segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Segundo turno

Meu calibre, acho, é bom. Se dizia também que uma pessoa conservada era porque tinha boa carnadura, então, digo cá em meu favor, tenho boa carnadura. Não canto vantagem como certos conhecidos meus que pintam o cabelo, bigode e sobrancelha, se entopem de viagra e querem vender saúde e saliência como se tivessem vinte anos, perigando virar notinha de página policial: “idoso morre de ataque cardíaco fulminante nas dependências de um motel”. Me contenho. A mecânica está conservada, mas bem usada, tem que usar com moderação.
Se faço voltas, perdoem-me leitores, apenas quero estabelecer uma base para contar o acontecido. Fato que resulta do destrambelho nesse país, não de minha pessoa. Imagino que todos estão familiarizados com a confusão de documentos que resolveram fazer justo às portas das votações. Obrigam-nos a tirar o título eleitoral, mas, na prática, ele não vale sozinho, para votar tem que levar outro documento com foto. Agora, parece, vota-se apenas com o documento com foto, esta é a picuinha dos burocratas. E o título de eleitor? Falta nos explicarem para que serve mesmo.
A cisma deles, afinal das contas, é com a foto. Se o documento apenas diz seu nome, número, seja do que for, não serve. Acontece que ninguém diz que a foto deve ser assim, assado. Apenas diz: “documento com foto”. Ora, sou pessoa cuidadosa e documento meu dura que é uma beleza. Ainda uso minha primeira identidade.
Fui votar. Chega minha vez. Sempre me emociono. Não tem nada que ver com o ato cívico, cidadania, estas baboseiras todas com que tentam justificar o que nos obrigam a fazer, votar. É nervoso mesmo de errar os botões. Uma mocinha e um rapaz de seus vinte anos eram os mesários. Documento, disse a menina com voz neutra. Eu prontamente entreguei. Ela olhou, embatucou, cochichou com o outro, na minha frente, vejam que educação. Voltou-se para mim. O senhor tem outro documento com foto? Percebam a teima dessa gente. Não, senhorita. Algum problema com meu documento? Ela, sem jeito. Desculpe, é o senhor mesmo? Aquilo foi como uma facada. Como assim, é o senhor mesmo? Claro que sou eu. Um pouco mais jovem... Tomei o documento nas mãos e já duvidava que tivesse pegado errado de outra pessoa. Sim, sou eu. Não via diferença. E a menina insistente. Não parece com o senhor de jeito nenhum.
Numa hora dessas o que que se faz? Olhei para trás e a fila aumentara, o povo incomodado e eu ali sem palavras para provar que eu era eu. Você não consegue ver nenhuma parecença? O quê? Olhe as entradas, são as mesmas, só um pouco mais pronunciadas. E estava eu mostrando a testa que aumentara cocoruto a dentro. Os dois fizeram cara de pasmo. Talvez seja a foto que está um pouco apagadinha. O nariz, minha filha, olha este nariz, é igual. Postei-me de lado para ajudar no reconhecimento enquanto a menina tinha uma enorme interrogação na cara.
Estava desistindo, acabavam os argumentos, sentia-me ridículo e desamparado. Como provar que que aquele que ali estava era eu mesmo? A menina e seu colega também estavam se aperreando, pois da fila vinham muxoxos e reclamações com a lentidão deles e foi isso que me salvou. Olhe, disse ela, eu vou deixar o senhor votar, mas este aqui – apontou para o documento – não parece nada, nada com o senhor. Diante da urna, sem mais qualquer sentimento, absorto na minha desparecença comigo, me vinguei. A sequência de candidaturas ia aparecendo e eu: nulo, nulo, nulo. Eles é que são os culpados deste desmantelo.
Em casa, a mulher me achou esquisito, pois insistia em olhar para o espelho. Quando me dei conta, ela me chamou a atenção, estava eu tresvariando: por favor, diz que eu sou eu memso e me dá logo um beijo na boca.