sábado, 10 de janeiro de 2015

Dietrich Bonhoeffer (06/02/1906 – 09/04/1945)



Nesta época de recrudescimento de velhas feridas da civilização, algumas das quais nunca curadas totalmente, ler a biografia de Dietrich Bonhoeffer, pastor e teólogo alemão, que viveu durante a barbárie nazista e por ela foi martirizado, é um sopro de ânimo.
Sim, a espiritualidade cristã tem muito a ofertar em exemplos humanos, além do próprio Cristo. É possível resistir sem ser covarde ou amedrontado. Mas não é para qualquer um. Percebo em Bonhoeffer uma profunda convicção e uma clareza sobre a verdade bíblica que o preparou para resistir à perseguição, prisão e, por fim, à morte por enforcamento com apenas 39 anos, no campo de concentração de Flossenbürg.
Bonhoeffer é um dos primeiros a perceber os rumos distorcidos que a Alemanha tomava logo depois da ascensão de Hitler. A cooptação da igreja realizada pelo Reich fez com que ele e outros pastores fundassem a Igreja Confessante. Confessava apenas um Senhor e Salvador, Jesus.
Naquele instante, uma teologia, com apoio de fiéis, pastores e até teólogos, assumia o nacionalismo nazista como valor paralelo ao texto sagrado. A ideia de que se devia obediência ao Führer e o verdadeiro sincretismo com as teorias políticas e racistas expressas pelo nazismo fez com que o grupo procurasse se separar e não se submeter, inclusive, à liderança de um bispo do Reich.
Em vários momentos, Bonhoeffer teve que fazer a escolha por seu povo, pelos judeus – sua irmã era casada com um judeu – e pela igreja, quando podia ter saído da Alemanha e vivido protegido nos EUA, onde por curto período, viveu a convite de uma universidade. Ao longo de todo o texto, várias pessoas descreverão o homem Dietrich como alguém de grande bondade, educação e comprometimento com os outros, um testemunho vivo que o acompanhou até às portas da morte, conforme relatou um médico do campo de concentração que testemunhou seu martírio.
Dietrich Bonhoeffer manteve intenso contato com a igreja livre na Europa, quando descrevia os horrores que aconteciam em seu país. A biografia, talvez por não ser possível ter tido acesso a mais documentos de pesquisa, não discorre sobre a luta pessoal de Bonhoeffer na escolha por atuar na conspiração que pretendia matar Hitler, a famosa Operação Valquíria. Falo do ponto de vista do dilema ético-espiritual sobre não matar. 
De qualquer modo, a leitura é inspiradora e revela quão atual era sua postura, até porque, apesar de ter uma vasta cultura, inclusive na área da arte, a Bíblia sempre foi sua fonte instrumental para ler o mundo de sua época e seu método – oração e leitura dedicada do texto sagrado – continua sendo válido para hoje também.


"O silêncio diante do mal é o próprio mal: Deus não vai nos retirar a culpa.
Não falar é falar. Não agir é agir."
 

