sexta-feira, 26 de junho de 2009

O Puro faz o Sagrado?


*Uma vitória contra o maior desafio que a nação enfrentara o colocou dentro do palácio real e ainda, como prêmio, ganhou a mão da filha do rei. Pelo feito, ganhou o respeito e a amizade das pessoas. Se tão somente tivesse derrotado o gigante, já o seu nome estaria escrito para sempre na história de seu povo. Mas ainda era grande guerreiro e com seu destemor o exército de Saul ganhou novo ímpeto contra seus inimigos mortais, os filisteus. Isso, naquele momento, se refletia na admiração e afeto que o povo lhe dedicava. Pelas ruas se cantava: "Saul matou mil, Davi matou dez mil."

Ora, isso foi demais para o ego doente de Saul que, sem dúvida, já acalentava um amargor nas entranhas há algum tempo. Desde então, o rei dedicou a Davi um ódio e inveja profundos, a ponto de decretar sua morte imediata. Para Davi, é como se o seu mundo tivesse desabado de repente. Não havia o que fazer, era fugir, deixar tudo para trás, inclusive sua família e salvar a vida.

Na fuga, estando ele e sua pequena guarda famintos, procurou o sumo sacerdote Aimeleque em Nobe, lugarejo ao norte de Jerusalém, onde estava instalado o Tabernáculo com a Arca sagrada. O sacerdote, amedrontado, receou recebê-lo, mas Davi enganou-lhe e este terminou por ajudá-lo, dando-lhe os pães sagrados da proposição.

Estes pães, conforme orientação dada a Moisés (Levítico 24.5ss), representavam a aliança entre Deus e as doze tribos de Israel e estavam sobre uma mesa coberta de ouro no Lugar Santo do Tabernáculo. A cada sábado eram feitos novos pães. Os velhos, apenas os sacerdotes podiam comer e ninguém mais.

Cerca de mil anos depois, Jesus lembrará este ocorrido (Mt 12.4; Mc 2.26; Lc 6.4), para exemplificar, quando questionado porque permitiu aos discípulos, em dia de sábado, catar uns poucos grãos para comer, que o sábado havia sido feito para o homem e não o inverso. A obrigação ritual, mesmo considerada sagrada, é relativizada quando a vida humana está em jogo. Nada é mais importante. Para além disso, o ato religioso torna-se uma escravidão, um fim em si mesmo, perde seu significado transcendente.

Mas voltemos a Davi. É quando se está nos limites das forças, engolfado pelo temor e pelo não saber o que fazer, que somos impelidos, em várias situações, a ultrapassar a norma estabelecida. Não ouso validar todo e qualquer ato com isso. Mas é aí que se instala um impasse que precisa de muita energia moral e de fé para sua resolução, inclusive para suas conseqüências, quase sempre indesejáveis.

É possível que nós, tão acostumados a cultos espetacularizados; a manifestações bem produzidas em pretensa adoração a Deus, mas que tão somente visam ao lucro; a buscas desenfreadas por soluções para todo tipo de mazela na banalização do milagre, tornado mágico; não tenhamos a menor idéia do que significa comer aqueles pães não sendo sacerdote.

Volteia-se com uma relação frouxa de respeito ao Sagrado. Mete-se os pés pelas mãos sem temor algum naquilo que se diz: "é santo". Elege-se o aqui e agora como o máximo de bem que se pode ter, e merecido, e se manda para as calendas qualquer aspiração de Reino e céu, seja lá o significado que se dê a isso. Deve ser difícil entender que comer dos pães da proposição é como conspurcar um momento solene em que o próprio Deus diz ao povo: eu faço aliança com vocês. A permanência dos pães quer lembrar isso. É pão de trigo, mas como bem diz Aimeleque, tornado incomum pelo que representa. Não se toca no sagrado sem consequência.

