domingo, 24 de outubro de 2010

Louro é a vovozinha

O papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva) é uma ave comum no Brasil. Soró, morador de Moema (zona sul de SP), faz parte dessa espécie, mas não merece o adjetivo.
Portador de epilepsia, doença rara para um papagaio, Soró tornou-se alvo de uma disputa judicial entre a socióloga Tânia de Oliveira, 63, e o Ibama de São Paulo.


Fonte: Folha de São Paulo (21/10/2010 – Caderno Cotidiano)

Ainda estou abalado no meu psicológico. Verdade que a juíza foi justa e conscienciosa, pois analisou a condição humana em jogo e não a letra fria da lei pura e simples. Mas, pergunto, até quando? Ainda não é uma decisão definitiva. As consequências de tal perseguição têm sido terríveis. Perdi o apetite, o sono, o humor e me assusto por qualquer coisa. Fui ao médico e ele suspeita que estou com depressão. E como não haveria de estar? Aqui em casa todos estão macambúzios com tudo que está acontecendo. Algo kafkaniano nos persegue.
Vem um e diz: ele deve pagar, ser solto ou ser morto. Baseado em quê? Nada. Uma lei abjeta, imprópria e estes mequetrefes ad libitum (ao bel prazer) querem impingi-la a mim que ab ovo (desde o princípio) vivo na paz e nunca fiz mal a ninguém. Mas o que importa para eles? A lei. As pessoas e suas relações não contam nada. São zumbis de um sistema impessoal que só se satisfaz com o cumprimento da regra e alguém tem que ser punido: Ecce homo (Eis o homem).
Não fosse esta boa decisão da meretíssima, que inclusive pôs a nu o factóide, eu estaria perdido. Não gosto de falar, mas tenho epilepsia que, digo em má hora, se agrava e muito quando estou nervoso. Só hoje dei uns dois piripaques. Certo que, aqui entre nós, exagero um pouco, porque tenho boa vida entre os meus e minha doença de muito diagnosticada, me é o passaporte para a liberdade. Significa ficar em São Paulo, viajar, ir a teatro, cinema, ver TV e muitos etc. Os biltres querem me condenar à selva, assim sem mais. A selva é para os índios, não para mim. Sou lá eu um degredado cabralino que por aqui foi jogado?
Perdoem-me o latinório, mas sou pessoa sofisticada e se não entendem, que se apeguem ao dicionário, assim, ex abrupto (intempestivamente), só posso fazer uma coisa: manter-me na farsa. Minha epilepsia está mais para uma azia dos diabos quando como roquefort, mas fazer o quê? Tive a simpatia de meu médico que cometeu esta impropriedade diagnóstica, coisa à toa quando se trata de salvar uma vida, a minha, claro. Ipse dixit (Ele disse), quem pode contestar?
Minha amiga e companheira chora e se descabela. Estamos juntos há 26 anos, não se desfaz uma amizade destas só porque o Estado exige para satisfazer uma meia dúzia de debilóides verdes. Há que ver o drama humano em jogo. Meu drama. Peço ajuda a todos os amigos. Ora pro nobis (ora por nós). Defendei minha causa que sou injustiçado. Exilado entre muriçocas e cobras e monstros. Quae erit mea sors?(Qual será a minha sorte?) A morte degradante, meus amigos. O fim, despedaçado pelas feras, é isso que me aguarda se ao léu for deixado.
É justo punir quem se autotutelou, ganhou autonomia, se educou e hoje é um cidadão cumpridor de seus deveres? Falam em diferenças, minorias, mas não somos todos parte do mesmo mundo e realidade? Não temos um destino comum? Isso, por si só, não deveria nos fazer solidários uns com os outros? Como já disseram Hobbes e Plauto antes dele: hominem homini lúpus (o homem é o lobo do homem). Nua e crua realidade. Se não fosse a juíza que viu o disparate, o desarrazoado do pedido vil, estaria eu, a esta altura, perdido, manquejando solitário numa hiléia que animal hominem inclinat in (transforma o homem em fera).
Encerro este meu libelo pela liberdade, este apêndice da declaração universal dos direitos humanos (perdoem a altaneirice). Apenas digo: quis libero liberam esse (a liberdade de um homem, é a liberdade de todos). Assino de próprio punho: Soró.