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Nós somos Charlie Hebdo



A repercussão do atentado ao jornal satírico parisiense, Charlie Hebdo, dominou os noticiosos um dia após o ato terrorista. O que me chamou a atenção foram as manifestações dos líderes religiosos e políticos islamitas. Não houve um único que não tenha deplorado a ação do alucinado trio, como também todos disseram que o Islã prega a paz. Exceto uma autoridade iraniana, que acrescentou ao seu suposto apoio aos franceses a censura aos chargistas mortos por publicarem humor à custa do profeta Maomé.
Como uma regra de relacionamento no mundo globalizado, espera-se este tipo de manifestação protocolar, mas não passa disso mesmo, especialmente vindo do mundo muçulmano. Afinal, existem interesses econômicos poderosos que convém manter, além do que ninguém quer ficar mal na fita pelo silêncio cúmplice. Ademais, existem fortes indícios de que bons e insuspeitáveis muçulmanos financiam movimentos radicais com seu “zakat”.
Um líder brasileiro da religião muçulmana expressou seu repúdio e exagerou na dose. Disse que o islã, além de ser uma religião que prega a paz, também defende a liberdade de expressão. E por todo canto, mesmo articulistas e jornalistas ocidentais, apareceram defendendo o islamismo ou o Corão de culpa nos atentados. Alegam fatores sociais e a uma interpretação radical e fanática do livro sagrado.
Recentemente, a Alemanha – que só neste ano passado recebeu mais de duzentos mil refugiados de origem muçulmana por causa da guerra na Síria e arredores, além da já enorme população de origem turca que vive no país –, tem visto reações de parte de seus cidadãos contra o que consideram a islamização do país. É uma reação a esta presença islâmica, que aos poucos começa a mudar a paisagem – com os minaretes das mesquitas* – e costumes dos países europeus. No caso alemão, tem sido fortemente combatida pelo governo, cioso mais que qualquer um pelo ainda presente espectro do nazismo que paira sobre o país.
Aos defensores do islã como religião tolerante: apontem um país de maioria muçulmana que é democrático. Está valendo um que não se reja pela Sharia. Um único em que haja um jornal independente. Um único em que se possa pregar o cristianismo livremente, inclusive construir igrejas. Um único em que mulheres sejam vistas com direitos iguais aos homens. Não há.
O islamismo democrata e da paz está no exterior, debaixo de leis democráticas e, curiosamente, minando estes espaços de tolerância por causa, ironicamente, da própria democracia e da praga do politicamente correto, da torta maneira em defender as ditas minorias que, no ocidente, ganham direitos exorbitantes, inclusive em detrimento dos demais. Não faz muito tempo, uma juíza alemã liberou um muçulmano que agrediu a esposa sob a alegação de não ferir a cultura do casal que, segundo ela entendia, permitia ao homem direitos sobre sua, digamos, posse. No Brasil, bestas da antropologia defendem que algumas culturas indígenas, mesmo aquelas aculturadas, matem seus filhos – de maneira absurdamente cruel, diga-se – quando nascem com problemas.
Os dois terroristas franceses nasceram na França. Teoricamente, são fruto da cultura ocidental. Mas não. Algo os fazia diferentes. As minorias defendidas da forma que se está fazendo, são mantidas impermeáveis ao entorno. São enclaves alienígenas no meio da realidade maior. São ilhas isoladas e ressentidas, ao mesmo tempo em que clamam direitos que lhe são concedidos por uma espécie de culpa. Esta postura parece alimentar o preconceito dos demais e gerar um caldeirão fratricida dentro dos países europeus e nos EUA. Embora ali, negros e latinos americanos – apenas para falar das maiores minorias – não deixam de defender as cores da bandeira americana.
Por falar em América, por lá viceja uma aberração típica destes tempos. A maioria absoluta do país é de origem cristã, o próprio dólar traz a inscrição “In God we trust” e, no entanto, quase toda propaganda na época do Natal aboliu a expressão “Merry Christmas” por um anêmico “Happy Hollidays”. O raciocínio débil mental alega não querer ferir a suscetibilidade dos não cristãos. No Brasil há bestas que querem retirar símbolos religiosos cristãos de órgãos públicos. O país é laico, dizem, como se um símbolo cristão fosse mudar o julgamento de um juiz, por exemplo.
Não há saída fácil, mas me parece fútil o exercício da defesa da religião muçulmana em nome do respeito, educação, tolerância ou seja o que for. Em particular, por nós ocidentais. Mantenha-se o direito de um indivíduo escolher sua religião, mas jamais nossa submissão ao que nos destruirá como cultura.

