O papa
tropeçou na Polônia. A imagem foi reproduzida milhões de vezes e por mais de um
ângulo. Ele rezava uma missa no encontro mundial da juventude, que aconteceu
naquele país. Aproveitou uma folga e visitou o mais icônico de todos os campos
de concentração nazistas: Auschwitz-Birkenau.
No Campo, pediu misericórdia a Deus para “seu
povo” e que perdoasse “tanta crueldade”. Clóvis Rossi – e muitíssimos outros
antes dele – se espoletou. Em artigo cujo título é, por si, uma declaração de (não)
fé, “O papa, Auschwitz e a omissão de Deus” (29/07/2016 – Folha de São Paulo), ele se
expressou assim: “O problema, acho eu, não é só perdoar, mas acima de
tudo entender como Deus, se é misericordioso, pôde permitir tamanho horror.”
Elie
Wiesel, escritor e único sobrevivente de sua família de prisões em guetos e do
campo de Buchenwald,
fez a pergunta mais direta em sua obra e há quem diga que toda ela a reflete:
“onde estava Deus em Auschwitz?” Nesta terrível experiência, Wiesel perdeu a
fé: “Nunca esquecerei aquela noite, a primeira
noite no campo, que transformou minha vida numa longa noite, sete vezes maldita
e sete vezes selada. Nunca esquecerei aquela fumaça. Nunca esquecerei os
pequenos rostos das crianças, cujos corpos vi tornados em coroas de fumaça sob
um céu azul em silêncio. Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram minha
fé para sempre.” (Do livro A Noite)
Um anônimo judeu prisioneiro escreveu com carvão nas paredes
de sua cela: “Se existe um Deus, ele terá que implorar meu perdão.” Esta frase
é razoável? Sim, é. Quem pode julgar o homem nas condições a que foi submetido?
Sugiro o filme “O filho de Saul” para avivar a memória. No sofrimento, perdemos
a perspectiva. Embrutecemos. A fé se esvai como numa hemorragia. A vida perde
sentido. Nosso cérebro busca desesperado uma explicação, uma razão, para
entender o inominável. Sem resposta, quase sempre Deus se torna o bode
expiatório.
As pessoas se sentem traídas em sua visão de um Deus bondoso
e a fé que lhe dedicaram e o que consideram uma falha fragorosa no ser Deus.
Essa crença que chamam de fé é nada mais que racionalização com um
relacionamento distante. A fé, certamente, não abdica de pensar, mas é um erro
quando apenas com isso se confunde. O salmista Asafe tentou encaixar o mal na
vida e concluiu: “Quando busquei compreender tudo isso, reconheci que estava
diante de uma tarefa muito acima das minhas forças.” (Salmo 73.16). Rubem Alves
caiu nessa armadilha, muito depois de ter escrito um texto que recomendo: “Por que
alguns sofrem e outros não?” Está seu livro “Se eu pudesse viver minha vida
novamente”. Inspirado, ele encerra o artigo: ”Sofrerei sem revolta, sabendo que
Deus é inocente.”
De fato, as expectativas humanas é que são frustradas, pois o
conhecimento que se tem de Deus diz que Ele deve agir de determinada forma.
Acontece uma dissonância cognitiva quando Ele, aparentemente, se esconde, se
omite, silencia. A ideia exposta por Bento XVI em 2010, quando visitou Auschwitz,
depois que perguntou retoricamente onde Deus estava, aponta uma reflexão: “não podemos perscrutar os desígnios de Deus... e nos enganamos quando
queremos converter-nos em juízes de Deus e da história”.
Para muitos, este tipo de resposta sugere uma capitulação, uma forma de
passar a mão na cabeça de Deus e abdicar de nosso lugar entronizado no ego,
cheios de humanos direitos. Nosso princípio de justiça clama. Nossa sede por
vingança reivindica uma punição. No entanto, o mal segue sem impedimento e
cumpre sua sina bestial, deixando-nos impotentes no caminho. Os salmistas
sabiam dessa dor. Não poucas vezes a sofreram ao ver o homem mal prosperar em
seus intentos malignos. Asafe diz que esteve a ponto de resvalar o pé e cair da
fé e só compreendeu tudo ao entrar na Casa de Deus e entender a perspectiva
humana e temporal do mal, a partir de Deus: “Tu os colocas em terreno
escorregadio e os fazes cair na destruição.” (Salmo 73.18)
Rossi, Wiesel, Alves e tantos outros não puderam ver por este ângulo,
quedaram-se em redemoinhos de consumição sem resposta. Ainda que admitam a
responsabilidade exclusiva do homem no feito horrendo, mas sempre retornam ao
ponto: Deus deveria ter feito algo.
Outro judeu, sobrevivente de Auschwitz, pensa diferente. Viktor
Frankl, psiquiatra, criador da Logoterapia. Em seu livro “A busca de Deus e
Questionamentos sobre o Sentido”, na verdade, um diálogo entre Frankl e Pinchas
Lapide – outro sobrevivente do Holocasuto –, ele afirma:
“Eu questiono energicamente que seja
possível negociar, dizer: Querido Deus, preste atenção, até 526.000 judeus
mortos na câmara de gás eu mantenho minha fé em você, mas eu não permito mais
nenhum único. Porque você deixou que morressem cinco ou seis milhões – por
causa disso eu retiro a minha fé. A gente não pode negociar. E veja, a fé, a
verdadeira fé continua a existir. Muitas pessoas dizem que em Auschwitz a
maioria das pessoas perdeu certamente sua fé em Deus! Mas isso não é
absolutamente correto. Eu não tenho nenhuma estatística, mas, segundo minhas
impressões, meu sentimento, é de que mais pessoas em Auschwitz readquiriram sua
crença e que em mais pessoas em Auschwitz a fé foi fortalecida – e isto
significa apesar de Auschwitz – do que aquelas que a perderam lá.” (p. 83, 84)
Adiante,
em outro momento do diálogo, Frankl completa:
“Eu acredito poder dizer que a crença
frágil foi extinta no campo de concentração, mas a crença forte, a verdadeira
fé, podemos até mesmo dizer que ela apenas se tornou mais forte. A verdadeira
fé se tornou mais forte, a fé enfraquecida foi extinta.” (p. 117)
Apenas temos que dar a Frankl o crédito por estas palavras por duas razões:
ele era um observador preparado e atento aos reveses que a alma humana sofria
nos campos e ele mesmo era um prisioneiro. Não cabe julgamento àqueles que, por
razões do imenso sofrimento, se tornaram, nem digo ateus, mas atormentados com
uma fé que não podiam negar totalmente, tampouco segui-la.