Contudo, ali havia um homem e seus seguidores em desespero. Fustigados pela perseguição implacável que, dias depois, inclusive, resultaria na morte do sacerdote que ajudou e mais 84 outros como castigo, porque julgou o rei desvairado que estava sendo traído. Eis uma situação de limite de normas e paradigmas, mesmo para os considerados sagrados. Somente nelas se pode passar a linha que separa o banal do extraordinário. Somente neste instante se sabe quem é meramente religioso, e quem é inteiro e comprometido com a fé, com seu Deus e consigo mesmo.

Não poucas vezes, a vida nos coloca nesta fronteira. O mundo vira de ponta cabeça e aquilo que costumava fazer sentido, torna-se estranho e ameaçador. A relação com Deus era feita de tranqüila e confortável prática religiosa. O tédio, às vezes, tomava conta. A repetição, o banal, a mesmice eram a regra em cultos e na vivência pessoal, até que... Agora, porém, submerso em desvãos da vida, Ele silencia, parece alheio aos rogos, quase lamúrias em que sua oração - se ainda ora - se transformou.

Lançar mão dos pães não fala tão somente da fome física, quero crer. Mas de fomes outras que sobrepassam a vida comum. Representa a necessidade de significados novos, de luzes novas sobre os lugares comuns, de transcender as sensações tão chãs, cuja máxima manifestação é uma lágrima desavisada, quando se queria chorar rios, rasgar a alma em partes, mergulhar fundo na vida numa entrega sem reservas. Mas a quem, como?

A ação de Davi revela ainda, que é possível tocar o sagrado, sem quebrar sua essência por não sermos puros o suficiente, por que o que torna um puro é seu total comprometimento naquilo que faz. É ser verdadeiro. É não ter reservas escondidas. Mesmo as dúvidas deverão estar tão claramente colocadas que nada haverá a temer a não ser delas ser refém. Cabe lembrar Paulo escrevendo a Tito: "Todas as coisas são puras para os puros; todavia, para os impuros e descrentes, nada é puro. Porque tanto a mente como a consciência deles estão corrompidas." (Tt 1.15 - ARA)

Para onde ir? Davi - retomo o episódio de forma figurada - corre à casa de Deus. Sua escolha define a morte/vida de muitos, mas este é um lugar de extremos, de entregas totais - não fanatismo, de não negociação com qualquer valor que não seja aquilo que o Altíssimo determina. Sabe Deus se estamos preparados para tal envolvimento. Entendemos, pelo menos?


* O episódio de Davi encontra-se em 1 Samuel entre os capítulos 18 e 21

quarta-feira, 24 de junho de 2009

O Filho da Mãe


Um homem foi preso nos Estados Unidos por se fazer passar pela mãe, morta em 2003, para receber cerca de US$ 115 mil (cerca de R$ 228 mil reais) em pensão e outros benefícios.
Fonte: BBC Brasil

Naquela manhã, ele acordou pouco mais tarde que de costume. Estranhou o silêncio. Não ouviu movimentação na cozinha nem a indefectível radiola tocando "Eu não vou negar que sou louco por você, tô maluco pra te ver... eu não vou negar...". Ainda zonzo, caminhou pela casa à medida que as idéias clareavam. Cadê mamãe? Perguntou-se já em sobressalto. Dirigiu-se ao quarto da velha senhora e viu-a ainda deitada e tremeu de terror, aquilo só podia significar uma coisa: ela morrera durante a madrugada.

Paralisado, deteve-se olhando a cena, as lágrimas desceram abundantes. Mamãe... falou baixinho como se não quisesse acordá-la de um bom sono. Mamãe! Disse ainda mais alto e decidido. Então teve certeza. Atirou-se sobre o corpo inerte e chorou sua perda. Na verdade, sua mente trabalhava febrilmente sobre seu futuro. A mãe foi seu sustento nos últimos quarenta e nove anos, sem contar os quindins. Acabou-se a roupinha lavada, já era cafezinho quente pela manhã e o nescauzinho ao deitar. E a graninha para umas saídas e seus parcos interesses? Isto sim, era o pior de tudo.