* A Arábia Saudita, um dos países mais repressores do mundo, tem um programa de financiamento de construção de mesquitas ao redor do mundo para as comunidades muçulmanas.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Amor aquático



Um dono de um peixinho dourado em Norfolk, na Inglaterra, pagou cerca de 300 libras (o equivalente a R$ 1,2 mil) em custos veterinários para livrar seu animal de um entupimento no intestino.
Fonte: BBC (02/01/2015)
Ele trazia os olhos marejados. Vestia um pijama listrado que o fazia parecer um prisioneiro. O cabelo ralo desgrenhado, barba por fazer. Naquelas condições, tinha aparência bem mais velha. Numa das mãos, carregava um saco com água e um peixe vermelho que parecia agonizar. O ser aquático borbulhava algo, como se quisesse gritar ou dizer por que se encontrava um tanto inchado, o que o fazia nadar oblíquo.
A veterinária estava boquiaberta com a cena. Não era para menos. Perguntou em que poderia ajudar. O peixe antecipou-se e disse que precisava de ajuda para o homem que estava transtornado com medo de que ele, o peixe, morresse. O homem falava e falava, mas coisas desconexas. Só um tempo depois conseguiu dizer que o seu amigo de tantos anos estava adoentado e precisava de ajuda. O quê, não soube dizer. Falou do inchaço na barriga e algo que sugeria uma prisão de ventre.
O peixe protestou que era uma bobagem, embora se sentisse ligeiramente incomodado. Festas de final de ano, você sabe. Pedia a cumplicidade da veterinária que lhe passou uma descompostura depois de saber que o peixe já havia passado dos trinta anos, algo como setenta na idade humana ou talvez mais. Que alguém naquela idade não podia se dar mais ao luxo de comer de tudo. O peixe fez muxoxos de quem se enfastiava daquela conversa. Mexeria os ombros se os tivesse para demonstrar sua indiferença.
O homem, que frisou umas quantas vezes não ser dono do peixe, mas que era seu amigo de convivência e que dividiam o apartamento há anos, pareceu se recompor. Que pagaria o que fosse para que a médica o salvasse. Nestes casos, disse a veterinária, teremos que fazer exames para identificar tudo, tintim por tintim. Então, de dentro do saco, entre gorgolejos incompreensíveis, o peixe gritou que colonoscopia nem por cima de seu cadáver. Pois é no que tu vai se tornar, ingrato, se tu não fores atendido, disse o homem. E chorou entre balbucios. O peixe se fez de desentendido e continuou falando com sua voz pastosa que em sua cloaca nada entrava, nem que fosse para salvá-lo da morte certa por entupimento.
A veterinária parecia acostumada àquelas cenas de gente esquisita. Cochichou algo ao ouvido do homem, que demonstrou concordar. O peixe, a esta hora, estava revirando a barriga para cima, pois como parecesse um balão, esta o forçava a ficar de ponta cabeça. Mesmo assim, esbravejou que estava bem e aquilo passaria com uma simples manobra de Heimlich. Não era verdade, mais um pouco e o cocô sairia pelas guelras.
Imediatamente, a veterinária colocou um anestésico na água e removeu o corpo do animal para a mesa de operação. Não sozinha, com a ajuda de três técnicos de enfermagem, pois o peixe estava obeso mórbido. Ali, uma ultrassonografia acusou um baita nódulo nas tripas. Retirar o empecilho não foi fácil e pior ainda o que saiu de dentro misturado a sons estrondosos. Havia gases também. Um exame simples pelo chão e teto da sala de cirurgia mostrou restos de panetone, panelada, espumante azedado, farofa e até papel de presente. Se recolhesse o material, ainda dava uma cesta básica. 
Recuperado e esguio que nem um atleta, o peixe se olhou no reflexo do vidro e aprovou o resultado. O homem, consolado, ria e xingava seu amigo pelo susto que o fizera passar e este, remoçado, não se fez de rogado e ainda perguntou à veterinária se ela tinha compromisso para aquela noite. Qual é sua graça, minha linda? Meu nome é Carassius (Carassius auratus auratus). Ouvir o nome a fez corar de vergonha e conter um sorrisinho nervoso. Ela, lisonjeada, disse que ele não estava ainda pronto para novas estripulias, mas quem sabe noutra hora. Aparentemente havia nascido um clima entre os dois.