quarta-feira, 11 de março de 2015

Relatos Selvagens



“Relatos Selvagens” é um filme com uma proposta inusitada. São várias pequenas histórias que exploram mundos emocionais e psicológicos diferentes. Todas são independentes e tem em comum questionar que nossa decantada organização social e pessoal são tão sólidas quanto uma bolha de sabão.
Impossível ficar inerte e não se deixar tocar por situações “comuns” que, no dia a dia, nos tiram da zona de conforto, nos sacodem e colocam em cheque nossas certezas. Desafiam o precário equilíbrio de nossa domesticação social. Põe-nos frente a frente com o imponderável. O diretor e autor do roteiro, Damián Szifrón, afirma que suas histórias ultrapassam a linha da sociedade organizada para a barbárie.
As primeiras cenas reúnem um grupo de pessoas dentro de um avião. Todas tem algo em comum: Gabriel Pasternak. Ali estão todos a quem Pasternak – que não aparece na cena – acredita serem culpadas de todas os seus insucessos e de uma vida miserável.
Em cada história aflora com força nosso lado animal. O sem limite. A insanidade, a esperteza, o orgulho, a ganância, o senso torto de justiça, o assassínio que em nós habita à espera para acontecer.
O humor é sutil e em alguns momentos causa asco. Como é que dois homens a partir de um pequeno desentendimento na estrada lutarão com ódio brutal até se matarem da maneira mais tosca? Esta história foi a mais impactante para mim. “Bombinha”, estrelada por Ricardo Darín, cujo personagem se esfalfa e luta impotente contra pequenos dissabores que se juntam com uma cola gosmenta e fétida e, aos poucos, lhe minam a paciência e qualquer urbanidade. 
“A proposta”, “Até que a morte os separe” e a garçonete que é humilhada por um sujeito arrogante de quem tem ódio e é constantemente insuflada pela cozinheira a matá-lo. Ela oscila, mas opta sempre por suportar até que...
Relatos Selvagens exagera com seus animais na tela. Artifício cinematográfico. O que perturba é que parece tão natural que alguém passe de um estado de tranquilo cidadão, para um bruto sem juízo e sem qualquer valor a considerar. Mais absurdo é concluir que muitos de nós já estivemos, muitas vezes, à beira de ter reproduzido o que os personagens expressam de forma descomedida. 
Os argentinos continuam fazendo filme com “f” maiúsculo. Por aqui vamos enchendo as salas com comédias pastelão. Se um tenta fazer um drama, lá descamba para a chatice. Com raras exceções.

domingo, 8 de março de 2015

A maldade está na sua cabeça


Um aluno de 11 anos foi mandado de volta para casa pela escola depois de ir fantasiado de Sr. Grey, o personagem do livro '50 tons de cinza', de E.L. James. O colégio Sale High School, da cidade de Sale da Inglaterra, considerou o traje inadequado para celebrar o Dia Mundial do Livro, comemorado nesta quinta-feira (5).

Fonte: Do G1, em São Paulo (06/03/2015)

A professora de português queria celebrar o dia do livro. Pensou numa competição de leitura, mas a não ser que fosse ao vivo, quem acreditaria no aluno que dissesse ter lido tantos livros com a internete cheia de resumos para tornar os preguiçosos e ignorantes ilustrados?
Há dúzias de formas de celebrar o dia do livro. Não me ocorre agora, assim, quais. Tenho pensamento fixo de que a leitura de livros é a única forma realmente honesta de celebrá-los. A professora tinha a mesma crença, mas desconfiada, resolveu fazer um concurso de fantasias. Olha que bacana! Agora sim, me vem uma miríade de personagens que um poderia se vestir para festejar livros e autores.
A turma ficou em polvorosa. Nada contra os meninos e meninas se fantasiarem. É lúdico. Pode ser, no limite, terapêutico. Diz-se que no carnaval, vestir e travestir-se tem sua utilidade. É uma forma de um jogar seus demônios para fora, porque com a fantasia vem a ilusão de ser aquilo de que se está fantasiado. Olhando por este ângulo, tem lá sua lógica. O danado é que os tais demônios, na quarta-feira de cinzas, tomam o busão de volta na forma de ressaca física, moral e contas. Desmancha-prazeres, eu?
Prossigamos. Bibliotecas vivem às moscas. Lê-se pouco no país. Apenas quatro livros por ano, dos quais só metade até o fim. Sim, só um deles é leitura espontânea. Ah, essa conta inclui livros didáticos. Um francês lê pelo menos dez livros a mais. Os chatos argentinos também estão na dianteira, com quase dez livros/ano. Tem lugar que feira de livro é lei. Há muitas agora e certos gêneros vendem que nem água no deserto. Não sei se são lidos. Que seja. 
Nossa professora queria incentivar a leitura, mas com garotos e garotas lá pelos 9-11 anos, era mais uma tentativa desesperada de implantar o hábito. Internete, tv, smartphone, máquinas de jogos, o livro, coitado, não compete. Nem os tais e-books. Menino chega em casa e conta eufórico a novidade para a mãe. Os dois irmãos menores também fariam parte da festa. A mãezona, leitora voraz dos muitos tons de cinza, não pensou duas vezes: viu no menino mais velho a cara do ricaço sadomazô Mr. Grey.
Como é que se fantasia um menino do tal Grey a ponto de todo mundo saber que ele era o próprio e, claro, fazer a devida e natural relação? Deixa eu adivinhar sua fantasia. Ah, é fácil! Mr. Grey dos 50 tons de cinza. Incrível, você está igualzinho. É isso que se quer quando nos fantasiamos. Não tem graça se as pessoas não sabem quem é.
Chapeuzinho vermelho, gato de botas, Alice no país das maravilhas, a dama de copas da mesma história. Esses são difíceis de saber, né? Mas aquela mãe, cheia de fantasias, só fantasias, o maridão meio desbotado já não estava lá essas coisas, não considerou este pequeno detalhe. Garoto, já sei do que você vai: o Grey lindo e maravilhoso. Ah!, suspirou com mão no peito revirando os olhinhos. O menino não entendeu, mas devia ser algo legal.
Dia seguinte, vestiu logo os menores de qualquer coisa como algum dos três porquinhos e a Emília do Sítio do Pica Pau Amarelo. O Grey tinha que gastar tempo, mas depois de pensar um pouco viu que o menino estava longe de atender às suas loucas fantasias. Passou creme no cabelo que foi penteado para trás para lhe dar alguma adultice e lhe vestiu num paletó supostamente bem cortado. Pegou o menino enfiando o dedo no nariz, aquilo era um balde de água fria em qualquer tesão. Pior, o menino comeu a meleca. Para que ele não acabasse com o personagem, meteu-lhe um chicote numa das mãos e uma máscara negra na outra. Agora, sim. 
Ao chegar à escola a mãe estava que não se cabia. O menino segurava os objetos como se fosse um estorvo, mas tudo bem. Até que a professora, depois de esforçar-se para saber – até tentou dizer que era o Gekko do Wall Street –, mas capitulou. O menino entregou: eu sou o Mr. Grey e deu uma chicotada no traseiro da professora. A direção da escola achou aquilo inapropriado e deu três dias de suspensão no pequeno pervertido. A mãe disse que era pura ignorância e repressão. A maldade está na cabeça das pessoas. Pobre Grey! E suspirou de novo.