Descontrolado, sacolejou a velha, tomado de desespero. Primeiro por pena dela e de si mesmo, depois por raiva. Velha traidora! Dizia, como que transtornado. Como é que eu fico agora? O que será de minha vida? Você não podia fazer isso comigo, eu que lhe fiz companhia estes anos todos desde que o teu marido se foi com a empregada. Quem ficou do teu lado e te apoiou? Eu. Batia no peito. Desabou ao lado cama com as mãos no rosto. Precisava se acalmar, pensou. Há de ter uma solução.

Levantou-se, olhou com certo desprezo para o corpo da mãe ainda enrolado no lençol. Agora estava concentrado em como manteria a aposentadoria da velha para seu sustento. Podia falsificar sua assinatura - aprendera muito antes para os pequenos golpes que lhe dava. Pela idade dela, porém, sabia que de tempos em tempos, o sistema previdenciário exigia a presença da própria, em carne e osso, no departamento mais próximo. Assim o ministro determinara.

Com a mente em comichões, voltou-se de lado e viu o guarda-roupa aberto. Os vestidos pendurados, as perucas e outros badulaques foram como um alume. Isso, vou encarnar a velha, afinal eu sempre tive uma veia artística, sou um ator nato e de quebra, na vida real, ainda realizo minha paixão por atuar. Ajudará, sem dúvida, nossa lastimável parecença. Um toque aqui, outro ali e voilá, serei a própria.

Como fossem um tanto reclusos, tratou de dar normalidade à casa, vai que um vizinho mais enxerido... melhor nem pensar. Ligou a radiola e saiu para contratar um serviço funerário discreto. Na calada da noite retirou o corpo e o enterrou num cemitério escondido. Dia seguinte, testou sua transformação. Ligou para um seu primo, igualmente ordinário, e convidou-o para uma visita. Eram cúmplices em muitas canalhices e se conseguisse enganá-lo, a farsa seria perfeita. Também se não conseguisse, ele não contaria a ninguém, claro, desde que recebesse algum.

A visita foi um sucesso e nem mesmo depois que se revelou o primo acreditou, teve que retirar a peruca para que o outro caísse em si. Gênio, primo, tu és um gênio. Eu te ajudarei a sacar o dinheiro como "damo" de companhia. Ótimo, assim não precisarei falar muito, poderia ser pego.

E assim, anos se passaram. Mas algo estranho acabou acontecendo. Seu primo, que agora praticamente vivia na casa, percebeu que ele não retirava mais a farsa. Logo pela manhã se montava todo e começou a fazer as mesmas coisas que a mãe, quando viva, fazia. Ouvia sua música predileta "eu não vou negar... você é minha doce amada..." e chamava o primo de "meu filho" e "pimpinho" que era como ele era chamado pela mãe. O primo cúmplice, alarmado, tentou demovê-lo daquilo diversas vezes, mas cada dia piorava e diante de sua recusa, resolveu que algo precisava ser feito.

Com o passar dos dias, o primo cúmplice percebeu que ele só podia estar louco e sem saber o que fazer, procurou um serviço psiquiátrico e disse que a "tia" estava doente. O médico logo percebeu que era um homem travestido. Questionou o parente. Como você disse que era sua tia? Ele não aceita que eu o chame pelo nome verdadeiro. Porque eu não sou este que ele diz, doutor, atalhou. Eu sou um ator, posso ser qualquer coisa, até mesmo um político, um senador, por exemplo, que é um tipo que tem muitas caras.

Diante de tantas inconsistências, o médico, por via das dúvidas, chamou a polícia. Preso, o ex-filho, agora mãe, depois de tudo descoberto, disse ao policial de forma teatral, como um último ato: "Eu segurei minha mãe quando ela estava morrendo e respirei seu último suspiro, então, eu sou minha mãe".

Legenda da ilustração: Jonh Travolta no filme Hairspray