segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Camelô mudo


Ele tinha um ar blasé. Sentado em seu tamborete alto, olhava os passantes. Esperava. De vez em quando, cutucava a unha do mindinho. A porta de rolo levantada a meia altura dava lugar na entrada a duas minúsculas bancas de camelô. O prédio tinha um ar decadente pelos azulejos verdes gastos, quebrados e as molduras das portas rachadas e descoloridas. O lugar fora uma farmácia durante muito tempo, agora estava vazio, exceto pelo homem. Perdeu espaço e clientes para as megastores farmacêuticas que vendem tudo, inclusive remédio.
Ele, um homem amulatado, resultado destas misturas brasileiras, andava aí pelos seus sessenta e poucos anos. Sobre as bancas de seu negócio havia de tudo um pouco destas quinquilharias chinesas: uns lampiõezinhos coloridos à pilha, relógios de mostradores fosforescentes, prendedores de cabelos, canetas. De minha posição, eu não havia notado, vendia óculos de grau também.
Como o olhara demoradamente pelo tédio da espera no carro, percebi que havia sobre uma das bancas um destes novos testamentos dados pelos gideões. Ocorreu-me naquele instante, não que fosse religioso, mas que matasse o tempo com uma leitura ligeira do evangelho.
Chega um freguês. De onde estava, não podia ouvir o que diziam, daí que recrio pelas ações o que foi falado. Tem óculos? O velho camelô balança a cabeça afirmativamente. Torce para o outro lado um palito que carregava num dos cantos da boca. Remexe numa caixa embaixo da banca. Num pequeno saco, retira uns óculos de lentes brancas e aros finos. O homem pega meio desajeitado, pois carregava uma sacola pequena de compras numa das mãos. Põe no rosto, ajusta, e olha para um lado e outro. Em silêncio, o vendedor que se movia com calma zen, pega o novo testamento e dá ao homem para que experimente com a leitura se os óculos servem.
O homem abre o pequeno livro ao meio e o aproxima dos olhos. Devagar, estende o braço para testar sua acuidade à distância. Faz o movimento uma,  duas vezes e balança a cabeça negativamente. O vendedor dá-lhe outro par, depois de verificar na lente a medida do grau. Novamente o mesmo processo. O freguês aproxima e estica o braço, mas como o outro, não lhe serve. Balança a cabeça num não. A esta altura, percebi um ligeiro enfado no vendedor como que a dizer: este cara não se decide.
Um terceiro óculos é  retirado, agora de outro saco. Os aros brilharam ao sol. O freguês experimenta, havia esquecido o novo testamento sobre a banca, ao que o vendedor rapidamente lhe devolve. Depois de “ler”, pergunta: Quanto é? O vendedor: dez real. O homem põe a mão no bolso de detrás da bermuda e com dificuldade retira dali uns trocados embolados, separa um dez amarfanhado e o dá ao vendedor que, sem olhar para o dinheiro, apenas coloca-o o no bolso. Sem mais palavras, o freguês se retira e vai tomar uma água de côco com o que restou de suas compras naquela manhã. Como as vendas iam de vento em popa, o vendedor animou-se e se presenteou com uma água de côco também. Assim o mundo gira.

