segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O Voo


Acho que sou um saudosista. Ainda me sinto desconfortável em escrever “voo” sem o circunflexo e todos os acentos diferenciais, os agudos e ah... o trema.
Desculpem-me, leitores, o desabafo. O tema hoje passa longe das firulas de nossa língua e dos burocratas da mudança ortográfica. Assisti ao filme “O Voo” (Fligt, 2013) com Denzel Washington, que faz o comandante Whip Whitaker de um jato de voos regionais nos EUA. Durante um de seus voos, que começa com uma tempestade e termina com um desastre aéreo e que só não resultou na morte de todos – havia 102 passageiros a bordo, 3 tripulantes, piloto e co-piloto –, por causa da incrível manobra que é feita pelo comandante que consegue “pousar” o avião num descampado. Quatro passageiros e duas comissárias de bordo morrem.
As primeiras investigações parecem apontar para um herói. Realizou uma façanha com perícia tal que nenhum piloto conseguiu repetir, mesmo em simulação. Uma mancha, porém, surge. Exames de sangue do comandante registram grande quantidade de álcool e cocaína. O advogado anula o relatório. Mas ainda faltava explicar duas garrafinhas de vodca que somente os tripulantes tinham acesso. Elas haviam sido bebidas por Whip durante o voo.
A vida deste piloto é um desastre. Solidão, muita bebida e cocaína para administrar uma separação e a vida corrida que leva. Como todo dependente, Whip disfarça a adicção e se recusa a admiti-la. Enquanto as investigações prosseguem, o herói periga cada vez mais se transformar num beberão irresponsável. Vício que Whip, sob pressão das investigações, perde completamente o controle. Eis o enredo, não conto mais para não estragar a surpresa de quem quiser assistir.
Confrontado por amigos, ex-esposa, a nova companheira, Whip mente e nega qualquer dependência. Este é um padrão clássico. Instala-se uma brutal incongruência, segundo Rogers, entre aquilo que a pessoa imagina que é ou gostaria de ser/estar e a realidade: desagregação psíquica e emocional causada pela droga. As causas da drogadição são tão numerosas quanto dependentes existem. Em todo caso, a droga, seja ela qual for, torna-se uma fuga diante de questões com as quais o indivíduo se sente inábil, incapaz ou sofre para enfrentá-las. Mas tudo pode ter começado por uma “inocente” escolha por curiosidade ou diversão.
No caso do personagem, aparentemente a separação e o excesso de trabalho concorrem juntos para levá-lo ao estado em que se encontra. A mentira e a negação servem como suporte porque, inicialmente, a pessoa acredita que está no controle. Logo, este comportamento não é fruto de uma sem-vergonhice e mau caratismo simplesmente. Em vários momentos, Whip afirma que pode parar sozinho.
A fase em que se nega e não se vê necessidade de ajuda, denomina-se pré-contemplação. Argumentos racionais tem pouco efeito no convencimento, não que não devam ser utilizados. A dúvida para o dependente começa a parecer quando eventos desastrosos acontecem. Um acidente, gasto excessivo, mal estar, violência. Whip passa por esta fase, chamada contemplação. De fato, até consegue ficar dias sem beber. A reviravolta acontece diante da comissão de investigação. Cansado, desesperado, assume sua condição publicamente.
Neste fenômeno, ocorre algo ainda mais grave. Familiares e amigos costumam se tornar o que se chama de co-dependentes. Trata-se dos efeitos na vida do dependente afetando seu círculo de relações, tanto do ponto de vista físico – diversas doenças, especialmente mentais, se instalam pelo estrago da droga – ou legais – prisões –, econômicos e sociais. Nunca existe dependência isolada.
As demais fases no tratamento são: determinação: o pedido de ajuda; Ação: o dependente para de tomar droga; Manutenção: a parada se conserva, obviamente por meio de estratégias de tratamento psicoterápico, medicamentoso, ocupacionais, etc; Deslize e recaída: são duas condições distintas, com níveis de gravidade diferentes. Na primeira, usa a droga, mas por força do tratamento, consegue retornar à manutenção. A segunda refere-se ao retorno ao uso de drogas de forma pesada.
O personagem do filme consegue se redimir, numa mensagem de esperança a todos os que precisam de recuperação. A luta é sem trégua e poucos, muito poucos, conseguem.

