domingo, 6 de dezembro de 2009

Cachorro também é gente

Um cachorro foi levado à Justiça indiana sob acusação de causar tumulto.
Autoridades policiais do Estado de Bihar, no leste da Índia, pediram punição severa ao cão, Chhotu, por distribuir mordidas entre a população.
"A corte foi obrigada a emitir uma convocação ao cachorro uma vez que a polícia entendeu que ele é uma ameaça à paz, e que podia criar um problema à lei e à ordem", disse uma autoridade local, Rajiv Ranjan.
Fonte: Da BBC News em Patna (Amarnath Tewary)


Minha história daria um livro, ouvi isso muitas vezes. Não é de admirar. Sei o que significa a expressão vida-de-cachorro. Hoje a coisa está um tanto dúbia, porque tem cão por aí que leva vida de nababo, mas me refiro ao significado original da expressão. Julguem os leitores se não tenho razão.
Nasci numa ninhada de dez, o que já é, em si, um problema. Experimente disputar um peito nestas condições. Alguns de meus irmãos tiveram melhor sorte, outros nem tanto, eu fiquei entre os dois. Logo ao desmame, fui adotado por uma senhora. Eu era alegria da casa. Ela me enchia de mimos. Dois anos depois a coitada morreu. Aqui começa minha via crucis.
Como costumava fazer, pela manhã eu a acordava. Subia na cama, lhe dava umas quantas lambidas e ganhava uns afagos. E a vida seguia assim, tranquila. Mas um dia, ao entrar no quarto, deparei-me com a pobre mulher dependurada na ponta de uma corda. Juro, pensei que fosse uma brincadeira. Lati, pulei ao redor dela, nada. Então percebi que, fosse o que fosse, aquilo era muito ruim.
Pra resumir. Quando o cheiro estava insuportável e eu latindo morto de fome e sede, apareceu alguém que viu a situação. A casa encheu de gente. Parentes da minha dona, eu acho. Disseram que foi assassinato, seja lá o que isso signifique. Um deles me deu um chute alegando que eu era um imprestável e não evitei a morte da minha dona. Uns caras fardados apareceram e disseram que foi suicídio. Terminei na frente de um tribunal, convocado como única testemunha ocular, não antes de conversar com uns psicólogos caninos.
Estes humanos são uns loucos. Fiz minha parte. Contei tudo na acareação. Em latidos, que é a única língua que falo. É que me colocaram diante de dois sujeitos mal encarados. Queriam que eu os reconhecesse. O funcionário do tribunal ficou ali do lado, aguardava para anotar um grunido que fosse. Nunca tinha visto os dois mais gordos. Não sei a que decisão chegaram, mas meu depoimento foi uma sensação.
Jogaram-me, depois disso, numa instituição para animais sem lar. Aprendi que uma cara de cão pidão ajuda pra caramba na hora que aparecem umas pessoas para adotar os coitados que ficam ali. Imagine a cena. Um se agacha, rabo entre as pernas, orelhas para trás, levemente caídas e um olhar oblíquo, de baixo para cima. Vocês não imaginam o que se aprende de malandragem nestes lugares. Deu certo comigo. Outra senhora me adotou. Viúva. Caiu de amores e me tratava a pão de ló. Uma noite apareceram uns caras na casa. Distribuí mordidas a torto e a direito. Sabe como é, gato escaldado... Eram vizinhos. Denunciaram-me no tribunal. Fui advertido.
A coisa aconteceu outra vez, mas aqueles caras eram danados de suspeitos. Enfiei o dente neles, ora se não. Novamente, um complô, fui denunciado e agora eu era um pitbull enlouquecido, embora nunca tenha passado de um genuíno vira-latas. A polícia disse que eu era uma ameaça à paz, à lei e à ordem, imaginem. O juiz estava de mau humor e me condenou à morte - aqui ainda se faz sabão com cachorro -, assim sem mais, sem ouvir as partes. Um processo fajuto, sem dúvida. Escapei por que minha dona fez uma campanha e juntou uns amalucados que trocam gente por bicho. Sorte minha.
Não é que eu tenha pegado gosto por mordidas, mas um tem que defender sua casa, ou não? Eu não saía por aí mordendo os outros, mas entrou de bobeira em minha casa, eu não contava conversa. Assim que, outra vez, mordi gente de novo. Outro processo. Meu advogado disse que os tais vizinhos inventaram aquela calúnia contra mim porque queriam, na verdade, roubar minha dona. Vejam só que vizinhança ela tinha. Coitada, nesta história toda, vivia dizendo que me criou como a um filho, me deu educação e que eu era sua única proteção, etc. Sempre achei isso meio estranho, mas me convinha.
Depois de tanto rolo, estou pensando seriamente em entrar para a polícia, dizem que tem uma vaga de cão farejador. Estou em dúvida, talvez comece um curso de direito, o que mais se vê por aí é injustiça humana com os animais. Dá uma m#@* qualquer, descontam na gente.


PS: Desculpem a foto, sei que não é meu melhor ângulo, pareço raivoso, mas acreditem, sou boa gente, quero dizer, cão.