Quem se comunica se trumbica


Ganha um Ignóbil quem encontrar alguém que, tendo um celular, nunca tenha sofrido o diabo nas mãos das operadoras. Não à toa elas são campeãs em reclamação dos órgãos de defesa do consumidor. Acho que eles se orgulham disso. Deve ser alguma espécie de campeonato às avessas.
Claro que o país melhorou neste quesito. Saímos do monopólio estatal ineficiente, burro e caro. Hoje temos a opção de escolher entre várias ruins. A diversidade é grande: Ai, Morto, Tum, Escuro, que mais podemos querer?
Pois foi dos arquivos de uma dessas agências de proteção às vítimas (consumidores) que retirei estas histórias rocambolescas que de tão esquisitas parecerão irreais ao leitor, mas afirmo, são verdadeiras.
Ah, tive que escolher um tema, imaginem, tantas são as variedades de coisas sem-pé-nem-cabeça com que um se depara. Digite 1 para telefone que não fala ou dá choque. Digite 2 para cobranças irregulares ou fones explosivos. Digite 3 para serviço porco ou namoro com a secretária eletrônica. Era algo assim. Uma lista a perder de ouvido. Escolhi comunicação por torpedo.
Biluzão e Biluzinho, dois ladrões pé de chinelo, mas que tinham ares de mafiosos da Cosa Nostra – sem a inteligência e a maldade daqueles –, viviam fazendo planos mirabolantes. A ideia era um roubo definitivo e a aposentadoria. Entre um furto, um conto do vigário, viram no jornal que a moda era roubar caixa eletrônico. Biluzão, o cérebro, montou um plano infalível. Contrataram dois a toas iguais a eles e foram ao ato.
Para dar um ar de sofisticação tudo seria combinado via torpedo. Não sabiam eles que aí estava seu calcanhar de Aquiles. Nestas coisas a precisão é tudo, como se sabe. Havia um tempo mínimo entre a passagem da ronda policial e a virada da câmera móvel. De seu posto de observação, Biluzão mandaria o sinal para a ação. A senha era “vai”. Tudo pronto. Patrulha passou, a câmera olhou para o outro lado. Biluzinho e os comparsas esperavam. Biluzão manda a mensagem. Na tela do celular: “Sua mensagem não pôde ser enviada.” Droga, eu botei crédito! Um não pode nem confiar na operadora Ai para fazer seu trabalho.
Enquanto isso, Biluzinho aguarda. Dez minutos depois, no celular de Biluzão: “Sua mensagem foi enviada com sucesso”. Era uma ironia. Biluzinho sai em desabalada e mal começa a arrancar o caixa, a patrulha volta e os pega.
O casal brigou. O motivo foi uma destas coisas mesquinhas que se cultiva de vez em quando. Desta vez, porém, havia um ar de definitivo. A mulher se recusava a ir embora para outro lugar onde se casariam e viveriam. Se eu entrar naquele avião nunca mais terá volta, disse o namorado e saiu. Pode ir, disse a mulher dando de ombros. Os minutos foram passando e uma angústia terrível se instalou nela. Arrependimento. Burra, dizia, um cara como Beflágio vai ser difícil encontrar. Mas não queria dar o braço a torcer. Orgulho, certamente. Mando um torpedo, se ele não responder, pelo menos não passo vergonha, pensou. Bé – assim ela o chamava quando queria acarinhá-lo – não vai, eu quero você.
Segundos depois a mensagem maldita da Escuro: “Sua mensagem não pôde ser enviada”. O voo era às 14h. Às 14:23 outra mensagem na tela. “Sua mensagem foi enviada com sucesso”. Bé nem recebeu porque já estava a nove mil pés de altura, por coincidência, sentado ao lado de uma bela morena que, pela conversa, prometia.
A chave só deve ser ligada quando eu mandar, disse o chefe da obra. Vamos combinar. Eu mando um torpedo com a palavra “liga”. Assim de simples. Perfeito chefe. Olha lá, hein! Faltou combinar com o serviço de telefonia móvel da Tum.
O cabo que alimentava o parque de diversões apresentou um defeito justo na hora em que centenas de pessoas usavam os brinquedos. Uma parte dos operários retirariam as pessoas que estivessem mais à mão. Os outros tentariam o conserto do cabo. E o trabalho do Zé era esperar a ordem e ligar a chave geral.
Os enganchados na roda gigante, montanha russa e qualquer outra coisa que deixasse as pessoas nas alturas ficariam para quando a energia fosse restabelecida.
O cabo foi consertado. O chefe manda a mensagem para o Zé: “liga”. Ato contínuo a tela se ilumina com uma contramensagem: “Não foi possível enviar sua mensagem”. O chefe se exaspera. Todos esperavam que o Zé ligasse a chave. O chefe até berrou, mas Zé, com fone de ouvidos, ouvia à toda uma destas músicas bate estaca.
Cansados de esperar a equipe de resgate volta a retirar as pessoas que estavam mais aflitas. Então, o celular do chefe recebe a boa notícia: “Sua mensagem foi enviada com sucesso”. Zé liga a chave, os brinquedos rodam. Enquanto despencam pedaços de gente trucidados pelas engrenagens, Zé, satisfeito com seu trabalho, balança o esqueleto.