o inominável. Sem resposta, quase sempre Deus se torna o bode expiatório.
As pessoas se sentem traídas em sua visão de um Deus bondoso e a fé que lhe dedicaram e o que consideram uma falha fragorosa no ser Deus. Essa crença que chamam de fé é nada mais que racionalização com um relacionamento distante. A fé, certamente, não abdica de pensar, mas é um erro quando apenas com isso se confunde. O salmista Asafe tentou encaixar o mal na vida e concluiu: “Quando busquei compreender tudo isso, reconheci que estava diante de uma tarefa muito acima das minhas forças.” (Salmo 73.16). Rubem Alves caiu nessa armadilha, muito depois de ter escrito um texto que recomendo: “Por que alguns sofrem e outros não?” Está seu livro “Se eu pudesse viver minha vida novamente”. Inspirado, ele encerra o artigo: ”Sofrerei sem revolta, sabendo que Deus é inocente.”
De fato, as expectativas humanas é que são frustradas, pois o conhecimento que se tem de Deus diz que Ele deve agir de determinada forma. Acontece uma dissonância cognitiva quando Ele, aparentemente, se esconde, se omite, silencia. A ideia exposta por Bento XVI em 2010, quando visitou Auschwitz, depois que perguntou retoricamente onde Deus estava, aponta uma reflexão: “não podemos perscrutar os desígnios de Deus... e nos enganamos quando queremos converter-nos em juízes de Deus e da história”.
Para muitos, este tipo de resposta sugere uma capitulação, uma forma de passar a mão na cabeça de Deus e abdicar de nosso lugar entronizado no ego, cheios de humanos direitos. Nosso princípio de justiça clama. Nossa sede por vingança reivindica uma punição. No entanto, o mal segue sem impedimento e cumpre sua sina bestial, deixando-nos impotentes no caminho. Os salmistas sabiam dessa dor. Não poucas vezes a sofreram ao ver o homem mal prosperar em seus intentos malignos. Asafe diz que esteve a ponto de resvalar o pé e cair da fé e só compreendeu tudo ao entrar na Casa de Deus e entender a perspectiva humana e temporal do mal, a partir de Deus: “Tu os colocas em terreno escorregadio e os fazes cair na destruição.” (Salmo 73.18)
Rossi, Wiesel, Alves e tantos outros não puderam ver por este ângulo, quedaram-se em redemoinhos de consumição sem resposta. Ainda que admitam a responsabilidade exclusiva do homem no feito horrendo, mas sempre retornam ao ponto: Deus deveria ter feito algo.
Outro judeu, sobrevivente de Auschwitz, pensa diferente. Viktor Frankl, psiquiatra, criador da Logoterapia. Em seu livro “A busca de Deus e Questionamentos sobre o Sentido”, na verdade, um diálogo entre Frankl e Pinchas Lapide – outro sobrevivente do Holocasuto –, ele afirma:

“Eu questiono energicamente que seja possível negociar, dizer: Querido Deus, preste atenção, até 526.000 judeus mortos na câmara de gás eu mantenho minha fé em você, mas eu não permito mais nenhum único. Porque você deixou que morressem cinco ou seis milhões – por causa disso eu retiro a minha fé. A gente não pode negociar. E veja, a fé, a verdadeira fé continua a existir. Muitas pessoas dizem que em Auschwitz a maioria das pessoas perdeu certamente sua fé em Deus! Mas isso não é absolutamente correto. Eu não tenho nenhuma estatística, mas, segundo minhas impressões, meu sentimento, é de que mais pessoas em Auschwitz readquiriram sua crença e que em mais pessoas em Auschwitz a fé foi fortalecida – e isto significa apesar de Auschwitz – do que aquelas que a perderam lá.” (p. 83, 84)
Adiante, em outro momento do diálogo, Frankl completa:
“Eu acredito poder dizer que a crença frágil foi extinta no campo de concentração, mas a crença forte, a verdadeira fé, podemos até mesmo dizer que ela apenas se tornou mais forte. A verdadeira fé se tornou mais forte, a fé enfraquecida foi extinta.” (p. 117)
Apenas temos que dar a Frankl o crédito por estas palavras por duas razões: ele era um observador preparado e atento aos reveses que a alma humana sofria nos campos e ele mesmo era um prisioneiro. Não cabe julgamento àqueles que, por razões do imenso sofrimento, se tornaram, nem digo ateus, mas atormentados com uma fé que não podiam negar totalmente, tampouco segui-la.