Até que o teste conjugal nos separe


Um exercício que demora apenas 21 minutos por ano é o bastante para evitar a queda da felicidade conjugal. Essa é a proposta de um estudo realizado pela Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, que será publicado em breve no periódico Psychological Science. De acordo com a pesquisa, um simples exercício de escrita imparcial sobre as desavenças do casal, a ser realizado três vezes ao ano, pode ajudar a manter a satisfação em relação ao casamento.

Fonte: Veja (Comportamento 07/02/2013)

O casamento de Matilda estava por um fio. Nem boda de papel eles haviam completado. Aparentemente eles se gostavam, mas picuinhas, maus bofes e pirraças que trocavam de parte a parte estavam afundando o matrimônio. Peledrônio cutucava as unhas no sofá. Tirava meleca do nariz e grudava onde lhe desse na telha. Tinha também o péssimo hábito de cutucar os dentes com palito em qualquer lugar (como sinal de boa educação, ele colocava a mão em concha para esconder) e mastigava. Matilda deixava calcinha escorrendo no varal da toalha de rosto. Esmagava a pasta como se quisesse torturá-la e ainda deixava sem a tampa. Cada pequeno detalhe era motivo para desavença e dias sem se falar e sem mais nada, se me entendem.
A cama era um espaço de guerra particularmente acirrado. Disputavam o lado mais conveniente para cada qual. Roubavam o travesseiro de estimação do outro, se espalhavam de forma desembestada e os dois roncavam, mas culpavam um ao outro. Ele também falava mal da mãe dela e dos cunhados. Ela desancava a mãe dele como metida e excessivamente maternal com o filhinho da mainha. Nos dias de maior inspiração na maldade, ela sugeria até um suposto trejeito afeminado. Era o que mais tirava Peledrônio do sério, machista até a raiz dos cabelos e orgulhoso de sua macheza rocambolesca.
Matilda ficou sabendo de uma fórmula quase mágica para salvar aquele desastre ambulante no que se transformou seu casamento. Para sua surpresa, Pelé (apelido caseiro do indivíduo) topou. O especialista explicaria o que deveriam fazer numa reunião exploratória. Quer dizer, ali se estabeleceria o reconhecimento dos atritos, das querelas e o que mais fosse.
Diante do especialista, compenetrados, aguardavam as instruções. Havia quase um certo carinho entre eles. Muito bem, é tudo muito simples. A palavra “simples” despertou logo uma desconfiança nos dois, mas já que estavam ali... Basta uma folha de papel, uma caneta e vinte e um minutos... por ano. Sete minutos de cada vez. Cada um escreverá nesta folha sua visão, olhando como se fosse um estranho que quer o melhor para o casal. Pronto. O resultado deste exercício empático será a harmonia da família.
Descrever desavença era perigoso, no caso deles. Atiçava brigas velhas, algumas com cheiro de mofo, mas que Matilda sempre achava uma maneira de relembrar com a memória invejável que as mulheres têm para estes detalhes. Lembrem-se, alertou o especialista, descrevam como se fosse um casal amigo que querem ajudar.
Matilda começou a escrever com uma voracidade que dava medo. Pelé ficou olhando o papel e virando de um lado para o outro. A ansiedade começou porque o silêncio aumentava o barulho do cronômetro que tiquetaqueava como um cavalo trotando dentro de sua cabeça. Como um raio o tempo se fora, segundos diminuíam agora no mostrador. Matilda escrevia, escrevia. Rabiscava as últimas linhas do anverso da folha. Pelé, distraído, entregue a sua incapacidade de pensar qualquer coisa, rabiscou garatujas, escreveu o próprio nome, por fim, desenhou um bonequinho enforcado para retratar vividamente sua incapacidade.
Era hora de mostrar cada qual sua produção. Trocariam os papeis. Matilda, que estivera alheia ao drama do marido, tomou o papel dele nas mãos, ávida para ler. Antes que pensasse qualquer coisa, foi interpelada por Pelé que pedia os óculos para ler aquela letra horrível e minúscula, disse. Ela se voltou para o papel dele e nada vendo de significativo, deparou-se com o boneco enforcado. Ele espremia os olhos para ler. Ora afastava, ora aproximava da vista, já impaciente, mas entretido, pois esperava os óculos e resmungava que levaria três dias para ler aquilo tudo.
Ela explodiu. Que óculos? Sou tua mãe para andar te servindo? Tenho cara de ótica? E que desenho é este? Éééééé... Ele tentou explicar. Então é assim que tu te sentes em nosso casamento, enforcado? Rasgando o papel com ódio nos olhos. Pois olha aqui, estou cortando tua corda. Vai te assanhar com tuas galinhas no carnaval. Acabou a sessão.