Ele tinha um ar blasé. Sentado em seu tamborete alto, olhava os passantes. Esperava. De vez em quando, cutucava a unha do mindinho. A porta de rolo levantada a meia altura dava lugar na entrada a duas minúsculas bancas de camelô. O prédio tinha um ar decadente pelos azulejos verdes gastos, quebrados e as molduras das portas rachadas e descoloridas. O lugar fora uma farmácia durante muito tempo, agora estava vazio, exceto pelo homem. Perdeu espaço e clientes para as megastores farmacêuticas que vendem tudo, inclusive remédio.
Ele, um homem amulatado, resultado destas misturas brasileiras, andava aí pelos seus sessenta e poucos anos. Sobre as bancas de seu negócio havia de tudo um pouco destas quinquilharias chinesas: uns lampiõezinhos coloridos à pilha, relógios de mostradores fosforescentes, prendedores de cabelos, canetas. De minha posição, eu não havia notado, vendia óculos de grau também.
Como o olhara demoradamente pelo tédio da espera no carro, percebi que havia sobre uma das bancas um destes novos testamentos dados pelos gideões. Ocorreu-me naquele instante, não que fosse religioso, mas que matasse o tempo com uma leitura ligeira do evangelho.
Chega um freguês. De onde estava, não podia ouvir o que diziam, daí que recrio pelas ações o que foi falado. Tem óculos? O velho camelô balança a cabeça afirmativamente. Torce para o outro lado um palito que carregava num dos cantos da boca. Remexe numa caixa embaixo da banca. Num pequeno saco, retira uns óculos de lentes brancas e aros finos. O homem pega meio desajeitado, pois carregava uma sacola pequena de compras numa das mãos. Põe no rosto, ajusta, e olha para um lado e outro. Em silêncio, o vendedor que se movia com calma zen, pega o novo testamento e dá ao homem para que experimente com a leitura se os óculos servem.
O homem abre o pequeno livro ao meio e o aproxima dos olhos. Devagar, estende o braço para testar sua acuidade à distância. Faz o movimento uma, duas vezes e balança a cabeça negativamente. O vendedor dá-lhe outro par, depois de verificar na lente a medida do grau. Novamente o mesmo processo. O freguês aproxima e estica o braço, mas como o outro, não lhe serve. Balança a cabeça num não. A esta altura, percebi um ligeiro enfado no vendedor como que a dizer: este cara não se decide.
Um terceiro óculos é retirado, agora de outro saco. Os aros brilharam ao sol. O freguês experimenta, havia esquecido o novo testamento sobre a banca, ao que o vendedor rapidamente lhe devolve. Depois de “ler”, pergunta: Quanto é? O vendedor: dez real. O homem põe a mão no bolso de detrás da bermuda e com dificuldade retira dali uns trocados embolados, separa um dez amarfanhado e o dá ao vendedor que, sem olhar para o dinheiro, apenas coloca-o o no bolso. Sem mais palavras, o freguês se retira e vai tomar uma água de côco com o que restou de suas compras naquela manhã. Como as vendas iam de vento em popa, o vendedor animou-se e se presenteou com uma água de côco também. Assim o mundo gira.